sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O enigma Dilma

Everardo Maciel
Correio Braziliense

Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal

No curso da história brasileira, poucas pessoas chegaram à Presidência da República com tão escassas informações sobre suas habilidades políticas e administrativas quanto Dilma Roussef. Como reagirá a nova presidente ante as inevitáveis crises? Terá estilo próprio ou será tutelada pelo presidente Lula? Nada se sabe. 

Ressalvada a cota pessoal da presidente, a escolha dos 37 ministros pautou-se conforme os caóticos ritos do nosso curioso presidencialismo. Resultou de meras indicações de partidos e facções partidárias, eventualmente de governadores, sem o mais remoto sinal de orientação programática. Nesse cenário sobressaiu um inédito crivo do presidente que sai. Coordenar essa equipe não será tarefa fácil. 

No contexto das boas escolhas, algumas merecem destaque: o ministro Antônio Palocci, Alexandre Tombini, presidente do Banco Central, e Carlos Alberto Barreto, secretário da Receita Federal. 

Palocci é a garantia de bom senso, conhecimento e experiência. Será um filtro contra ideias mirabolantes. Exercerá sua missão com equilíbrio e realismo. Em relação à reforma tributária, por exemplo, certamente vai desestimular proposições grandiloquentes, preferindo abonar propostas pragmáticas. 

Tombini é um técnico preparado e probo. Terá a dificílima tarefa de encontrar uma saída para a armadilha do câmbio, que está comprometendo gravemente nossas exportações e gerando sério processo de desindustrialização. 

Barreto, com as mesmas qualidades de Tombini, terá a missão de resgatar a credibilidade da Receita, abalada em virtude dos vazamentos de informações sigilosas, e de superar o clima de conflagração entre as categorias profissionais daquele órgão. Precisa, também, resgatar a capacidade de formular políticas fiscais pela própria Receita, indevidamente subtraída após a gestão do secretário Jorge Rachid. Sem essas iniciativas, será muito difícil assegurar crescente melhoria na qualidade da administração tributária. 

No campo das políticas públicas, a presidente Dilma defrontar-se-á com um alentado cardápio de problemas. É verdade que nos últimos oito anos o país cresceu, houve redução do desemprego e melhorou a distribuição de renda. Esse desempenho foi fruto da boa herança do governo Fernando Henrique, das excepcionais condições da economia internacional e da disposição do presidente Lula de preservar aquela herança e ousar nos programas sociais. 

As circunstâncias tanto quanto os resultados, portanto, foram excepcionais. É ilusório, todavia, pensar que desenvolvimento fundado apenas em consumo, expansão de crédito e transferências de renda possa ser duradouro. É modelo eleitoralmente produtivo, mas economicamente débil. Sua vulnerabilidade é de tal ordem que “marolinhas”, no cenário internacional, podem simplesmente reduzi-lo a pó, com dramáticas consequências sociais, conforme evidenciam as sucessivas crises econômicas contemporâneas. 

Eventuais ganhos decorrentes da exploração do pré-sal, se bem orientados, podem significar um grande passo em direção a novo patamar de desenvolvimento. É imperioso prosseguir no esforço para reunir condições tecnológicas e financeiras para dar curso à exploração. Não esqueçamos, entretanto, que tudo isso, por ora, é mera expectativa. 

O governo Lula não se animou a fazer reformas que implicassem custo político. Nosso modelo previdenciário é inviável a longo prazo; a legislação trabalhista é fator impeditivo de superação da informalidade; o sistema orçamentário é pantomima que nada planeja ou controla; a política de pessoal da administração pública apenas não existe; a gestão da saúde e educação públicas caminha para falência. O Estado precisa de reforma profunda. 

Qualquer pretensão de desenvolvimento consistente a longo prazo requer uma política educacional que não se satisfaça com estatísticas descomprometidas com a lamentável qualidade do nosso ensino. Da mesma forma, a sucateada infraestrutura de estradas, portos e aeroportos será sempre uma limitação na persecução de taxas mais ambiciosas de crescimento econômico. 

No Brasil, lamentavelmente foi conferida prioridade à expansão dos gastos correntes em desfavor dos investimentos, o que vai exigir indigestos programas de austeridade fiscal, sob pena de ficarmos reféns do dilema juros altos ou inflação. 

Pessoas que conhecem, de perto e de longa data, a nova presidente asseguram que não será o nono ano do governo Lula, mas o primeiro do governo Dilma. Seja qual o for o significado dessa expressão, a verdade é que o enigma Dilma só será decifrado por ela própria. Esperamos que seja um bom governo.
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Balanço final

O Estado de S. Paulo



A era Lula - que pode, ou não, ter chegado ao fim neste 31 de dezembro - foi um período único na história da República. À parte as razões mais óbvias disso, a começar da singular trajetória do presidente e de sua excepcional aptidão para se fazer idolatrado pela maioria dos brasileiros, o ciclo de oito anos que se encerra formalmente hoje se distingue por entrelaçar o melhor e o pior que um governante eleito pelo voto popular já proporcionou ao País.

Esse entrelaçamento é o que desaconselha julgar a presidência Lula de um modo esquemático. Dela já se disse, por exemplo, que o seu lado bom não é novo e o seu lado novo não é bom. O jogo de palavras antepõe duas coisas sabidas. De um lado, o que sem dúvida foi a decisão crucial do presidente de preservar, quando não aprofundar, as linhas mestras da política macroeconômica implantada pelo seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. De outro, a política nefasta, em escala sem precedentes, de subordinar o Estado aos interesses da confraria partidária-sindical que se converteu, graças a sua eleição, na nova elite do poder no Brasil. Ao que se soma a degradação das relações entre o Executivo e o Legislativo e a exploração deslavada do carisma presidencial.

Na realidade, a primeira metade do argumento omite que Lula não apenas teve a lucidez de manter os princípios de gestão econômica que até hoje ele chama de "herança maldita" - provavelmente o que a sua retórica teve de mais mistificador -, como ainda chefiou um governo que demonstrou ter a competência necessária para fazê-lo. Ao mesmo tempo, ele fazia valer a sua liderança para enquadrar a companheirada insatisfeita com o pragmatismo responsável na condução da economia, sem o qual, repita-se pela enésima vez, o Brasil não teria tirado o proveito que tirou de um dos maiores ciclos de expansão dos negócios globais no pós-guerra. E sem o qual, no limite, não teria sido possível resgatar 28 milhões de pessoas da pobreza extrema e alçar outros 36 milhões à classe média.

Já a segunda metade do argumento omite que o mesmo Lula, que não há de ter estado alheio ao mensalão; que não teria por que se surpreender com o vexame dos "aloprados" na campanha eleitoral de 2006; que se entregou de corpo e alma aos expoentes do atraso, do patrimonialismo e da venalidade no sistema político nacional; e que, enfim, se colocou acima do próprio Estado do qual deveria ser o primeiro servidor, ao se declarar a "encarnação do povo", nunca se dispôs a alterar a Constituição para disputar um terceiro mandato consecutivo, ao contrário do que a oposição dava como certo.

É verdade que ele se serviu desbragadamente do governo para eleger a ministra Dilma Rousseff. Mas, na soma algébrica dos prós e dos contras, ele tem a seu crédito a estabilidade das regras democráticas no País.

Outro paralelo semelhante, desse ângulo, é o da atitude de Lula em relação à imprensa. Tomados pelo valor de face, os seus virulentos ataques aos meios de comunicação expressariam uma intenção liberticida. E, no entanto, no que dependeu dele, a imprensa brasileira é hoje tão livre como no dia 1.º de janeiro de 2003. O Lula falante, por sinal, é uma caricatura do Lula governante.

Se o seu governo tivesse que ser julgado pela catadupa de palavras impróprias - e não raro mentirosas - que ele proferiu, nada mitigaria a percepção de que o Brasil viveu um período de retrocesso e de achincalhe da instituição presidencial. O problema, de novo, é destrinchar as coisas.

Os abusos verbais de Lula, às vezes à beira do impublicável, remetem ao espetáculo da política personalista e ao lado rústico de um temperamento construído sob a servidão da vicissitude. Mas as suas políticas resultaram de outro traço de sua formação - o da opção preferencial pela conciliação de interesses, que o Lula líder sindical aprendeu na mesa de negociação com o patronato. Dos beneficiários do Bolsa-Família ao grande capital, todos tiveram o seu quinhão.

Na mesma conjuntura de bonança econômica, um outro presidente poderia não ter idêntica sensibilidade para os dividendos políticos da acomodação. A simbiose de ótimo e péssimo que marcou a era Lula teve nisso o seu ponto culminante.
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Balanço final

O Estado de S.Paulo

A era Lula - que pode, ou não, ter chegado ao fim neste 31 de dezembro - foi um período único na história da República. À parte as razões mais óbvias disso, a começar da singular trajetória do presidente e de sua excepcional aptidão para se fazer idolatrado pela maioria dos brasileiros, o ciclo de oito anos que se encerra formalmente hoje se distingue por entrelaçar o melhor e o pior que um governante eleito pelo voto popular já proporcionou ao País.

Esse entrelaçamento é o que desaconselha julgar a presidência Lula de um modo esquemático. Dela já se disse, por exemplo, que o seu lado bom não é novo e o seu lado novo não é bom. O jogo de palavras antepõe duas coisas sabidas. De um lado, o que sem dúvida foi a decisão crucial do presidente de preservar, quando não aprofundar, as linhas mestras da política macroeconômica implantada pelo seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. De outro, a política nefasta, em escala sem precedentes, de subordinar o Estado aos interesses da confraria partidária-sindical que se converteu, graças a sua eleição, na nova elite do poder no Brasil. Ao que se soma a degradação das relações entre o Executivo e o Legislativo e a exploração deslavada do carisma presidencial.

Na realidade, a primeira metade do argumento omite que Lula não apenas teve a lucidez de manter os princípios de gestão econômica que até hoje ele chama de "herança maldita" - provavelmente o que a sua retórica teve de mais mistificador -, como ainda chefiou um governo que demonstrou ter a competência necessária para fazê-lo. Ao mesmo tempo, ele fazia valer a sua liderança para enquadrar a companheirada insatisfeita com o pragmatismo responsável na condução da economia, sem o qual, repita-se pela enésima vez, o Brasil não teria tirado o proveito que tirou de um dos maiores ciclos de expansão dos negócios globais no pós-guerra. E sem o qual, no limite, não teria sido possível resgatar 28 milhões de pessoas da pobreza extrema e alçar outros 36 milhões à classe média.

Já a segunda metade do argumento omite que o mesmo Lula, que não há de ter estado alheio ao mensalão; que não teria por que se surpreender com o vexame dos "aloprados" na campanha eleitoral de 2006; que se entregou de corpo e alma aos expoentes do atraso, do patrimonialismo e da venalidade no sistema político nacional; e que, enfim, se colocou acima do próprio Estado do qual deveria ser o primeiro servidor, ao se declarar a "encarnação do povo", nunca se dispôs a alterar a Constituição para disputar um terceiro mandato consecutivo, ao contrário do que a oposição dava como certo.

É verdade que ele se serviu desbragadamente do governo para eleger a ministra Dilma Rousseff. Mas, na soma algébrica dos prós e dos contras, ele tem a seu crédito a estabilidade das regras democráticas no País.

Outro paralelo semelhante, desse ângulo, é o da atitude de Lula em relação à imprensa. Tomados pelo valor de face, os seus virulentos ataques aos meios de comunicação expressariam uma intenção liberticida. E, no entanto, no que dependeu dele, a imprensa brasileira é hoje tão livre como no dia 1.º de janeiro de 2003. O Lula falante, por sinal, é uma caricatura do Lula governante.

Se o seu governo tivesse que ser julgado pela catadupa de palavras impróprias - e não raro mentirosas - que ele proferiu, nada mitigaria a percepção de que o Brasil viveu um período de retrocesso e de achincalhe da instituição presidencial. O problema, de novo, é destrinchar as coisas.

Os abusos verbais de Lula, às vezes à beira do impublicável, remetem ao espetáculo da política personalista e ao lado rústico de um temperamento construído sob a servidão da vicissitude. Mas as suas políticas resultaram de outro traço de sua formação - o da opção preferencial pela conciliação de interesses, que o Lula líder sindical aprendeu na mesa de negociação com o patronato. Dos beneficiários do Bolsa-Família ao grande capital, todos tiveram o seu quinhão.

Na mesma conjuntura de bonança econômica, um outro presidente poderia não ter idêntica sensibilidade para os dividendos políticos da acomodação. A simbiose de ótimo e péssimo que marcou a era Lula teve nisso o seu ponto culminante. 
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Lula entre o mito e a realidade

 O Globo



Luiz Inácio Lula da Silva diria que completa hoje um ciclo "extraordinário" da História brasileira. É o segundo presidente a ficar oito anos consecutivos no poder, em plena democracia - feito idêntico ao de FH. Ainda passa a faixa a quem apoiou nas eleições, Dilma Rousseff, fato inédito na República na vigência do estado de direito democrático. E desce a rampa do Planalto nos píncaros da popularidade, com índice de aprovação acima dos 80%, pulverizando a regra segundo a qual o exercício longevo do poder desgasta. Costuma-se dizer que apenas o distanciamento histórico permite avaliações serenas, diluídas as paixões ideológicas e partidárias. Ainda mais quando se trata de um personagem que ultrapassou os limites entre a política e a mitologia, com pitadas de culto à personalidade - não desestimulado por ele. Sintomático que, no último pronunciamento em rede nacional, Lula tenha parafraseado a carta-testamento de Getúlio.

Mas não é preciso esperar o tempo passar. Há aspectos positivos indesmentíveis na Era Lula: a redução da miséria (20,5 milhões resgatados desta situação, segundo a FGV), com a ampliação de classes médias baixas; e também a defesa da estabilização da economia. Lula patrocinou a menor taxa de desemprego jamais calculada (5,7%) e deixa a economia num ano de crescimento de cerca de 7,5%, porém com a contrapartida da inflação em alta. No plano político, usou o bom senso aplicado na questão econômica no primeiro mandato para contornar o risco de grave crise institucional, ao rejeitar o projeto continuísta.

Mas é preciso mesmo esperar para se saber o que será determinante para a História: se os resultados positivos ou o lado negativo destes oito anos, combatido à base de maciça propaganda ufanista. Para quem apenas ouve o discurso dos poderosos de turno, o Brasil foi campeão no torneio de crescimento mundial. Longe disso. Há meses, o conhecido colunista econômico do "Financial Times" Martin Wolf registrou que, de 1995 a 2009, período de FH e Lula, a participação brasileira no PIB do planeta caiu de 3,1% para 2,9%. Estatísticas sobre o comércio internacional não são melhores: apesar do salto das exportações brasileiras, o peso do país nas trocas mundiais se encontra estacionado em pouco acima de 1%. Tampouco a política externa serviu ao propósito de abrir mercados. Inspirada num antiamericanismo juvenil, a diplomacia companheira caiu na ilusão terceiro-mundista do diálogo "Sul-Sul" num mundo cada vez mais multipolar. Um contrassenso. Se foi anêmico o crescimento durante a gestão FH ---- que enfrentou conjuntura mundial muito diferente da de que se beneficiou Lula -----, nos últimos oito anos o país também continuou a patinar em termos de expansão comparativa do PIB. Mas o discurso oficial trata o fracasso como grande sucesso. Em qualquer comparação que se faça, a posição do país não corresponde ao ufanismo sem medidas: no período Lula, entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China), o país é que tem a menor média de expansão anual - 4% contra 4,8% dos russos, 8,2% da Índia e 10,9% dos chineses. Mesmo na América Latina, o Brasil fica abaixo da média do continente (4% contra 4,64%). Supera apenas o México (2,1%).

Problema nada desprezível são os juros elevados - os 10,75% mantêm o país no desabonador posto de líder mundial nos juros reais (deduzida a inflação). Algo como 5% anuais, quando a tônica tem sido em torno de 2%, mesmo entre os emergentes. Já foram muito mais elevados, é verdade. Como causa básica do problema estão gastos públicos crescentes, marca do governo Lula, principalmente no segundo mandato, característica enaltecida por parte do PT. E, sem conseguir reduzir os juros naturalmente, impossível elevar a taxa média de crescimento, e mantê-la por longo prazo, a fim de eliminar de vez a miséria. O gasto público sem controle conspira contra o combate à pobreza.

O Brasil cresceu porque foi puxado por um dos mais longos e consistentes ciclos de crescimento mundial sincronizado, com a China na função de locomotiva. O país surfou a onda, mas não conquistou novos espaços. Poderia ter conquistado, caso a política de estabilização executada por Lula no início do primeiro mandato, para conter os efeitos negativos decorrentes da compreensível reação dos mercados às perspectivas de um governo do PT, tivesse, como sequência, as reformas da Previdência, tributária, da esclerosada legislação trabalhista, entre outras. Mas o governo preferiu a capitalização político-eleitoral de curto prazo, e não a preparação do país para um longo ciclo de crescimento sustentado. Em vez de investimentos, nas dimensões necessárias, na melhoria da qualidade do ensino básico, privilegiaram-se gastos de custeio (salários de servidores e contratações); em vez de aperfeiçoamento e ampliação da infraestrutura, aumentos reais excessivos do salário mínimo, sem preocupação com o impacto na Previdência. E, quando surgiu o PAC, emergiu a incompetência gerencial de uma burocracia inchada de servidores e controlada por corporações sindicais aliadas.

Com a economia estabilizada, o crescimento em aceleração e o consequente aumento da arrecadação tributária, ficou mais visível o projeto lulopetista do "Estado forte": carga tributária elevada (36% do PIB) e a ingerência do poder público na "indução" ao desenvolvimento. Inevitável que junto a este modelo brotassem ranços políticos autoritários. Lula se despede com o mantra de que defende a liberdade de imprensa e expressão. Mas algumas iniciativas do governo foram em sentido oposto.

A crise mundial, deflagrada em fins de 2008, viria a conceder a Brasília a licença para gastar ainda mais em custeio ---- peça fundamental no projeto político-eleitoral de 2010 ----- e a usar instrumentos heterodoxos, arriscados, na capitalização de bancos estatais. O movimento mais notório foram os R$180 bilhões destinados ao BNDES por meio do endividamento público. A parte mais clara deste projeto estatista, uma reprodução do intervencionismo do governo militar de Ernesto Geisel, está na mudança do sistema de exploração do petróleo, para restabelecer parte do monopólio da Petrobras, torná-la operadora única nas áreas do pré-sal a serem licitadas, convertendo-a em instrumento de uma arriscada política de substituição de importações de equipamentos. A Viúva pagará a conta da aventura, como já aconteceu após Geisel.

Também é negativo o balanço na política no aspecto do seu garroteamento pelo estilo fisiológico de negociação de alianças imprimido pelo lulopetismo. No primeiro mandato, construiu-se o esquema do mensalão, para azeitar o apoio parlamentar ao governo. Vitorioso Lula em 2006, o lulopetismo foi mais objetivo na montagem da base do segundo mandato: negociou verbas e vagas no ministério com o PMDB e partidos menores, sem pudor - fórmula repetida na construção da equipe que assume com Dilma amanhã. A política com "p" maiúsculo terminou emasculada. Antigas aliadas ideológicas, corporações sindicais foram convidadas ao banquete de repartição do butim do imposto sindical, na contramão da proposta de um sindicalismo "não varguista", independente do Estado, feita por novos líderes metalúrgicos do ABC paulista no final da década de 70/início dos anos 80, Lula à frente deles. Até a outrora combativa UNE virou correia de transmissão do governo, cevada a doses generosas de dinheiro do Tesouro.

Não se desmerecem a inteligência e a competência políticas de Lula e do PT. Mas a realidade é a realidade, e há armadilhas engatilhadas no exercício do poder pelo lulopetismo que precisam ser desarmadas para o bem do governo Dilma e do país. Warren Buffett, bilionário americano, criou uma imagem célebre: "Somente quando a maré está baixa é que se pode ver quem está nadando nu." E a maré da bonança mundial está na vazante há algum tempo.
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Recuperar as áreas de fronteira

O Estado de S. Paulo  

Contrabando e tráfico de drogas são os problemas mais frequentemente associados às regiões de fronteira do País. Embora sejam graves, e demonstrem o abandono e a vulnerabilidade dessas regiões - o que as têm levado a reivindicar uma ação mais efetiva dos órgãos de segurança -, eles não são os únicos e, do ponto de vista das políticas públicas, talvez nem sejam os piores. A falta de coordenação entre as autoridades reduz a eficácia de suas ações, o que resulta no agravamento dos problemas crônicos nas áreas de educação, saúde, trabalho e infraestrutura, entre outros. À longa distância das cidades fronteiriças dos principais polos urbanos e à sua baixa densidade populacional soma-se o desperdício de recursos públicos em programas isolados, do que resulta a estagnação econômica, que favorece as atividades criminosas.

Esse diagnóstico, conhecido dos que estudam os problemas de fronteira, agora faz parte de um estudo oficial entregue à Presidência da República. O estudo, acompanhado de um roteiro de ações para melhorar as condições de vida das populações fronteiriças e para reduzir a vulnerabilidade do País, foi elaborado pelo Grupo de Trabalho Interfederativo sobre Integração Fronteiriça (GTI), sob a coordenação do Ministério da Integração Nacional, e suas principais conclusões foram apresentadas pelo Estado na segunda-feira, em reportagem de Marcelo de Moraes.

Como sugere seu nome, o GTI teve a participação de diversos órgãos federais (Ministérios das Relações Exteriores, Desenvolvimento, Defesa, Fazenda, Integração e Turismo, Secretaria de Relações Institucionais e Gabinete de Segurança Institucional da Presidência), do fórum dos governadores da Amazônia Legal e de representantes dos municípios.

Essa participação ampla era indispensável, segundo o documento em que o GTI apresenta sua proposta para o desenvolvimento e a integração da faixa de fronteira, porque os problemas são múltiplos e dinâmicos, seu conhecimento exige o diálogo com diferentes níveis de governo e a solução deles exige a articulação das ações de nível local (prefeituras), regional e nacional, e, na esfera federal, entre os diferentes órgãos públicos.

Numa crítica ao que o governo tem feito até agora na área de fronteira, o documento afirma que "as ações empreendidas pelos agentes públicos, embora bem-intencionadas, não vêm apresentando a efetividade esperada, traduzindo-se em resultados bastante pontuais e desconsiderando a potencial sinergia que poderia ser gerada pelas várias iniciativas produzidas". Ou seja, não há coordenação entre as ações de governo.

Não poderia ser outra, por isso, a essência da proposta do GTI para se enfrentar os problemas: a criação de um modelo de gestão que tenha como principal característica o estabelecimento de uma rede das instituições públicas que atuam na faixa de fronteira para a elaboração conjunta de planos e projetos, de modo que haja apoio recíproco entre as diferentes iniciativas governamentais, respeitando-se as especificidades de atuação de cada órgão, e ampla troca de informações.

Quanto às propostas, nota-se forte preocupação dos participantes do GTI em assegurar o desenvolvimento das regiões de fronteira e integrá-las à economia brasileira, por meio do fortalecimento das empresas locais e a criação de regimes especiais de importação e exportação para as pequenas empresas ali instaladas, entre outras medidas. O grupo sugere também a criação de uma gratificação para servidores federais e estaduais (policiais militares, médicos, enfermeiros, engenheiros, professores e outros) lotados nos municípios de fronteira e de escolas binacionais nesses municípios, a capacitação do corpo policial, de fiscais e de outros profissionais para atuação em áreas especiais, o aumento do número de postos policiais e o reforço da estrutura de vigilância sanitária, entre outras medidas.

Outras propostas podem ser incorporadas a estas, algumas podem ser substituídas, mas o conjunto não será muito diferente desse que o GTI propõe. O governo, assim, tem meios para dar eficácia a suas ações na fronteira. Mas precisa agir.
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Ritos de passagem

 Roberto DaMatta
O Estado de S. Paulo 

A expressão, embora técnica, é definitivamente poética. Remete tanto a um momento quanto a um processo, essas dimensões típicas do humano tanto na sua imprevisibilidade que nos faz voar, quanto na sua estabelecida tonelagem que nos ata a este mundo. Todos passamos e viver é transitar sofrendo ou exultando por meio das etiquetas e das fórmulas que recebemos das sociedades e famílias onde entramos sem convite ou escolha. Assim, ritualizamos tanto o nascimento quanto a morte; bem como todos os momentos críticos de nossas vidas. Felizmente, por mais que o tempo passe, haverá sempre uma primeira e uma última vez.

O descobridor dessa fundamental platitude não foi nenhum gênio da publicidade, mas um antropólogo chamado Arnold Van Gennep. Foi ele que num livrinho com esse título, publicado em 1909 (divulgamos essa obra no Brasil em 1978, numa coleção que dirigimos com o Prof. Luiz de Castro Faria), enxergou o padrão dos ritos de crise de vida individuais ou coletivos, que sempre e em toda época ou lugar, seguem os mesmos princípios. O primeiro é que, embora eventualmente ligados a processos fisiológicos, eles são de fato ideológica (ou socialmente) definidos; o segundo é que são sempre dramatizados e, assim, compartimentalizados em algum palco ou local onde devem ignorados ou obrigatoriamente ser vistos por todos; e, finalmente, o terceiro, é que todos eles têm uma fase de separação (que remove a pessoa ou o objeto do seu campo habitual); uma fase limite ou fronteiriça, onde não se está na velha posição social nem fora dela; e uma fase final de incorporação no novo papel, ambiente ou momento.

Ora, é exatamente isso que todos nós temos feito nesse período de festas. Fase inaugural de uma estação de consumo obrigatório que culmina no ano-novo, porque Papai Noel tem que encher o seu enorme saco de brinquedos e nós a nós mesmos e aos nossos próximos de "lembranças". Tal período termina no carnaval e se você quiser fazer alguma coisa séria nesta época, você vai ouvir um brasileiríssimo e preguiçoso: "Isso só depois do carnaval!"

* * *

Cada qual sai do ano velho e entra no novo com um rito de passagem peculiar. Conheço gente que toma banho de cheiro, outros que bebem e comem desbragadamente. Meu saudoso pai dava tiros de revólver para o ar; um amigo, antropólogo estruturalista, batia tampas de panela; outros comem lentilhas (símbolos de fartura) pela meia-noite. Dizem que quem faz algo bom na virada do ano, repete essa coisa o ano todo. Ademais, no Brasil, somos arregimentados a nos vestir de branco e ir à praia, onde fazemos um ano morrer e dele partejamos um tempo novo.

Neste Natal eu, modesto, fui ao barbeiro.

Como vocês sabem, o barbeiro é a prova mais patente e gritante de como nós precisamos do outro e somos feitos pelos outros. É o testemunho que não podemos nos enxergar dormindo do mesmo modo que estamos impedidos - a não ser usando algum instrumento - de ver nossas próprias nucas, costas e traseiros. A nossa proverbial lateralidade (esquerda/direita, alto/baixo, frente/fundo, fora/dentro) não nos permite coçar nossas costas. Precisamos de outras mãos e a coceirinha gostosa, mas irremediável, pode ser prova de terrível solidão.

Tudo isso faz com que o barbeiro seja a primeira e talvez a mais fundamental experiência de alteridade, pois ninguém corta - como sabem melhor do que ninguém os indianos - o seu próprio cabelo a ser trabalhado por um outro que nos vê pelas costas sem, entretanto, nos mandar embora ou nos desprezar.

- O que deseja?

- Um corte de cabelo.

- Qual?

- Como?

- Sim, meu senhor, que cabelo?

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Um querido amigo me deve, por conta de um outro rito de passagem, o eleitoral - que seria vencido no primeiro turno e por larga margem pela candidata petista, hoje a primeira presidente mulher da nossa história, duas garrafas de uísque John Walker Blue Label. Mas até agora eu, de azul, só vi o céu, como naquela belíssima música de Irving Berlin. Blue skies/Smiling at me/Nothing but blue skies/ Do I see...

* * *

Estamos também transitando de governo, mas mantendo a tradição de Lula. Como teria reagido um feroz e oposicionista PT diante da proibição de uma greve no governo FHC? Salve a neomendacidade política lulista que talvez seja o sintoma mais flagrante de que transitamos para um meio-termo efetivamente burguês, iluminado pelo bom senso dos interesses próximos e, queira Deus, dos distantes também.

Aliás, a César o que é de César: o governador Sérgio Cabral falou franca, corajosa e abertamente de dois temas que temos que discutir e não podemos mais marginalizar: o aborto e o jogo como parte da bagagem da liberdade englobada pela cidadania republicana. Não sou favorável a nenhum descontrole, sei da gravidade e das contradições implicadas, mas penso que se pode estabelecer controles, sem os quais seria impensável diminuir ou limitar o hedonismo desabrido que conduz ao consumo de drogas, à dissipação pela jogatina e ao crime.

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Finalmente, aproveito a oportunidade para desejar ao leitor um feliz ano-novo. Viva os bons momentos produzidos pelas festas. Aproveite essa brecha de alegria e despreocupação que a figura da Sagrada Família e dos Reis Magos, com seus inefáveis presentes, exemplificam. O sofrimento é permanente, mas ele é a maior prova de que o amor existe.
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A vitória da aparência sobre a realidade

J.R Guzzo
Revista Veja 

O registro em cartório de cerca de 2200 paginas contendo todas as obras, realizações e triunfos atribuídos por Lula a si mesmo é uma inutilidade, mas fecha a perfeição um governo em que as versões valeram mais que os fatos
Pouco antes de completar o último dia de mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mandou imprimir de uma vez só seis livros de formato extragrande, com cerca de 2200 páginas no total, para deixar anotadas todas as obras, realizações e triunfos que, segundo ele próprio. seu governo deixará para o Brasil. Mandou até registrar em cartório o que está escrito ali, fiel à antiga tradição dos políticos brasileiros de colar estampilha e reconhecer firma em declarações ou promessas que fazem, na esperança de que um carimbo no tabelionato de notas possa lhes dar uma cara mais verdadeira aos olhos do público em geral. E mais perda de tempo do que qualquer outra coisa. Quem é que vai ter coragem de ler uma montoeira de papel desse tamanho? O próprio Lula, com certeza, não vai algo que combina muito bem, aliás, com a despedida de um governo que representou com perfeição a vitória da aparência sobre a realidade. De nada serve, além disso, encarar esse tratado em seis volumes para ser informado, por exemplo, de que Lula fez o "trem-bala" e outras maravilhas; nem o trem-bala nem as maravilhas passam a existir só porque os livros dizem que existem. Mais que tudo, a obra 6 inútil porque não mostra o que houve de melhor, realmente, no governo que agora se encerra. E o melhor do governo Lula foi o que ele não fez. O lado positivo de seus oito anos na Presidência começa e termina aí -no mal que poderia ter feito e acabou não fazendo. Não 6 mais que isso. Também não 6 menos.

Naturalmente, um governo como o de Lula, que acaba com mais de 80% de aprovação popular segundo os institutos de pesquisa, leva a um julgamento quase automático: só pode ter sido muito bom, com números desse porte. Como seria possível haver qualquer opinião diferente? De fato, 80% da população brasileira, ou até mais, 6 uma multidão. Ao mesmo tempo, 6 igualmente verdadeiro que não existe nada de bom, em si, numa multidão o fato de juntar muitos, ou quase todos, não a torna mais virtuosa nem quer dizer que esteja certa. Maiorias servem para escolher quem vai governar; não 6 sua função definir o que 6 bom e o que 6 ruim, nem tornar obrigatório que se concorde com elas. A população brasileira, em massa, acha que Lula fez um grande governo? Tudo bem, e melhor para ele. Talvez seja essa mesmo, por sinal, a maneira mais prática ou eficaz de julgar um presidente e sua obra. Nada disso, por6m, tem força para mudar os fatos. Os fatos são o que são, não aquilo que parecem ou aquilo que se acha deles; o que aconteceu 6 aquilo que foi possível observar, não aquilo que se conta ou se imagina. No caso de Lula, 6 um fato da vida real que seu governo não fez muitas coisas que poderia ter feito, ou se esperava que fizesse, ou foi pressionado a fazer. E nisso, ao final das contas, que está o seu principal mérito.

Lula, para começar, não desmanchou a política econômica do seu antecessor do combate à inflação aos aumentos reais do salário mínimo, da formação de superávit nas contas públicas à estratégia de juros, foi mais fiel ao roteiro que recebeu de Fernando Henrique do que seria, talvez, um sucessor vindo do mesmo partido do ex-presidente. Não demitiu o presidente que nomeou para o Banco Central, Henrique Meirelles, embora o PT e suas vizinhanças tivessem feito todo tipo de pressão para conseguir isso, nem cedeu à tentação de fazer demagogia com a taxa de juro. Não fez o "programa econômico da esquerda", como exigiam à sua volta. Não experimentou nenhum dos truques de circo que, até o Plano Real, marcaram a condução da economia brasileira durante anos a fio. Não fez a "reforma agrária" fez exatamente o contrário, o que foi decisivo para o Brasil mais do que dobrar a produtividade rural entre 1988 e 2008. Não estatizou nada do que fora privatizado nos governos anteriores, embora falasse o tempo todo contra as privatizações. Não sustentou para valer no Congresso nenhuma proposta para reduzir a liberdade de imprensa embora, também aí, tenha passado quase todo o seu mandato dizendo que o Brasil precisava colocar os meios de comunicação "sob o controle da sociedade", ou das "organizações sociais"

Lula não tocou no direito de propriedade, na liberdade de iniciativa nem no respeito ao cumprimento de contratos, apesar de toda a sua discurseira contra "os ricos" e "as elites". Não hostilizou o capital estrangeiro, que bateu recordes de investimento no Brasil durante o seu governo, apesar de todas as pragas que rogou contra o "imperialismo" e as "grandes potências". Não socializou nada; foi de esquerda no microfone e neoliberal com a caneta de presidente na mão, ou, como observou o ex-ministro Delfim Netto, deveria ser festejado como um dos heróis do capitalismo brasileiro. Não mexeu nas normas e nos programas montados no governo anterior para fortalecer o sistema bancário, o que muito ajudou o Brasil a superar as crises financeiras internacionais dos últimos anos. Não transformou o Brasil numa Cuba ou Venezuela, países que tanto diz admirar; talvez não conseguisse, mas o fato 6 que não tentou. Não levou adiante a aventura de tentar um terceiro mandato, e vai sair do Palácio do Planalto no dia marcado. Não fez, em suma, o governo que o seu partido queria, ou dizia querer a ponto de o grão-cacique José Dirceu afirmar que só agora, quando ele sair e Dilma Rousseff entrar, o PT vai chegar de fato ao poder. E talvez o maior de todos os elogios que Lula poderia receber.

Isso é o que se vê de bom, e isso 6 o que se tem. No mais, os oito anos de governo Lula são quase sempre uma caminhada por um mundo escuro. Não há, no conhecimento público, um único ato de generosidade em sua conduta durante esse tempo todo. Comportou-se desde o começo, e cada vez mais, com uma combinação de soberba, arrogância e mania de grandeza que provavelmente não encontra paralelo em nenhum outro presidente brasileiro. Passou o governo inteiro dizendo que ninguém, em 500 anos, fez mais pelo Brasil do que ele. Atribuiu a si obras imaginárias, ou realizações que vêm sendo construídas há anos. Disse, mais de uma vez, que os outros países do mundo, sobretudo os desenvolvidos, deveriam aprender com ele como se deve governar; em diversas oportunidades, comparou-se a Deus. Foi uma marca sombria de sua passagem pela Presidência, ao mesmo tempo, o rancor declarado aos adversários, gente que, em seu modo de ver a vida política, deveria ser "exterminada", e em relação à qual queria "vingança". Nunca deixou de mostrar um grau muito baixo de tolerância com qualquer opinião diferente das suas; num de seus momentos de maior excitação, acusou um repórter que lhe havia desagradado de "doente mental" e recomendou que ele se submetesse a "tratamento psiquiátrico". A mensagem, aí, parece ser bem clara: "Quem discorda de mim só pode ser louco"

Lula, pelo demonstrado em sua conduta, fez questão de aproveitar ao máximo as oportunidades que teve para utilizar mal a popularidade serviu-se dela, dia após dia, como uma autorização para dizer e fazer qualquer coisa que lhe passasse pela cabeça, como na ocasião em que se colocou contra os presos poIíticos cubanos que faziam greve de fome e a favor dos seus carcereiros ou quando disse que era preciso respeitar a legislação do Irã, que condenou à morte por apedrejamento uma mulher acusada de adultério. Lula também promoveu, como ninguém fez antes dele no Brasil, um culto sistemático à ignorância. Podia, mas não quis, ter curado a sua, através do esforço para aprender: preferiu o caminho mais comodo de transformar a ignorância em virtude e o conhecimento em defeito. Do primeiro ao último dia de governo, insistiu em dizer que não precisou de mais que o 4° ano primário para chegar à Presidência da República, enquanto tanta gente que estudou não conseguiu nada. Mais: sempre deixou transparecer o seu desprezo por quem sabe mais do que ele, e a sua hostilidade a quem estudou; na sua opinião. é tudo gente suspeita de ser "antipovo". Não parou de dizer que foi preciso "um operário", ou "um menino sem estudo" do Nordeste, para fazer "a transposição das águas" do Rio São Francisco ou armar a maior "negociação de paz" jamais conseguida até agora no Oriente Médio. para encontrar petróleo no pré-sal ou construir "mais universidades" que qualquer outro presidente brasileiro.

Um jogador que está com boas cartas na mão, dizia Oscar Wilde, deveria ter a obrigação de jogar limpo. Não foi o que Lula fez. Como presidente da República, recebeu uma maravilha de jogo ajuda do Congresso, apoio popular, situação favorável na economia mundial, uma oposição que nunca chegou a incomodar de verdade. Mas Lula não se contentou com os favores que recebeu da sorte. Desde o início, preferiu embaralhar os fatos para criar uma realidade da qual só tirou proveiro. O problema é que a realidade criada por ele é uma falsificação maciça dos acontecimento e nada deixa isso mais claro do que a sua decisão de transformar o mensalão, um dos casos de corrupção mais comprovados e grosseiros da história política do Brasil. numa "tentativa de golpe" na qual se coloca, ao mesmo tempo, nos papéis de vítima e de herói o campeão da causa popular que "eles" não conseguiram derrubar. Ao vencedor, as batatas, claro, e Lula recebeu um batatal inteiro. Mas nem ele nem seu governo podem dar existência ao que não existiu nem podem levar, na hora da partida, mais crédito do que merecem.
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Um ano intenso

Míriam Leitão

O GLOBO

O ano de 2010 teve mais crescimento, mais inflação, mais emprego, mais incerteza externa, mais alta nos preços de commodities do que se esperava. Foi um ano que surpreendeu pela intensidade, mas não pela direção dos eventos. Já se esperava uma alta do PIB, mas foi ainda maior. Sabia-se que os países emergentes puxariam o crescimento, mas não que dependeria só deles.

Foi um dos melhores anos da história recente da América Latina, e terminou com uma alta do PIB regional de 6%. Apesar de o Brasil ter crescido bem mais do que os 5,5% que o mercado previa, não foi o país que mais cresceu. Ficou atrás do Paraguai, Uruguai, Peru e Argentina. Mas na Argentina é bom lembrar que a qualidade do crescimento não é a mesma, porque o país está flertando com inimigos perigosos: a inflação em dois dígitos e a manipulação do índice de preços. Só o Haiti e a Venezuela tiveram desempenho negativo do PIB. O Haiti pelas tragédias que se seguiram ao terremoto; a Venezuela como resultado do desatino do seu governante.

A China crescendo ajudou a puxar o mundo e elevou os preços de produtos que o Brasil exporta, o que nos ajudou a terminar o ano com exportações recordes. Por outro lado, pôs mais um pouco de lenha na fogueira da inflação. O IPCA terminou o ano bem acima do centro da meta e os IGPs na perigosa marca dos 11%.

A Europa foi o grande centro de incerteza, mas não o único. O persistente baixo crescimento dos Estados Unidos levou a uma política de expansão fiscal e monetária que espalhou seus efeitos pelo mundo inteiro. Apesar de estarem se tornando relativamente menores, em relação ao PIB global, os Estados Unidos têm uma economia grande demais para ser "gostoso" vê-lo entrar em crise, como disse em mais uma declaração despropositada o incorrigível presidente Lula. A crise americana foi ruim para o mundo todo. Um dos seus efeitos foi a onda de queda da moeda americana em vários países, principalmente nos emergentes.

A política de controle do câmbio na China ficou ainda mais destoante. O debate concentrou as atenções nas reuniões das maiores economias do mundo e foi batizado pelo ministro Guido Mantega como guerra cambial. É assunto inconcluso e destinado a produzir efeitos em 2011 e além. O mundo das moedas tem ainda vários desequilíbrios. O yuan chinês não flutua como outras moedas, dando ao produto exportado pela China uma competitividade extra e desleal; o dólar, moeda de referência do comércio internacional, cai em relação à maioria das moedas; o euro tem dúvidas sobre seu próprio futuro.

Em outubro, a Fazenda dobrou o IOF sobre a entrada de capital para renda fixa para tentar conter a enxurrada de dólar procurando o ganho alto dos juros brasileiros. Naquela época, a moeda americana estava em R$1,69. No último dia útil do ano, fechou em R$1,66. Ficou tudo na mesma. O FMI não soube o que fazer, e o G-20 não foi além das palavras de uma declaração de intenções de que os países evitariam desvalorizações competitivas.

No Brasil, não foi apenas um ano de crescimento econômico, foi de intensa atividade de compra e venda de empresas. O varejo viveu o melhor ano da década, com crescimento forte de vendas ainda não completamente contabilizadas e, além disso, continuou a temporada de concentração do grande varejo iniciada em 2009 com a compra das Casas Bahia pelo Grupo Pão de Açúcar, que já havia comprado o Ponto Frio. Para citar apenas alguns dos negócios na temporada de fusões e aquisições: a Ricardo Eletro e a Insinuante se juntaram e a Magazine Luiza comprou a rede nordestina Maia.

O debate eleitoral foi tão exaustivo quanto inútil. Tanto oposição quanto governo concentraram-se em assuntos não relevantes, em falsos problemas, repetindo fórmulas supostamente inteligentes criadas pelos marqueteiros. Nesse aspecto, a única e breve novidade foi a candidatura de Marina Silva, que virou o estuário dos descontentes pela disputa ao mesmo tempo radicalizada e desprovida de significado. Já se sabia que o presidente Lula considerava ponto de honra eleger Dilma Rousseff, mas não que ele transformaria o governo num comitê eleitoral. A intensidade com que ele fez campanha é um risco para a qualidade da democracia brasileira.

Com o mesmo propósito eleitoral, o governo fez uma perigosa política fiscal pró-cíclica, aumentando os gastos em ano de crescimento. Também estava previsto uma política fiscal mais frouxa pelo ciclo eleitoral, mas não que o governo iria manipular a contabilidade pública para tentar atingir a meta fiscal num ano em que a arrecadação aumentou de forma expressiva.

Já se sabia que a oposição estava dividida, mas não que faria uma campanha tão sem rumo e tão sem propósito. O país tinha noção que a Justiça estava confusa sobre a validade da Lei do Ficha Limpa, mas não que ficaria tão desnorteada deixando passar o tempo e decidindo de forma tão contraditória.

No Rio, a esperança com as operações bem sucedidas das UPPs nasceu timidamente nas primeiras experiências realizadas em anos anteriores, mas ninguém esperava que o Complexo do Alemão fosse tomado tão cedo. O próprio governador Sérgio Cabral contou que a operação militar foi antecipada em um ano e meio pela série de atentados ocorridos na cidade do Rio. De novo, a marca do ano: a direção dos eventos era prevista, mas a intensidade foi inesperada.

Na maioria dos fatos foi assim, o ano confirmou o que se esperava dele, mas surpreendeu por ser intenso em todos os sentidos. Tenham todos uma boa passagem de ano, de alegria intensa.
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Política e globalização, hoje e amanhã

Pedro da Motta Veiga

O ESTADO DE S. PAULO

Termina a primeira década do século 21. Sob a ótica das relações internacionais, o contraste entre esta década e os anos 90 do século 21 não poderia ser maior. Os anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim e ao colapso do socialismo alimentaram a hipótese de um mundo que convergiria em torno de políticas domésticas e regimes internacionais de corte liberal. O triunfo do capitalismo e da democracia prenunciava algo que Fukuyama identificou como o "fim da história". Ledo engano.

A primeira década do novo século começou sob o signo do atentado de 11 de setembro de 2001 e termina sob os impactos duradouros da crise econômica desencadeada na segunda metade de 2008. Entre os dois eventos, o que caracterizou a década foi a emergência de um cenário em quase tudo diferente do que se previa nos anos 90. A década que termina assistiu à erosão, nos países centrais do capitalismo, do consenso liberal que respaldou a ordem econômica global vigente a partir da 2ª Guerra Mundial. A emergência da China como ator de primeira grandeza na economia internacional acelerou e aprofundou este processo, que desembocou em questionamento do sistema multilateral de governança e da própria globalização - cada vez mais percebida, na opinião pública dos países desenvolvidos, como fonte de insegurança econômica e política. Descrédito do liberalismo, ressurgimento do nacionalismo econômico e emergência de novos atores nacionais alavancados por modelos diversos de capitalismo de Estado são os traços dominantes do ambiente político em que hoje evolui o sistema internacional.

Nada disso, no entanto, impediu que, ao longo da década, a globalização se aprofundasse, em sua dimensão microeconômica. Desenvolveram-se novos canais e modalidades de interdependência, muitos deles vinculados à emergência chinesa: as exportações de commodities latino-americanas para a China, as crescentemente diversificadas relações econômicas entre a China e a África, sem falar na relação macroeconômica que vincula EUA e China.

A desenvoltura demonstrada pelos vetores da globalização econômica e financeira perante a um ambiente político que lhes é crítico, se não refratário, nos países líderes do capitalismo, não deixa de surpreender. Não é razoável esperar que esta configuração tenha a vida longa, especialmente no cenário que prevalecerá nos primeiros anos da nova década. Nesse cenário, os países desenvolvidos terão crescimento anêmico, o dinamismo econômico estará concentrado nos emergentes e a crise de legitimidade do sistema multilateral de governança não será superada. A hipótese de que, desse cenário, emergirá naturalmente uma ordem global multipolar é frágil: como observam Bremmer e Roubini em recente artigo, os principais concorrentes dos EUA estarão muito ocupados com problemas domésticos e em suas fronteiras para assumir responsabilidades internacionais significativas.

Uma ordem global "não polar" seria a resultante dessas evoluções, reduzindo incentivos para a difícil busca de soluções cooperativas em escala internacional (vide o G-20) e ampliando pressões para a adoção de políticas nacionais de proteção do emprego doméstico e "exportação" dos custos dos ajustes a fazer. A trajetória de acumulação de tensões domésticas e internacionais relacionadas à crescente interdependência e competição entre as economias - característica da década que termina - seguirá seu curso e se intensificará.

O ambiente político acabará por cobrar um preço à globalização. Como isso se dará e quais os seus efeitos sobre uma ordem global em transição são questões em aberto, mas a simples perspectiva desta "cobrança" não dá margem para otimismo. Não há, porém, nenhum desfecho inelutável para essa evolução, nem ela nos leva necessariamente aos piores cenários de crise e conflito internacional. Os principais players da economia e da política internacional - especialmente China e emergentes - ainda precisam muito da estabilidade e do crescimento global para encaminhar sérios problemas domésticos e afirmar-se regionalmente.

Diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento
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Mais déjà-vu ou novas estratégias?

Washington Novaes - O Estado de S.Paulo


E se chega ao fim do ano com a incômoda sensação - relendo o que o autor destas linhas escreveu neste espaço no primeiro dia de 2010 - de que o tempo não passou ou não foi aproveitado para enfrentar as graves questões ali enumeradas. De novo, várias capitais e outras cidades às voltas com inundações, evidenciando seu despreparo para se adaptarem às mudanças climáticas com programas de readequação das áreas urbanas aos eventos extremos, cada vez mais frequentes. O último balanço do ano acusa 250 mil mortos no mundo em consequência de "desastres naturais" (incluindo enchentes, terremotos, etc.), mais que os 115 mil que perderam a vida em atos terroristas ao longo de 40 anos (The Washington Post, 20/12). E US$ 222 bilhões de prejuízo.

Mas pouco ou quase nada conseguimos avançar, como demonstrou a reunião da Convenção do Clima em Cancún - com duas questões novas e graves: 1) A Bolívia recorrendo e cortes internacionais porque seu voto na reunião - que impedia o consenso indispensável para decisões - não foi levado em conta; 2) os países-ilhas, como o Arquipélago de Marshall, com 61 mil habitantes, perguntando quem assumirá a solução se ele desaparecer do mapa com a elevação do nível do mar (a seu pedido, a Universidade Columbia, nos EUA, discutirá a questão em abril). Enquanto isso, países "emergentes" e "em desenvolvimento acusam os industrializados e recusam-se a assumir compromissos de redução de emissões - deslembrando a proposta brasileira de 1997, em Kyoto, de que cada país deveria assumir cotas de redução proporcionais à sua contribuição para o acúmulo de gases na atmosfera desde a revolução industrial e às atuais emissões.

E assim seguimos impermeabilizando nossas cidades, entupindo-as com veículos (no mundo, são 170 mil veículos novos por dia), assoreando rios com deposição de esgotos, sem regras para a expansão urbana. Diz a Agência Nacional de Águas que em seis anos 1.896 de 2.965 municípios analisados atingirão o limite máximo de fornecimento de água. Mas as perdas de água nas redes urbanas continuam por volta de 40% (26% em São Paulo), sem que haja programas de financiamento para projetos de recuperação e manutenção das redes, muito mais baratos que construir mais barragens, adutoras e estações de tratamento. Quase metade dos brasileiros não conta com redes de coleta de esgotos em sua casa, pelo menos 20 milhões não recebem água tratada, menos de 30% dos esgotos coletados recebem algum tratamento. Mas não se cumprem sequer os objetivos previstos no PAC e a "universalização" do saneamento levará pelo menos 20 anos.

Agora temos uma Política Nacional de Resíduos Sólidos. Mas nos faltam instrumentos e recursos para dar destinação adequada a pelo menos 230 mil toneladas diárias de lixo domiciliar e comercial. Os municípios gastam hoje mais de R$ 15 milhões por dia na coleta, mas os aterros das grandes cidades estão quase todos esgotados e 70% dos municípios não dão destinação adequada aos resíduos. Com a colaboração do Senado - que suprimiu no projeto de lei nacional a indicação de que a incineração só seria permitida se inviáveis o reaproveitamento, reciclagem ou aterramento do lixo -, os caríssimos e inadequados projetos de incineração avançam a passos céleres em vários lugares. Nos últimos dias do ano, o decreto-lei presidencial que regulamentou a política de novo restabeleceu a prioridade para outras possibilidades.

A Convenção da Biodiversidade em Nagoya demonstrou a gravidade da situação no mundo, que consome 30% mais de recursos naturais do que o planeta pode repor. Mas se tenta por aqui mudar o Código Florestal para reduzir as exigências de conservação. Avança-se um pouco na Amazônia na questão do desmatamento, mas se vai em frente a todo vapor com os projetos de novas hidrelétricas, comentados aqui na semana passada. E o Cerrado, que este ano se transformou num imenso caldeirão, com número recorde de queimadas, continua a perder vegetação em 14 mil km2 anuais, segundo o governo, 22 mil segundo as ONGs. Até pelo avanço descontrolado do plantio de cana-de-açúcar. Certamente com consequências muito fortes, inclusive no acúmulo de água para as três bacias hidrográficas que abastece, e na agricultura, que já se ressente de perdas fortes. Mais que nunca, fica evidente a ausência da chamada "transversalidade" nas ações do governo federal - o ex-secretário-geral do Ministério do Meio Ambiente João Paulo Capobianco chegou a dizer que "o governo não tem política ambiental".

Quando se reveem temas sociais tratados ao longo do ano, fica evidente que o setor de saúde continua empacado, e agora com a alegação de que é preciso recriar a CPMF para financiá-lo, quando a administração federal continua a gastar mais de R$ 150 bilhões por ano em pagamento de juros bancários e a investidores em papéis financeiros (mais de 12 vezes o orçamento anual do Bolsa-Família). Mas não se empenha numa verdadeira reforma tributária, que cesse com os programas de incentivos fiscais concedidos pelos Estados e que somam centenas de bilhões de reais por ano - concentrando a renda e desviando recursos da saúde e da educação. Esta última, sem profundas modificações, não conseguirá avançar na qualificação de pessoas para o mercado e na abertura de saídas para jovens que abandonam a escola e aderem à marginalidade.

É evidente que o País avançou em muitas áreas sociais nos últimos anos, com a estabilização monetária, os vários programas sociais consolidados, o crédito consignado. Mas terá de conceber novas estratégias, se não quiser ser vítima da crise financeira mundial e das transformações internacionais na produção de bens que concorrem com os nossos.

Agora, é esperar se as novas administrações se conscientizarão das novas realidades ou seguirão no déjà-vu inquietante.

JORNALISTA E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR 

A piora da Europa

Miriam Leitão 
O Globo

O ano de 2010 ficará na história da Zona do Euro como um momento em que se pensou no impensável: desfazer a União Monetária. Quando economistas e governantes olharam para essa possibilidade se viu que ela é mais difícil de fazer do que se imaginava. Uma consulta mostrou que hoje há apoio na Alemanha para a volta ao marco. Se isso acontecer, será um enorme retrocesso no projeto de união. Esse debate não terminou na Europa, continuará no ano que vem.

Em dezembro de 2009, três agências rebaixaram a classificação de risco da Grécia. Parecia ser um problema apenas grego. Como o país continuava tendo grau de investimento e representa só 3% do PIB da Zona do Euro, o fato não preocupava. Um ano depois, gregos e irlandeses já foram socorridos; um fundo de estabilidade foi criado; Portugal e Espanha estão em crise de confiança. A Europa afunda o PIB mundial.

No dia 17, a Irlanda caiu cinco pontos na classificação da Moody’s. Mesmo assim, ficou dois degraus à frente do Brasil. Mas, evidentemente, a situação brasileira é melhor.

A criação de um fundo permanente de socorro é uma mudança profunda na Zona do Euro. Significa o reconhecimento pelo bloco de que seus países podem ter problemas de solvência. Mais do que isso: eles poderão descumprir as metas do tratado de Maastricht — de déficit de 3% e dívida de 60% do PIB — e não só permanecer no bloco como também ser socorridos. Uma mudança que é resultado dos estragos provocados pela crise de 2008.

— Hoje, há um risco financeiro importante na Europa como um todo. Os bancos dos países grandes podem ter problemas caso os países periféricos não consigam pagar suas dívidas. E não há garantia de que haverá dinheiro para mais um socorro ao sistema financeiro, caso ele aconteça, como foi na crise de 2008 — afirmou Raphael Martello, da Tendências consultoria.

Até a crise, os spreads na Zona do Euro — diferença entre os juros cobrados para a rolagem da dívida dos países — eram iguais, no mesmo nível da Alemanha. Todos eram vistos da mesma forma; governos austeros e gastadores conseguiam crédito com a mesma taxa. Em 2010, o mercado começou a mudar e tratar de forma diferente o subgrupo problemático. Essa turma da encrenca ficou conhecida por uma sigla: os chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha).

— A percepção era que a economia ia se recuperar forte em 2010. Esse cenário foi por água abaixo a partir do segundo trimestre, quando o problema da Grécia veio à tona. Todo mundo caiu na real: o endividamento era geral. Depois que a Grécia foi socorrida, inclusive com recursos do FMI, o problema Europa saiu do radar por seis meses. No final do ano, foi a vez da Irlanda, que também precisou receber dinheiro do FMI e da União Europeia — disse Monica de Bolle, da Galanto consultoria.

Dos quatro países do PIGS, dois já precisaram de socorro. A dúvida é se os outros, Portugal e Espanha, conseguirão escapar em 2011.

Parte da desconfiança sobre os portugueses é reflexo de uma artimanha fiscal, que também foi usada no Brasil. O governo contabilizou receitas extraordinárias para cumprir a promessa de redução do déficit deste ano, de 9,3% para 7,3%. Os investidores refizeram as contas e perceberam que ele caiu muito menos, para 9%. Com isso, o esforço para cumprir o prometido em 2011, de chegar a 4,3%, será muito grande e quase impossível de ser cumprido. Os problemas portugueses se completam com uma dívida pública de 80% do PIB, baixa perspectiva de crescimento e a dificuldade que o governo teve para a aprovação do Orçamento do ano que vem. Não há garantia política de que os cortes de gastos serão feitos.

— O próximo da fila é Portugal, que tem 10% do PIB em dívida para rolar no início de 2011 — afirmou Monica.

Em efeito dominó, o risco português chega à Espanha pela exposição dos bancos espanhóis, que carregam US$ 100 bilhões de títulos da dívida de Portugal. O país ainda tenta se recuperar do estouro da crise imobiliária, que elevou a taxa de desemprego para acima de 20%. Nos próximos dois anos, a Espanha terá que rolar 251 bilhões de euros em dívida. Pelo tamanho de sua economia, que é o dobro da soma de Grécia, Irlanda e Portugal, um problema na Espanha teria efeitos mais sérios para a economia mundial:

— Se Portugal e Espanha precisarem de socorro, os recursos que estão disponíveis ficarão escassos. Se a crise bater na Espanha, teremos um problema grego potencializado — comentou Martello.

Quem ainda assiste de longe — mas com cautela — ao aumento do risco é a Itália, que tem uma das maiores dívidas públicas dos países com grau de investimento, medidos pela Standard & Poors: 116%. A vantagem da Itália é que sua economia é maior, mais diversificada e sua dívida de vencimento mais longo. O setor financeiro também resistiu bem à crise de 2008, e o governo não deve ter que se endividar para socorrer os bancos do país. Por outro lado, a governabilidade é fraca. O governo Sílvio Berlusconi se sustenta em parte pelo temor de que uma troca possa piorar a crise.

O euro deve fechar o ano com desvalorização de 7,4% em relação ao dólar, e isso depois de toda a enxurrada de dólares promovida pelo governo americano. O ano de 2010 não foi, definitivamente, um bom tempo para a Europa. O gelo que castigou o continente não é apenas dos termômetros baixíssimos. A economia continuará fria em 2011.
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Caleidoscópio mundial

José Luís Fiori
Valor Econômico

Durante a primeira década do Século XXI, o Brasil conquistou um razoável grau de liberdade para poder definir autonomamente sua estratégia de desenvolvimento e de inserção internacional num mundo em plena transformação. O sistema mundial saiu da crise econômica de 2008, dividido em três blocos cada vez mais distantes, do ponto de vista de suas políticas e da sua velocidade de recuperação: os EUA, a União Europeia e algumas grandes economias nacionais emergentes, entre as quais se inclui o Brasil.

Mas do ponto de vista geopolítico, o sistema mundial ainda segue vivendo uma difícil transição - depois do fim da Guerra Fria - de volta ao seu padrão de funcionamento original. Desde o início do século XIX, o sistema interestatal capitalista se expandiu liderado pela Grã Bretanha, e por mais algumas potências europeias, cuja competição e expansão coletiva foi abrindo portas para o surgimento de novos "poderes imperiais", como foi o caso da Prússia e da Rússia, num primeiro momento, e da Alemanha, EUA e Japão, meio século mais tarde. Da mesma forma como aconteceu depois da "crise americana" da década de 1970.

Depois da derrota do Vietnã, e da reaproximação com a China, entre 1971 e 1973, o poder americano cresceu de forma contínua, construindo uma extensa rede de alianças e uma infraestrutura militar global que lhe permite até o hoje o controle quase monopólico, naval, aéreo e espacial de todo o mundo. Mas ao mesmo tempo, essa expansão do poder americano contribuiu para a "ressurreição" militar da Alemanha e do Japão e para a autonomização e fortalecimento da China, Índia, Irã e Turquia, além do retorno da Rússia, ao "grande jogo" da Ásia Central e do Oriente Médio. Os revezes militares dos Estados Unidos na primeira década do século desaceleraram o seu projeto imperial. Mas uma coisa é certa, os EUA não abdicarão voluntariamente do poder global que já conquistaram e não renunciarão à sua expansão contínua, no futuro. Qualquer possibilidade de limitação desse poder só poderá vir do aumento da capacidade conjunta de resistência das novas potências.

Por outro lado, depois do fim do Sistema de Bretton Woods, entre 1971 e 1973, a economia americana cresceu de forma quase contínua, até o início do século XXI. Ao associar-se com a economia chinesa, a estratégia americana diminuiu a importância relativa da Alemanha e do Japão, para sua "máquina de acumulação", a escala global. E ao mesmo tempo, contribuiu para transformar a Ásia no principal centro de acumulação capitalista do mundo, transformando a China numa economia nacional com enorme poder de gravitação sobre toda a economia mundial.

Essa nova geometria política e econômica do sistema mundial se consolidou na primeira década do século XXI, e deve se manter nos próximos anos. Os Estados Unidos manterão sua centralidade dentro do sistema como única potência capaz de intervir em todos os tabuleiros geopolíticos do mundo e que emite a moeda de referência internacional. Desunida, a União Europeia terá um papel secundário, como coadjuvante dos Estados Unidos, sobretudo se a Rússia e a Turquia aceitarem participar do "escudo europeu anti-mísseis", a convite dos EUA e da Otan. Nesse novo contexto internacional, a Índia, o Brasil, a Turquia, o Irã, a África do Sul, e talvez a Indonésia, deverão aumentar o seu poder regional e global, em escalas diferentes, mas ainda não terão por muito tempo capacidade de projetar seu poder militar além das suas fronteiras regionais.

De qualquer forma, três coisas se podem dizer com bastante certeza, neste início da segunda década do século XXI:

1. Não existe nenhuma "lei" que defina a sucessão obrigatória e a data do fim da supremacia americana. Mas é absolutamente certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China numa potência global, nem muito menos no líder do sistema mundial.

2. Terminou definitivamente o tempo dos "pequenos países" conquistadores. O futuro do sistema mundial envolverá - daqui para a frente - uma espécie de "guerra de posições" permanente entre grandes "países continentais", como é o caso pioneiro dos EUA, e agora é também o caso da China, Rússia, Índia e Brasil. Nessa disputa, os EUA já ocupam o epicentro do sistema mundial, mas mesmo antes que os outros quatro países adquiram a capacidade militar e financeira indispensável à condição de potência global, eles já controlam em conjunto cerca de 1/3 do território, e quase 1/2 da população mundial.

3. Por fim, a definição da estratégia internacional do Brasil não depende da "taxa de declínio" dos EUA, mas não pode desconhecer a existência do poder americano. Assim mesmo, gostem ou não os conservadores, o Brasil já entrou no grupo dos Estados e das economias nacionais que fazem parte do "calidoscópio central" do sistema, onde todos competem com todos, e todas as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos do país.

José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007.
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2010, New York Times

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Feliz 2011 a todos.
Jefferson
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Enquanto a revolução não vem

João Mellão Neto - O Estado de S.Paulo

Dilma Rousseff, durante a campanha eleitoral, não se cansou de afirmar: "A gente nunca pode apostar nas virtudes dos homens, porque todos os homens e mulheres são falhos. Precisamos apostar na virtude das instituições." Ela diz ter ouvido esse pensamento do ex-ministro Márcio Thomaz Bastos.

Pelo visto, Dilma gostou. Tanto que vem repetindo esse mantra em todas as ocasiões cabíveis. O argumento valeu até mesmo quando lhe perguntaram se aceitaria o adversário José Serra em seu futuro governo. Tudo bem, ela aceitaria. E, pelo seu raciocínio, as instituições se encarregariam de vigiá-lo.

Quanto a Bastos, embora não seja o autor do conceito, soube expressá-lo com propriedade Foram dois economistas liberais, Ronald Coase e Douglass North - ambos Prêmios Nobel de Economia -, os pioneiros no trato da questão.

É surpreendente ouvir tais assertivas da boca de pessoas que, ao menos em tese, comungam as ideias da esquerda. Isso porque os economistas citados são mais identificados com o pensamento dito conservador. Seus estudos têm como pano de fundo o "livre mercado" e a "iniciativa privada". Coisas do capitalismo, como se sabe. Vale a pena abordar esse tema.

Em primeiro lugar, uma pergunta: por que será que as pessoas praticam atos arriscados como empreender e criar empresas, ou a emprestar dinheiro, comprar e vender mercadorias?

Afinal, como afirmam os intelectuais - em especial os da sucursal latino-americana -, o mercado é um ambiente hostil, no qual os indivíduos estão sempre tentando se prevalecer da boa-fé alheia e enriquecer à custa da exploração do próximo... Quem garante os cordeiros contra os lobos? Não é mais seguro ficar em casa e não se prestar a aventuras de final imprevisível?

A resposta é que as pessoas têm confiança. Empreendem e comerciam porque sabem que estão garantidas pelas instituições. As pessoas confiam umas nas outras. E não é por causa das virtudes que os outros alegam ter, mas porque as instituições nos obrigam a todos a agir com retidão.

Que instituições são essas? O Estado? Não apenas ele. O Estado nada mais é do que um reflexo dos costumes, crenças e valores da sociedade. Não é o Estado, mas a sociedade, que cria as instituições. E as modela de acordo com o que pratica e com aquilo em que acredita.

Existem, assim, dois tipos de instituições: as formais, que são as igrejas, a escola, o poder público, as leis, as Forças Armadas, a universidade, etc.; e as ditas informais, como os preceitos religiosos, a ética, a moralidade e tudo o mais em que as pessoas acreditam e que norteia o seu comportamento.

Mesclando as instituições formais e informais, as pessoas sentem-se à vontade para interagir economicamente. Podem confiar no próximo porque sabem de antemão que este não vai lográ-las. É num ambiente assim que florescem o progresso e a prosperidade.

Os povos que mais se desenvolvem são justamente aqueles onde existem instituições mais maduras e apropriadas.

E onde fica o Brasil nessa história? No meio do caminho. A democracia, o Estado de Direito, a Constituição e o quase consenso que existe com relação às diretrizes da economia: tudo isso é garantido por instituições fortes. Alguém já disse que as instituições são como linhas de alta tensão. À primeira vista, parecem inertes e inofensivas. Mas quem ousa tocar nelas leva um coice e morre torrado.

Por falar nisso, vale ressaltar que nossas esquerdas também têm consciência da importância das instituições, que no dicionário delas são chamadas genericamente de "superestrutura".

Antes de alcançar o poder, os petistas e que tais diziam que era necessária uma insurreição popular para que pudesse ser implantado o socialismo. Agora, depois que chegaram lá, trocaram as ideias incendiárias de Ernesto Guevara pelas mais amenas, de Antonio Gramsci.

Explicando melhor: os ensinamentos e o exemplo de Che Guevara na década de 1960 passaram a todas as esquerdas latino-americanas a noção de que - existindo ou não "condições objetivas" - a transição para o socialismo deveria ser feita de imediato. E se a sociedade local não estivesse madura para tanto? Não importa. A luta armada obrigaria todas as pessoas a tomar posição e assim se desencadearia a "revolução".

Em toda a América Latina, essa incontinência revolucionária levou muita gente à guerrilha e à clandestinidade. A maioria foi torturada e boa parte morreu.

Quatro décadas depois, nossas esquerdas descobriram que poderiam chegar ao poder de modo pacífico. Como? Via eleições, dentro das regras democráticas.

Guevara foi convenientemente deixado de lado. O novo guru, agora, é o pensador italiano - também marxista - Gramsci. Segundo este, para que a revolução se dê de forma efetiva, antes de tudo é preciso aperfeiçoar o modo de pensar da sociedade. Nos corações e mentes das pessoas, os valores capitalistas têm de ser substituídos pelos socialistas.

E para tanto o que deve ser feito pelos militantes da causa?

Esta é a parte mais confortável. Devem, tão somente, incrustar-se no ensino, nos círculos acadêmicos e, principalmente, na administração pública, para - ocupando os postos estratégicos - poderem mudar a mentalidade geral.

Ou seja, chega de sangue, suor e lágrimas! O certo, agora, é "aparelhar" o Estado e tratar de reformá-lo "por dentro".

Foi assim, por meios tortos, que, no Brasil, o pensamento de esquerda incorporou o papel fundamental das instituições.

Até por que, enquanto a revolução não vem, o melhor a fazer é refestelar-se, em segurança, nos bons empregos públicos.

JORNALISTA, DEPUTADO ESTADUAL, FOI DEPUTADO FEDERAL, SECRETÁRIO E MINISTRO DE ESTADO
E-MAIL: J.MELLAO@UOL.COM.BR; BLOG: WWW.BLOGDOMELLAO.COM.BR 

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