quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O esgoto das estatísticas sociais

Marcelo Neri
Valor Econômico

O Brasil é o país das políticas de rendas, inicialmente refletindo um sofisticado sistema oficial de indexação de salários, câmbio, preços públicos administrados que buscava proteger os diversos grupos de brasileiros de altas taxas de inflação, mas que acabava perpetuando a inflação. Hoje as políticas de rendas se referem a mecanismos de transferência de renda direta à população que inclui diversos programas não contributivos: a aposentadoria rural, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e mais recentemente o Bolsa Família. Este último tem chamado a atenção pela capacidade de chegar aos grupos mais pobres da sociedade brasileira. Os resultados são efetivos custando 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) e atingindo quase um quarto da população brasileira, contribuindo para a redução da pobreza e da desigualdade de renda.

O mesmo avanço não é compartilhado pelo saneamento básico. Por exemplo, o déficit de esgoto tem andado a um quarto da velocidade do déficit de renda. Enquanto o Brasil cumpriu em metade do tempo a primeira meta do milênio da ONU de reduzir a extrema pobreza à metade, a meia vida do déficit de saneamento é de 56 anos. Em setores sujeitos a externalidades e a problemas de coordenação, o aumento de renda não vem necessariamente acompanhado da maior provisão de serviços. A estrutura de financiamento e incentivos para a provisão de serviços de esgoto ainda não tem entregue resultados satisfatórios, conforme ficou claro em recente seminário organizado pelo Valor.

O nível atual de cobertura percebida de coleta de esgoto nas metrópoles (67,5%), onde as economias de escala associadas a oferta são maiores, se situou em níveis bastante inferiores aos dos demais serviços públicos, como nas áreas de água (92,3%), lixo (86,8%) e luz (98,2%). Note que a rede geral de esgoto é apenas condição necessária para a provisão de tratamento de esgoto que é a condição suficiente para que os benefícios da coleta se materializem na sua integridade. Menos de 30% do esgoto coletado é tratado. Quando saímos da dicotomia entre dispor ou não de acesso a esgoto ou a água e entramos no âmbito da avaliação da qualidade do acesso, o quadro não melhora. Em geral, a qualidade dos serviços associados ao uso de água gozam de menor qualidade percebida do que a de serviços públicos como eletricidade e coleta de lixo. No que se refere ao acesso a água, 81% da população nas metrópoles avaliam o acesso como bom e o restante o consideram ruim, e que apenas 69,5% daqueles que têm acesso a escoadouro o consideram bom. Para os serviços de eletricidade e coleta de lixo, esses percentuais são 92,3% e 87,8%.

Pesquisas que realizamos junto à ONG Trata Brasil demonstram que a falta de saneamento básico gera uma miríade de efeitos colaterais adversos afetando todos os componentes do desenvolvimento humano. Dos dias perdidos de escola e trabalho em função das doenças associadas à falta de esgoto até a dilapidação do capital natural em áreas com potencial. Os impactos sobre mortalidade e morbidade na infância e na gravidez são sem dúvida a sua pior face.

A ênfase a ser dada ao saneamento básico se justifica não apenas pelo nível de cobertura, qualidade percebida de esgoto e nas possibilidades de melhorar aspectos básicos da vida - e morte - das pessoas mas pela oportunidade que temos de começar a mudar agora o quadro do saneamento. O advento do novo marco regulatório associado à Lei do Saneamento Básico, a mais recursos em infraestrutura pública como no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a maior conscientização da população e da classe política para a causa do esgoto, como pôde ser percebido na campanha eleitoral, podem ajudar esse processo.

A marcada expansão do programa Bolsa Família entre 2004 e 2006 serve como experimento dos impactos de incremento de renda associados a políticas de combate à pobreza sobre a cobertura de serviços públicos. Analisamos quanto o aumento de renda dessa população impacta o acesso a serviços públicos. Os resultados mostram que todos os serviços públicos de luz elétrica, coleta de lixo e água tiveram expansão diferenciada para os elegíveis ao Bolsa Família, após o incremento de renda observado. O mesmo se aplica a bens duráveis como televisão, geladeira, computador e celular. Os resultados se mantêm quando restringimos a análise às grandes metrópoles brasileiras. Mais uma vez a exceção é em todos os casos o acesso à rede geral de esgoto, que se manteve como que deitado em berço não esplêndido.

A lição é que mesmo com várias situações favoráveis tem sido particularmente difícil universalizar o saneamento. Entre a taça e os lábios existem vários percalços. Problemas de coordenação e as externalidades emanadas colocam o desafio de montar um complexo quebra-cabeças, envolvendo peças de oferta pelo lado das empresas como de demanda por parte dos usuários de baixa renda. Estamos envolvidos num fascinante projeto de pesquisa sob os auspícios do Banco Mundial tentando encaixar essas peças. Se você quiser saber mais não perca o próximo artigo.

Marcelo Côrtes Neri , economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE/FGV. Autor de "Ensaios Sociais", "Cobertura previdenciária: diagnóstico e propostas" e "Microcrédito, o mistério nordestino e o Grammen brasileiro".
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