terça-feira, 25 de março de 2014

O país que merecemos


O país que merecemos



Andrew Bernstein é um dos mais eloquentes defensores dos direitos individuais.

Em sua última manifestação, fez um comentário, não sem razão, sobre a invasão de privacidade, promovida pela Agência Nacional de Segurança, órgão do governo federal dos Estados Unidos da America, recentemente denunciada por tal prática: 

“We are Americans, proud citizens of history's freest nation, with the inalienable rights guaranteed by the U.S. Constitution, not the cowed population of a 3rd World dictatorship. We will stand up - loudly and proudly - and protect our rights, knowing, that if we do not, then not only shall we lose them, but we shall deserve to.”

Ou seja:

“Nós somos Americanos, orgulhosos cidadãos da mais livre nação, com inalienáveis direitos garantidos pela Constituição dos Estados Unidos, não uma população intimidada de uma ditadura de Terceiro Mundo. Nos levantaremos - em voz alta e com orgulho – e protegeremos nossos direitos, sabendo, que se não o fizermos, não apenas deveremos, mas mereceremos perdê-los.”

Se na “Terra dos livres e no lar dos bravos” chegaram a esse ponto, o que sobra para nós?

Somos brasileiros, cidadãos de segunda classe, habitantes de um país do Terceiro Mundo acostumados a viver, desde os primórdios da República, sob o jugo de ditaduras de variadas graduações, governados por gente que se apodera da nação, verdadeiros reis de um olho só, sobressaindo-se numa terra de cegos.

Cegos pelo desejo de serem alimentados na boca, de vencer na vida sem estudo nem trabalho, de enriquecer sem mérito, sem ter nada para dar em troca à sociedade e, se possível, sem correr riscos, nem mesmo os necessários.

Temos assistido, perplexos, a proliferação por estas bandas, de uma cultura caracterizada por padrões morais e éticos contraditórios.

Nas passeatas, vemos multidões clamarem, com aparente pacifismo, por benesses somente obtidas através do poder de coerção, obviamente violento, do Estado.

Manifestam insatisfação e esboçam orgulho apenas por ouvir a própria voz a gritar por mais do mesmo.

Em coro, se ouve majoritariamente: "Precisamos”, “Necessitamos”, “Merecemos”, “O governo tem que me dar”, “Que tire dos outros e garanta o meu bem-estar”.

Ter vistas apenas à própria satisfação sem esforço, com prodigalidade ou hedonismo, sem se preocupar com os meios para atingir seus fins, sem respeitar quem cria, quem produz, quem distribui, evadindo-se de como são obtidos os recursos que saciarão essas necessidades, esses desejos, é consequência de uma visão de mundo desapegada da realidade, dos valores morais e princípios éticos inerentes e indispensáveis à ação humana, que tem na vida profícua, nas relações consentidas, o caminho duradouro para a civilidade.

Por quanto tempo seguiremos como uma sociedade de hipócritas? 

Políticos denunciam a corrupção, apenas quando não estão inseridos no rol das propinas ou quando essas minguam inexplicavelmente. 

Empresários e sindicatos reclamam do corporativismo quando ficam de fora de algum conchavo, ou quando este é nocivo para seus interesses. Reclamam do protecionismo dos mercados onde são compradores mas exigem mercados reservados enquanto vendedores. 

Jornalistas defendem a liberdade de expressão, mas calam-se servilmente perante os afagos do poder. Comunicam obviedades entre anúncios publicitários do governo ou de agências ou empresas estatais, sempre monopolistas e incompetentes. 

Jovens pregam a defesa da propriedade privada, mas pirateiam obras para pouparem centavos. E há os que fazem isso, alegando estarem defendo o direito à propriedade, mesmo sonegando pagamento ao autor daquilo que apreciam, como se o produto da mente do criador surgisse do nada e seu esforço intelectual não devesse ser remunerado.

Estudantes, anciãos e outros que se acham privilegiados querem pagar apenas a metade de tudo que consomem, quando não, escandalosamente não querem pagar nada. Pouco se importam se estarão onerando alguém que necessariamente arcará com a diferença, sob coerção.

Todos querem obter algo às custas dos outros, ao tentarem desesperadamente fugir da contrapartida justa e necessária, aproveitam individualmente os ganhos, dissipando por toda a sociedade os custos, de forma ilegítima e inaceitável.

Todos reclamam quando o Estado bate à sua porta para angariar, com ameaças, os recursos necessários para suprir o que a própria sociedade demanda.

Não se vê ninguém com a mão no próprio bolso, estão invariavelmente remexendo os dos outros, atrás de cada níquel que puderem encontrar. 

É contraditório reclamarmos que o governo taxa e, ao mesmo tempo, o condenarmos por não prestar os serviços que precisamos.

Demandam inexistentes direitos à saúde, à educação, à moradia, à segurança, e, ao mesmo tempo, pedem que sejam reduzidos os impostos, garantidos o direito à liberdade, à propriedade e à vida.

Já dizia Ayn Rand, filósofa objetivista:

“A civilização é o avanço de uma sociedade em direção à privacidade. O selvagem tem uma vida pública, regida pelas leis de sua tribo. Civilização é o processo de libertar o homem dos outros homens.”

O que me parece urgente é a necessidade de mudarmos nossa cultura, devemos antes de mais nada, criar as condições para vivermos uma individualidade plena, com nossos próprios meios, com o fruto do nosso próprio esforço, remunerando diretamente o trabalho dos outros, quando o utilizamos para nossa satisfação.

Cada desejo, mesmo não confessado, de usurpar dos direitos dos demais para proveito próprio, nos transforma um pouco mais em selvagens, nos empurra cada vez mais para a marginalidade e nos qualifica como escória no universo das nações.

Cabe a cada um de nós, criar o ambiente onde o governo vai se tornando desnecessário, num círculo virtuoso onde mostramos que somos capazes de obter o que precisamos, sem a sua nefasta intermediação.

Se não nos conscientizarmos que o governo somente se retrairá perante homens com valor moral, sustentados por sua própria capacidade produtiva, com independência, com racionalidade, com coragem e determinação, jamais seremos a terra dos livres, porque não haverá bravos em nosso lar.

Não perderemos a liberdade porque nunca a tivemos e nunca a tivemos porque nunca a merecemos.

Liberdade não existe para quem come da mão de seu senhor.
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segunda-feira, 24 de março de 2014

A revolução por trás do apagão de mão de obra.

A pergunta é: A evolução da formação técno-profissional irá acompanhar para melhor? Com o contumaz desinteresse da sociedade pelo Plano Nacional de Educação, em meu entender, cada vez mais estamos eivando de ideologia marxista a formação de nossos futuros profissionais, de nossa futura economia produtiva. 

É-me uma vergonha ver que a cada quinzena embarco estrangeiros em quantidade crescente para ocupar postos que brasileiros deixam de ocupar por estarem bem aquém dos requisitos mínimos.


A revolução por trás do apagão de mão de obra.
Revista IstoÉ
Por Ricardo Amorim

Mediando um painel em um evento com grandes empresários brasileiros, perguntei a eles qual o maior desafio para o crescimento de suas empresas nos próximos anos. A resposta veio em uníssono: a falta de mão de obra qualificada é, atualmente, seu maior desafio.

O apagão de mão obra não é novidade. À medida que o desemprego no Brasil começou a cair desde meados de 2004, a dificuldade das empresas em contratar bons profissionais tem aumentado e os salários e benefícios dos funcionários subido.

No mercado de trabalho, assim como em infraestrutura e câmbio, o Brasil viu-se forçado a lidar com as dores do crescimento. Nas décadas de 80, 90 e início do milênio, quando o Brasil sustentou uma taxa média de crescimento do PIB de apenas 2% ao ano, faltavam empregos. Desde 2004, a média mais do que dobrou, hoje faltam profissionais qualificados para as vagas existentes.

O aumento da remuneração dos trabalhadores consolidou e fortaleceu o mercado consumidor. Só que a elevação de salários e benefícios não veio acompanhada por igual aumento da produtividade dos trabalhadores, encarecendo produtos e serviços no país. Para piorar, o Real apreciou-se significativamente, colaborando para tornar nossos produtos e serviços ainda menos competitivos em relação aos estrangeiros.

Esta nova realidade tem trazido desafios às empresas e tornou uma eficaz gestão de recursos humanos mais estratégica do que nunca. Atrair e reter talentos nunca foi tão importante, dando início a uma revolução silenciosa, com implicações positivas substanciais sobre a estrutura da nossa economia. Por terem sido praticamente ignoradas até aqui pela maioria das empresas, três transformações merecem destaque.

Enquanto oportunidades profissionais brotam no país nos últimos anos, elas minguam nos países desenvolvidos. Isto provocou uma reversão na histórica perda de talentos que o país se acostumara. Atraídos por melhores oportunidades e remuneração, centenas de milhares de brasileiros que trabalhavam nos EUA, Europa e Japão retornaram ao país, eu entre eles. Além disso, o número de autorizações de trabalho para estrangeiros no país triplicou nos últimos cinco anos. Já há mais de 1,5 milhão de trabalhadores estrangeiros legais iluminando nosso apagão de mão de obra e hoje, quem diria, atraímos até imigrantes ilegais.

Em paralelo, um aumento da expectativa e qualidade de vida, somado a uma futura incapacidade do sistema público de previdência de honrar suas promessas, mais uma sustentada queda da taxa de juros no Brasil, reduzindo a rentabilidade de aplicações financeiras, forçam cada vez mais aposentados a complementarem suas rendas, voltando a trabalhar. Será que as empresas estão prontas para eles?

Por fim, no Brasil, a mão de obra era barata e a tecnologia cara. Não mais. Enquanto os salários vem subindo, o custo de máquinas e equipamentos vem caindo devido à produção chinesa e à apreciação do Real. Um forte processo de mecanização e informatização vem aí, com impactos muito positivos sobre a produtividade, mas exigindo trabalhadores ainda mais qualificados.

Por trás da escuridão do apagão de mão de obra, há uma revolução silenciosa que só começou.

Ricardo Amorim
Economista, consultor, apresentador do programa Manhattan Connection da Globonews, colunista da revista IstoÉ e presidente da Ricam Consultoria. Realiza palestras em todo mundo sobre perspectivas econômicas e oportunidades em diversos setores Único brasileiro na lista dos melhores e mais importantes palestrantes mundiais do site inglês Speakers Corner e economista mais influente do Brasil e um dos dez mais influentes do mundo segundo o site americano Klout.com.
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O mito do corte de gastos

Reconheço que o tema é denso e, via de regra, com "economês", todavia é muito ilustrativo e orientativo se quisermos, como cidadãos maduros, olhar de frente os desafios que nossa sociedade, independentemente de quem vier a ser presidente, precisa enfrentar. 
Encareço um esforço para ler o artigo até o fim, pois vale a pena.


O mito do corte de gastos 
 CLAUDIO ADILSON GONÇALEZ
O Estado de S.Paulo


Todo mês de fevereiro, não falha. Com mais regularidade do que o carnaval - dado que este às vezes teima em cair em março, para atrapalhar o ano letivo e confundir os modelos de dessazonalização -, o governo edita seu decreto de reprogramação orçamentária, impropriamente conhecido como contingenciamento. Com a mesma regularidade a imprensa, mesmo a especializada, e até alguns analistas chamam isso de corte de gastos.

Na verdade, como o próprio nome diz, o decreto de reprogramação é mera reestimativa das receitas e das despesas do Orçamento federal. Tradicionalmente, o Congresso Nacional infla as receitas com o objetivo de gerar espaço para incluir emendas parlamentares, sem afetar, teoricamente, a meta de superávit primário estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O Executivo, por sua vez, retira os excessos introduzidos pelo Congresso nos dois lados do Orçamento e emite o decreto de reprogramação.

Observe-se que não há qualquer tipo de corte. Cortar despesas seria gastar menos do que vinha sendo gasto, por exemplo, em relação ao exercício anterior. E isso não acontece no Brasil há muitos anos, e tampouco ocorrerá em 2014. O decepcionante resultado primário (antes da dedução das despesas com juros) relativo ao mês de janeiro último e o quase certo elevado déficit no mês de fevereiro já demonstram como é implausível a meta de superávit primário consolidado para todo o setor público, de 1,9% do PIB, prometida pelo ministro da Fazenda.

É interessante destacar que a reprogramação não é uma estimativa convencional, que embute certo grau de incerteza, para baixo ou para cima. Na reprogramação orçamentária o superávit estimado é um teto. Se a receita efetiva ficar acima da prevista, o governo (com raríssimas exceções) anulará, parcial ou totalmente, os contingenciamentos, ou seja, aumentará os gastos, em vez de entregar um superávit maior. Por outro lado, na hipótese de a receita ficar aquém da estimada, o mais provável é que o resultado primário efetivo fique abaixo do prometido, a menos dos conhecidos "truques", que só servem para aumentar a falta de credibilidade do governo na gestão das contas públicas.

Na reprogramação orçamentária divulgada no mês passado há premissas inverossímeis. Por exemplo, a estimativa das transferências pelo Tesouro à Previdência Social para compensar as desonerações da folha de pagamento foi reduzida de R$ 17 bilhões para R$ 11 bilhões, ou seja, a mesma dotação do ano passado. Mas as despesas da Previdência estão subestimadas, como publicamente admitiu o próprio ministro Garibaldi Alves. Basta lembrar que o programa de desoneração da folha foi ampliado pela Lei n.º 12.844 de julho de 2013, com a inclusão das empresas de construção civil, transporte rodoviário e ferroviário de cargas, de manutenção e reparo de embarcações e de operações de carga e descarga em portos.

De forma geral, a previsão de crescimento da despesa primária em apenas 9,5% em 2014 não é crível. Elevação menor que 10% só ocorreu no primeiro ano da administração Lula e não em ano eleitoral. Naquela época ainda não existiam vários programas de subsídios e o governo não se defrontava com um enorme buraco nas empresas de distribuição de energia. A maior parte desse último problema foi empurrada com a barriga para 2015, mediante uma operação nada convencional com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), mas sobram ainda cerca de R$ 4 bilhões adicionais a serem bancados pelo Tesouro.

Para entender a dificuldade de cortar gasto público no Brasil é preciso analisar a dinâmica de longo prazo da despesa primária da União. Por que ela cresce continuamente como proporção do PIB, tendo se elevado de 14,5%, em 1999, para 19%, no ano passado? Será que o governo vem se tornando crescentemente perdulário no custeio da máquina administrativa e nos gastos com o funcionalismo?

A resposta à segunda pergunta é não. Se assim fosse, medidas frequentemente reclamadas pela população e pela imprensa, tais como choque de gestão, redução do número de ministérios, fim das mordomias, controle dos gastos com viagens, etc., seriam a solução. Evidentemente, sou a favor de tais medidas, mas a má notícia é que a economia delas resultante seria irrelevante para resolver o problema fiscal brasileiro.

Segundo dados levantados pelo economista Mansueto de Almeida, os gastos com pessoal e com todo o custeio da máquina administrativa (exceto educação e saúde) caíram em relação ao PIB, no período analisado. Em 1999, primeiro ano do segundo mandato de FHC, tais dispêndios correspondiam a 5,9% do PIB, e no ano passado fecharam em 5,2% do PIB. Os investimentos são baixíssimos, tendo se mantido em cerca de 1% do PIB desde 2002.

O crescimento da despesa pública da União também não é explicado pelo aumento da produção de bens públicos, tais como educação, saúde, segurança, justiça e infraestrutura básica, mas, sim, pela forte expansão dos gastos de natureza social, que cresceram em 4,6% do PIB no período 1999 a 2013, a saber: Previdência Social, 2,2%; programas sociais (Bolsa Família, seguro-desemprego, benefício de prestação continuada e abono salarial), 1,7%; e os subsídios (Minha Casa, Minha Vida, Minha Casa Melhor, etc.), 0,7%.

Esses números deixam claro que qualquer proposta séria de ajuste fiscal no Brasil terá de focar a contenção dos gastos de natureza social. Refiro-me a medidas amargas, tais como regras austeras de reajuste do salário mínimo e sua completa desvinculação de qualquer benefício, reforma da Previdência que alcance inclusive os atuais participantes, profunda revisão da legislação das pensões por morte e do seguro-desemprego, corte de subsídios, entre outras. Mas não creio que a sociedade, por meio de seus representantes políticos, esteja disposta a dar suporte a ações nessa direção. O mais provável, infelizmente, é que haverá novo aumento da carga tributária, com repercussão negativa sobre o crescimento econômico, principalmente se o sonho petista de ressuscitar a CPMF se concretizar.
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Tolerância

Apesar do texto denso desse emérito filósofo gaúcho, ex apreciador do PT, ele evidencia o risco da falta de referenciais críveis e sólidos em nossa sociedade hoje absolutamente tomada pela "síndrome do politicamente correto".

Sinto, também, falta dos setores das Igrejas, das 53 denominações religiosas reconhecidas e autorizadas a pregar no país sobre esse tema da legalização de algumas drogas. 

Enfim, amigos, acredito que, ao menos em nosso círculo de influência mais próximo, temos a obrigação de interceder com nossa visão e pontos de vista. Acredito que assim, essa avassaladora anomia social comece a mudar o rumo.


Tolerância

DENIS LERRER ROSENFIELD
O GLOBO

Os costumes se alteram e, com eles, certas noções corriqueiras do bem e do mal, do vício e da virtude. Comportamentos que eram considerados como “maus” tornam-se socialmente aceitos, enquanto outros que eram admitidos já não são mais compartilhados.

Processos desse tipo são inerentes ao desenvolvimento das sociedades. Daí não se segue, porém, que o “novo” seja melhor do que o “velho” ou que haja necessariamente “progresso” nessas mutações. Devemos ter o maior cuidado em não identificar o último na ordem do tempo como o melhor para a sociedade no seu conjunto.

O Brasil vive um momento particularmente interessante de sua história, em uma espécie de frenesi pelo novo que ganha os contornos de uma realização do “bem”. A predominância do politicamente correto funciona como um tipo de parâmetro que deveria ser universalmente válido, como se as pessoas não fossem mais capazes de fazer por sua própria conta aquilo que consideram o melhor para si ou para a sociedade no seu conjunto. Impera o comportamento da emulação, a repetição do que vem a ser tido como socialmente aceitável.

Dentre essas transformações dos costumes, tem ganho especial relevância em certos formadores de opinião diferentes pressões para a legalização da maconha, como se tal medida fosse capaz de reduzir o mercado ilegal desse produto. Mais do que isto, começam a surgir argumentos de outro tipo, como os dos seus supostos benefícios para a saúde, segundo hipotéticos estudos científicos.

Aliás, torna-se uma prática corrente nos meios jornalísticos considerar uma mera hipótese de trabalho como se fosse uma verdade definitiva. Ato seguinte, os defensores políticos dessas ideias passam a propagar tal “verdade” como se fosse “científica”. Trata-se, na verdade, de uma empulhação.

Exemplos começam a se multiplicar. O Uruguai passou a ser considerado um país “progressista” por ter legalizado o consumo da maconha, abrindo as portas para que o seu comércio torne-se algo legal. Neste sentido, esse país representaria o “progresso”, enquanto os seus adversários seriam a concretização do “atraso”. O respaldo é ainda reforçado por modificações legislativas ocorridas em alguns estados americanos, como se estivéssemos diante de algo inexorável.

Inexorável talvez seja a tendência hoje vigente de considerar qualquer mudança nos costumes como sendo a encarnação do bem. A questão que se coloca é a de se uma maior tolerância ao consumo de drogas como a maconha deva se traduzir por sua liberação. Uma coisa consiste em a sociedade aceitar certos comportamentos como nocivos, sem se preocupar demasiado em coibi-los, uma vez que toda sociedade deveria ser capaz de conviver com a diferença e, mesmo, com comportamentos desviantes em relação aos padrões usualmente aceitos.

Uma repressão muito forte pode dar ensejo a formas violentas de reação. Uma tolerância indiscriminada pode levar à contaminação de toda a sociedade. Os extremos devem ser evitados. Já dizia Aristóteles que a virtude reside no termo médio.

Ocorre que esse tipo de acolhimento do “novo” e da “diferença” é fortemente contrastado com a condenação de outros comportamentos como os do fumo e do consumo de bebidas alcoólicas. É, deveras, curioso. Os que defendem o consumo da maconha agora começam a apregoar que ela é menos nociva do que o consumo do tabaco e do álcool. Logo, ela deveria ser mais bem favorecida!

Observem o paradoxo. A maconha deveria ter o seu consumo legalizado, aí, portanto, incluindo a sua produção e comércio. Deveriam os produtores e comerciantes pagar impostos, o que, na visão dos seus defensores, reduziria, senão eliminaria, o tráfico de drogas, pelo menos deste tipo de droga. A tolerância seria implementada, ainda segundo os mesmos defensores, com o reconhecimento da “diferença”.

Contudo, a mesma ideia de tolerância não é aplicada ao tabaco e ao álcool, cada vez mais tidos por um problema comportamental e de saúde pública que deveria ser equacionado. E equacionado sob o modo de campanhas que só têm se intensificado, aumentando, inclusive, a sua tributação.

O caso particularmente paradigmático é o do tabaco. O seu consumo e a sua produção, que envolve 160 milhões de agricultores familiares, estão sendo desestimulados mediante políticas frequentemente coercitivas. É como se o comportamento saudável devesse ser imposto pelo Estado, restando aos indivíduos apenas a obediência e a tutela, como se fossem incapazes de decidirem por si mesmo. Qual é o problema de uma pessoa que gosta de fumar e beber? Não é a livre escolha uma opção sua? Será que as pessoas necessitam de controladores de consciência?

O contraste é ainda mais acentuado entre a maconha e o tabaco. Enquanto se procura legalizar a primeira, tornando o seu consumo um negócio como qualquer outro, passando o tráfico a mudar de natureza, sendo um produto comercializável, faz-se o processo inverso no que diz respeito ao segundo desses produtos.

O tabaco passa a ser fortemente tributado, criando um mercado negro, o do contrabando, que hoje já representa 30% do mercado total. Empregos estão sendo perdidos. O que antes era tido como tráfico passa a ser considerado como “legal”, enquanto o que era e é legal passa a ser objeto de “contrabando”, comércio ilegal, que só favorece, na verdade, o Paraguai. O consumo de álcool, a continuar essa tendência, seguirá pelo mesmo caminho.

Tudo isto se deve a uma espécie de cruzada do politicamente correto. Este toma o que considera “bom” ou “progressista” como algo que deve ser simplesmente imposto aos que não querem seguir a nova forma de “virtude”.

Bernard de Mandeville, célebre libertário do século XVII, naquele então denominado de libertino, já advertia contra os reformadores sociais, os reformadores dos costumes, que, em nome da virtude, terminavam produzindo formas de desestruturação econômica e social. A imposição do bem pode produzir daninhas consequências. É a marcha da intolerância.
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quinta-feira, 13 de março de 2014

Produtividade bloqueada


 JOSÉ PAULO KUPFER
O Estado de S.Paulo


A armadilha do baixo crescimento, na qual a economia brasileira parece ter se enredado, tem estimulado esforços na busca de diagnósticos capazes de encaminhar soluções para o problema. Não são muitos os consensos nesse departamento, mas um deles é o de que, entre as razões do fenômeno indesejável, deve-se incluir a baixa produtividade econômica.

É possível observar crescente convergência na avaliação de que tirar a produtividade da letargia em que se encontra há duas décadas - com exceção de um suspiro de alta na segunda metade dos anos 2000 - é crucial para vencer a mediocridade dos índices recentes de expansão da economia. A tarefa, diga-se logo, é complexa porque envolve elementos estruturais, cuja superação não costuma ocorrer em prazo curto.

O último empuxo de crescimento se deu em meados da década passada, na onda da incorporação de vastos contingentes de mão de obra ao mercado de trabalho e ao mercado de consumo. Mas, principalmente por razões demográficas, esse efeito está em processo de esgotamento. Crescer, agora, como nas economias maduras da Europa e como nos Estados Unidos, só com ganhos de escala e produtividade.

Estudo da consultoria global McKinsey, detalhado pelo colega Fernando Scheller, no Estadão de ontem, mostra que a produtividade do trabalhador brasileiro aumentou, em média, nos últimos 25 anos, apenas 1% ao ano. Superou o México, mas ficou abaixo de Chile e Peru, ambos com índice pelo menos 2,5 vezes maior. O levantamento aponta que o valor médio gerado pelo trabalhador americano ainda é sete vezes maior do que o gerado por um brasileiro. Não é de se estranhar que a expansão do PIB brasileiro, entre 1990 e 2010, conforme conclui o estudo, poderia ter sido 45% maior.

A receita para elevar a produtividade é bem conhecida: aumentar o investimento em capital físico - máquinas, equipamentos, galpões, armazéns, infraestrutura -, em capital humano - qualificação de mão de obra - e numa mistura dos dois - tecnologia, inovação, gestão e processos. A coisa complica quando se trata de saber como incrementar tudo isso.

Paulo Rabello de Castro, um inquieto economista de formação liberal, mas nem sempre alinhado ao pensamento ortodoxo, presidente do Instituto Atlântico e coordenador do Movimento Brasil Eficiente (MBE), por exemplo, escreveu, em recente nota técnica para o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP, que a carga tributária, incluindo os encargos financeiros da dívida pública, "exerce forte e significativo efeito de diminuir a variação da produtividade total dos fatores (PTF) e, portanto, reduz o PIB Potencial".

De acordo com seus cálculos, no caso brasileiro, cada ponto de porcentagem a mais na carga tributária como proporção do PIB resulta num encolhimento de meio ponto porcentual na produtividade dos fatores. Essa contração acaba se refletindo, negativamente, nas taxas de expansão do PIB.

Apoiado em teorias que definem o "tamanho ótimo" do governo, medido pela carga financeira que financia suas despesas, em algum ponto antes de 30% do PIB, Paulo Rabello relaciona o declínio da produtividade à escalada tributária dos últimos 20 anos. Segundo ele, a trajetória declinante da produtividade começa no Plano Real, que teria substituído o antigo padrão de financiamento inflacionário da dívida pública pelo tributário e financeiro.

Não é difícil perceber que a chave de um aumento da produtividade é mais investimento. Mas este, na visão do economista, é bloqueado pela carga tributária. É fato que os recursos próprios - sob a forma de lucros retidos das empresas ou renda disponível das pessoas -, principal fonte para financiar os investimentos, mantêm uma correlação negativa com a elevação do peso dos tributos. Se já responderam por mais de dois terços do total dos investimentos em 2005, atualmente comparecem com pouco mais de um terço.

A importância da indústria

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
VALOR ECONÔMICO



Leio na edição dominical da "Folha de S. Paulo" um instigante artigo do professor Samuel Pessoa, intitulado "Indústria e Câmbio".

Físico que se envolveu nas complexidades e armadilhas da Ciência Triste, Samuel é meu confrade espiritual na autenticidade da fé palestrina, condição acessível apenas aos palestrinos de boa fé. Padecemos da mesma paixão pelo campeão do século XX, mas não compartilhamos as mesmas visões da economia e da sociedade.

Uma frase de Samuel incitou minha decisão de alinhavar considerações sobre o tema da indústria e de sua importância: "Não me parece haver evidência empírica de que a indústria seja especial sob algum critério".

A luta pela industrialização é uma questão de sobrevivência das nações, seus povos e de suas identidades

Não? O historiador Carlo Cipolla discorda. Em sua investigação sobre a ruptura econômica e social produzida pela assim chamada Revolução Industrial, Cipolla escreveu: "A Revolução industrial transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada". Imagino que Samuel pretenda submeter a constatação de Cipolla a um teste econométrico, baseado numa série temporal que colhe informações desde o Neolítico até as primeiras décadas do século XIX.

À falta de tão requintados procedimentos da positividade empirista, só nos resta recorrer aos pacientes trabalhos de Angus Maddison. No livro "The World Economy", ele estima que, entre 1820 e 1913, a renda per capita na Grã-Bretanha cresceu a uma taxa três vezes maior do que aquela apresentada no período 1700-1820. A publicação da "Riqueza das Nações" e aperfeiçoamento para fins comerciais da máquina a vapor de Newcomen por James Watt no mesmo ano, 1786, talvez forneçam testemunho ainda mais confiável a respeito da radical ruptura no modo de produzir e nas formas de regulação da vida econômica e social.

Aí nasce, de fato, o capitalismo, logo adiante sobranceiro em sua autodeterminação, alcançada mediante a constituição das forças produtivas ajustadas à sua natureza irriquieta. Assentada sobre suas bases materiais, a economia da indústria promove a nova sociabilidade, aquela amparada nas realidades do assalariamento generalizado e nas aspirações de liberdade e de autonomia individual. Na mesma toada, o industrialismo capitalista suscitou o desenvolvimento da metrópole, tabernáculo da modernidade, cuja efervescência cultural, não raro, exprime as misérias sociais nascidas das turbulências do progresso. É aconselhável consultar, entre outros, Balzac, Dickens, Baudelaire, Flaubert e Zola.

O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico, move a divisão social do trabalho e engendra diferenciações na estrutura produtiva, promovendo encadeamentos intra e inter-setoriais. Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços funcionais gestados no rastro da expansão da grande empresa industrial e promovidos pela racionalização e burocratização dos métodos administrativos.

O avanço tecnológico livra progressivamente a agricultura dos caprichos da natureza. Da mesma forma, há que considerar as relações umbilicais entre a Revolução Industrial e a revolução nos Transportes e nas Comunicações. É reconhecida a mútua fecundação entre a constituição do setor de bens de produção - apoiado nos avanços da metalurgia e da mecânica - e a expansão da ferrovia e do navio a vapor.

Essa reordenação da economia exigiu uma resposta também pronta dos países retardatários. Para a Alemanha de Bismarck, para os Estados Unidos de Alexander Hamilton e para os japoneses da revolução Meiji, a industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades.

A industrialização dos retardatários se confunde com as inovações da Segunda Revolução Industrial. O aço, a eletricidade, o motor a combustão, a química e a farmacêutica são os protagonistas dos combates competitivos da Belle Époque. As transformações financeiras do crepúsculo do século XIX promoveram a centralização do capital requerida para o aumento das escalas de produção implícitas nas novas tecnologias. Isso seria inconcebível sem a concentração das relações de débito-crédito nos bancos de depósito e nas proezas dos bancos de negócios, sôfregos em "fixar" capital-dinheiro em novos investimentos.

É descuido imperdoável ignorar que algumas inovações da Segunda Revolução Industrial do final do século XIX - especialmente a ampliação da capacidade dos navios a vapor, o navio frigorífico e o telégrafo - "produziram" os produtores de alimentos e matérias-primas nas regiões periféricas. A rápida escalada industrial dos Estados Unidos e a incorporação da Argentina, da Austrália, da Nova Zelândia, do Brasil reconfiguraram a divisão internacional do trabalho e atraíram milhões de trabalhadores lançados na miséria pela depressão da agricultura europeia.

Depois do surgimento do capitalismo industrial, mais precisamente depois de 1850, diz Cippola, o passado não era apenas o que havia passado. O passado estava morto. A partir de então, o Prometeu Desacorrentado foi incansável em seu labor. Empenha-se agora na "reinvenção" da natureza e na criação das técnicas que poderiam ensejar a proteção do ecúmeno.

Aí estão as inovações da inteligência artificial, da biotecnologia, das alterações nas estruturas atômicas dos materiais, da impressão 3D, das novas energias limpas. Como disse Alfred Whitehead: "o homem inventou o método de inventar". Resta aos homens (no plural) a incumbência de reinventar a vida social para fruir as liberdades e benesses oferecidas pelas proezas de Prometeu.

No seu livro Envolvimento e Alienação, Norberto Elias lançou um pergunta que muitos preferem não responder: "Por que as sociedades humanas resistem mais do que a natureza não-humana a uma bem sucedida exploração (de suas potencialidades) pelos seres humanos?"
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O Brasil e as perspectivas do comércio internacional

 RUBENS BARBOSA
O Estado de S.Paulo

Os resultados da balança comercial nos primeiros dois meses do ano foram muito negativos, com déficit de US$ 6,2 bilhões. As importações continuam crescendo mais do que as exportações, como vem ocorrendo há algum tempo.

Persistem grandes incertezas sobre o desempenho comercial externo brasileiro em 2014. Cresce a dependência das importações de petróleo e aumenta a incerteza quanto aos mercados venezuelano, em grande crise, e argentino, que consome 19,4% de nossas exportações industriais e onde poderá haver mais de US$ 2 bilhões de redução de nossas exportações. A volatilidade dos preços dos produtos agrícolas e minerais, além da do câmbio, agora novamente com tendência a perigosa valorização, preocupa os exportadores. É difícil prever como terminará a balança comercial este ano, sobretudo pela perda da credibilidade dos dados oficiais, manipulados para esconder um forte déficit no final de 2013. Nesse contexto, a evolução do comércio internacional em 2014 poderia ter efeitos positivos sobre as exportações brasileiras.

Recente relatório da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostra estagnação no comércio internacional em 2014. Mas essa não é exatamente a percepção do governo brasileiro, que acredita numa rápida expansão das trocas e no seu impacto positivo para as exportações do Brasil no corrente ano.

Segundo o documento, o comércio global cresceu em 2013 abaixo dos 2,5% que haviam sido projetados. Para 2014 a OMC menciona a possibilidade de um crescimento maior, mas que continuará abaixo da média histórica de 5,5% dos anos 1990. Essa expectativa se fundamenta nas estimativas de crescimento dos EUA em cerca de 3%; da Europa, em 1%; do Japão, em 1,5%; e da China, em 7,5%.

O mais provável será um crescimento em 2014 da mesma ordem do ocorrido em 2013, em vista dos riscos que ainda afetam a economia global e que terão impacto sobre a evolução das trocas internacionais. A OMC menciona como fatores que dificultarão o crescimento do intercâmbio global a modificação da política monetária dos EUA com a gradual retirada dos estímulos expansionistas, a negociação sobre o limite da dívida dos EUA, a ameaça de deflação e persistente baixo crescimento da zona do euro, a expectativa de consolidação fiscal no Japão e crescimento mais fraco dos países emergentes. Por outro lado, as turbulências na América Latina, na Ásia e na Ucrânia, caso persistam por mais algum tempo, vão enfraquecer a demanda por bens e serviços dos países desenvolvidos.

De conformidade com a OMC, o comércio mundial estagnou entre o segundo trimestre de 2012 e o segundo trimestre de 2013. Nesse período, a maior contribuição para seu crescimento foi dada pelos países emergentes. A situação em 2014 parece modificar-se com a desaceleração dos emergentes e o dinamismo das trocas, se ocorrer, virá dos EUA, da Europa e do Japão.

O baixo crescimento do comércio internacional reflete não apenas a redução da demanda nos países emergentes, em razão do baixo nível do seu crescimento, e o pequeno crescimento entre os desenvolvidos, mas também o número cada vez maior de restrições ao livre fluxo de comércio.

O trabalho mostra ainda que há uma clara tendência de aumento de medidas protecionistas em grande número de países. Foram 407 novas medidas restritivas e investigações para frear as importações em 2013, um aumento de cerca de 30% em relação às 308 em 2012. Essas medidas, que afetaram 1,3% das importações mundiais (US$ 240 bilhões), se somam ao vasto arsenal, cada vez mais sofisticado, de regulamentações que restringem o livre-comércio.

Registre-se que o relatório da OMC aponta o Brasil como o país que mais pediu abertura de investigações antidumping para limitar importações por preços desleais no período de outubro de 2012 a novembro de 2013. É bem verdade que, enquanto nesse período o número cresceu nos demais países, no Brasil caiu para 39, comparado com 45 em 2012. A Índia, os EUA e a Argentina foram os outros países que mais recorreram a essa medida de defesa comercial.

Em outro estudo divulgado pela OMC são feitos comentários sobre o que significa, para os países-membros e para a própria Organização, a fragmentação da produção global, negociada nos acordos regionais e bilaterais em vigor que normatizam as regras das cadeias de valor agregado. O representante comercial dos EUA, Mike Froman, candidamente admitiu isso ao referir-se às negociações entre seu país e a Europa: "Vamos ampliar o alcance desse acordo e incluir cláusulas ambientais e sociais, além de maiores exigências na proteção de patentes". Nesse contexto, estão sendo ultimados estudos para o lançamento de negociação de acordo plurilateral, fora da OMC, para a eliminação de tarifas sobre produtos ambientais, como equipamentos solares e centrais eólicas.

O Brasil, carregando o fardo do Mercosul, continua isolado, à margem das grandes transformações que estão ocorrendo no comércio internacional e nas negociações que se desenvolvem fora da OMC.

A tendência dos EUA e da Europa, assim como dos EUA e da Ásia, de avançarem nos entendimentos para chegarem a um acordo regional de livre-comércio fora da OMC dificilmente será revertida. O desafio para a OMC será encontrar uma fórmula de multilateralizar as regras desses acordos, que, em muitos casos, vão além do que já está aprovado pelos160 países-membros da Organização.

Esse é um dos maiores desafios que o Brasil terá de enfrentar nos próximos meses e anos em termos de negociações comerciais externas. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por meio do Conselho de Comércio Exterior, e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) formaram uma força-tarefa para examinar essa questão e encaminhar o resultado do trabalho ao governo a título de cooperação.

O mundo não vai esperar pelo Brasil.
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Mobilidade perversa


FOLHA DE S. PAULO


Uso de meios individuais de transporte avança mais que o de públicos na Grande São Paulo, que paga o preço de suas escolhas equivocadas
Pesquisa divulgada pela Secretaria dos Transportes Metropolitanos de São Paulo mostrou, em números atualizados até 2012, uma situação que os moradores da região percebem no seu cotidiano: o transporte coletivo permanece aquém das demandas da população, que busca opções individuais para compensar as deficiências.
De acordo com o levantamento, verificou-se de 2007 a 2012 um acréscimo de 21% no total de deslocamentos feitos com carros, motos e táxis. No mesmo período, as viagens realizadas em ônibus, trens e metrô aumentaram 16%.

O descompasso evidencia o menor apelo do sistema público de transporte, mas também reflete o crescimento da capacidade de consumo de setores de baixa renda e as vantagens tributárias concedidas à indústria automotiva.

É importante registrar que, embora válidas, as comparações podem trazer pequenas discrepâncias. O atual estudo foi feito no intervalo entre as pesquisas "Origem e Destino", mais abrangentes e com periodicidade decenal.

Questões metodológicas, contudo, em nada interferem nas tendências evidenciadas pelo levantamento. Uma delas é a crônica dependência da população em relação aos ônibus e carros. Os dois meios respondem respectivamente por 12,5 milhões e 12,6 milhões de viagens e representam 57,4% de todos os deslocamentos da região metropolitana de São Paulo.

Tal preponderância realça outro problema: a lentidão de sucessivas administrações tucanas ao ampliar a oferta de transporte sobre trilhos. Embora tenham aumentado de forma expressiva nos últimos cinco anos, as viagens de metrô e trens --menos poluentes-- equivalem a somente 12,4% do total.

A explicação para isso é simples. São Paulo possui escassos 74 km de linhas subterrâneas. Mesmo considerando ampliações previstas até o final década, que poderão acrescentar 78 km de trilhos, a rede continuará pífia se comparada às de Londres e Xangai, cujas malhas têm mais de 400 km.

Não é recente, em todo caso, a imprecaução dos governantes. Em 1967, data da primeira pesquisa "Origem e Destino", o transporte público provia 68% das viagens, e o individual, 32%. Em 2002, pela primeira vez, as modalidades coletivas responderam por fatia minoritária (47%) dos deslocamentos.

Nas pesquisas seguintes, de 2007 e 2012, o quadro se inverteu de novo. Em ambas as ocasiões, os meios coletivos foram majoritários (54%). Se a tendência atual for mantida, porém, o transporte individual voltará a ser dominante.

Hoje, felizmente, é preponderante, se não consensual, a ideia de que é preciso investir em metrô/trens e corredores de ônibus em detrimento do automóvel.

Trata-se de uma necessária --e sem dúvida custosa-- correção de rumos, que não se fará de uma hora para a outra. São Paulo perdeu muito tempo. Paga, agora, o preço de suas opções equivocadas.
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Usina de crises


FOLHA DE SP


Espremida entre o aumento do custo de produção e o represamento dos preços da gasolina, a indústria brasileira de açúcar e etanol tem perdido fôlego financeiro.

Desde janeiro, seis usinas entraram em processo de recuperação judicial, segundo estudo da consultoria MBF Agribusiness. O montante equivale a todos os pedidos registrados nos últimos dois anos. Desde 2008, são 56 estabelecimentos em tal situação.

A crise se agravou no período mais recente pela queda nos preços do açúcar no mercado internacional. Cerca de dois terços dos grupos estariam operando com prejuízo.

A cadeia de suprimento de equipamentos está comprometida. Segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar, desde 2010 houve queda de 50% no faturamento, com a perda de 50 mil empregos.

A deterioração vem de alguns anos, quando o governo começou a dar passos atrás na modernização que empreendia com sucesso desde os anos 1990.

A criação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), em 2001, com alíquotas diferenciadas, deu competitividade ao setor --a taxação do etanol era menor que a da gasolina.

A política de correção dos preços internos da gasolina, por sua vez, que até 2006 acompanhou mais de perto as cotações internacionais, também contribuía para que a rentabilidade do biocombustível não fosse comprometida.

Houve, ademais, grande aumento da demanda interna de etanol a partir de 2003, com a tecnologia de carros flex, que em poucos anos passaram a representar 90% dos novos carros vendidos no país.

Completando o ciclo, os preços altos do petróleo levaram investidores a buscar alternativas. O Brasil oferecia o cenário ideal: tecnologia consolidada, baixo custo e forte cadeia de fornecedores.

Muito mudou nos últimos anos, contudo. A partir de 2006, o governo conteve o preço interno da gasolina. Para evitar repasses dos aumentos internacionais, a Cide foi progressivamente reduzida (até zero em 2012), eliminando o diferencial tributário em favor do etanol justamente quando cresciam os custos de produção.

A questão de fundo, que praticamente fez cessar novos investimentos no setor, é que deixou de haver uma política clara para a convivência da gasolina e do etanol, combustíveis com estruturas produtivas e rentabilidades diferentes.

A liderança do Brasil é inquestionável no que respeita ao etanol. Seria de esperar, portanto, que o governo elaborasse políticas para explorar essa vantagem --e, se for incapaz de fazer isso, que ao menos não atrapalhe o setor.
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Dilma degrada a diplomacia

 EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo

A presidente Dilma Rousseff definitivamente rebaixou o Brasil à condição de cúmplice de regimes autoritários na América Latina. Não bastasse a reverência (e o vasto financiamento) à ditadura cubana, Dilma agora manobra para que os atos criminosos do governo de Nicolás Maduro contra seus opositores na Venezuela ganhem verniz de legitimidade política.

Em vez de honrar as tradições do Itamaraty e cobrar do regime chavista respeito aos direitos humanos e às instituições democráticas, a presidente desidratou a única iniciativa capaz de denunciar, em um importante fórum internacional, a sangrenta repressão na Venezuela, que já matou duas dezenas de pessoas. Mandou o representante do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA) votar contra o envio de uma missão de observadores à Venezuela e impediu que a entidade reunisse seus chanceleres para discutir a crise.

Como todos os líderes populistas da região, Dilma considera que a OEA é quintal dos Estados Unidos. O falecido caudilho Hugo Chávez costumava referir-se à organização como "instrumento do imperialismo", entre outros nomes menos simpáticos. Para o governo petista, contaminado pelos ares bolivarianos, uma decisão da OEA sobre a Venezuela poderia ser considerada inoportuna e com potencial para acirrar as tensões. Assim, a título de não melindrar Maduro, premiam-se a brutalidade e a indisposição para o verdadeiro diálogo democrático.

Manietada pelo Brasil e por seus parceiros bolivarianos, a OEA limitou-se a emitir uma nota cuja anodinia mal disfarça a tentação de apoiar Maduro. O comunicado manifesta "solidariedade" ao presidente e dá "pleno respaldo (...) às iniciativas e aos esforços do governo democraticamente eleito da Venezuela" no "processo de diálogo nacional" - como se fosse autêntica a pantomima a que os chavistas chamam de "Conferência de Paz". Estados Unidos, Canadá e Panamá votaram contra essa nota, pela razão óbvia de ela não refletir os compromissos da OEA com a democracia e os direitos humanos.

O passo seguinte da manobra, este ainda mais escandaloso, foi convocar uma reunião de chanceleres da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para acertar o envio de um grupo de "mediadores" para a Venezuela. A Unasul, como se sabe, é instrumento dos governos bolivarianos - desimportante, ela hoje só existe para dar reconhecimento a governos claramente antidemocráticos, em nome de uma certa "integração latino-americana".

Assim, os tais "mediadores" da Unasul não farão nada além do que deles se espera, isto é, fazer vista grossa às ações violentas de Maduro. Ao anunciar a iniciativa, Dilma explicou, em seu linguajar peculiar, que a ideia é "fazer a interlocução pela construção de um ambiente de acordo, consenso, estabilidade, lá na Venezuela". Ora, que "diálogo" é possível quando não se pretende exercer a necessária pressão diplomática sobre Maduro, que reprime manifestantes usando gangues criminosas e encarcera dissidentes sem o devido processo legal?

Portanto, a constituição de uma comissão na Unasul para a Venezuela tem o único objetivo de deixar Maduro à vontade, sem ser constrangido a recuar e a ouvir as reivindicações da oposição - que basicamente protesta contra a destruição da Venezuela pelo "socialismo do século 21".

Percebendo o truque, os oposicionistas venezuelanos trataram de enviar uma carta à Unasul em que pedem aos países-membros que observem os acontecimentos no país "com objetividade" e que a entidade "não seja usada como um instrumento de propaganda". Mas é justamente disso que se trata: se tudo ocorrer conforme o script bolivariano, a Unasul vai respaldar o governo Maduro, revestindo-o de legitimidade - o que, por conseguinte, transforma a oposição em golpista.

Ao tratar de forma leviana este grave momento, em respeito a interesses que nada têm a ver com a preservação da ordem democrática na região, o Brasil torna-se corresponsável pela consolidação de um regime delinquente.

Quando um governo atrapalha o País

JOSÉ SERRA
O Estado de S.Paulo


Poucas vezes a condução governamental atrapalhou tanto os rumos da economia brasileira como nos dias atuais. O Brasil não está à beira da insolvência fiscal ou de balanço de pagamentos, nem sob o risco de dar calote nos credores nacionais e externos, por mais que algumas agências internacionais de risco, em geral energúmenas, estejam prestes a sugeri-lo. São as mesmas agências que agravaram a crise financeira do Sudeste Asiático nos anos 1990 e provocaram o estouro do subprime nos EUA em 2008/2009.

Tampouco o Brasil está à beira de algum colapso inflacionário. É certo que a inflação está reprimida e que a economia deveria e poderia crescer mais. No entanto, a produção e o emprego não estão desabando: 2,3% de expansão do PIB no ano passado é um número baixo, mas bem acima da taxa de crescimento demográfico, de 0,8%.

A dívida líquida do setor público em relação ao PIB situa-se em torno de 35%, proporção bastante moderada no contexto internacional. Em 2002 era da ordem de 60%. Como lembrou Francisco Lopes, mesmo a dívida bruta, em geral apontada como em situação crítica, não é assustadora. Se dela excluirmos o equivalente às reservas de divisas, a proporção cai para 40% do PIB. Um quarto disso decorre das operações de crédito subsidiado do BNDES, um número alto, mas não apocalíptico, até porque nem tudo virará mico nas mãos do banco e do Tesouro.

Por que, então, as expectativas dos agentes econômicos são tão pessimistas? Essencialmente, em razão da insegurança que o governo Dilma provoca e do pesadelo de que ele possa prolongar-se por mais quatro anos. Esta é a questão essencial: não houvesse a possibilidade constitucional da reeleição, tais agentes estariam muito mais tranquilos, mesmo que o PT fosse o favorito.

A insegurança despertada pelo governo vem da incrível inépcia para acelerar os investimentos em infraestrutura - que deveriam ter sido o motor de um novo ciclo expansivo de produção e produtividade da economia -, seja diretamente, pelo investimento governamental, seja mediante parcerias com a área privada. Vem dos erros cometidos a céu aberto, como no caso da intervenção nos preços da energia elétrica, à custa de incertezas para o setor e de imensos subsídios fiscais, que aumentarão no futuro próximo. Vem das desonerações tributárias improvisadas, que acabaram agravando o déficit público. Vem da situação pré-falimentar da Petrobrás e da mediocridade da gestão da empresa, que gerou altos déficits comerciais na área de combustíveis. Vem da absoluta falta de uma política comercial externa e da estultice das amarras do Mercosul, que este governo não inventou, mas consagrou.

Vem também da percepção de ruindade geral, não só em relação à economia: vale, por exemplo, no caso da educação - talvez a área mais fraca do governo Lula, que sua sucessora fez questão de piorar, por incompetência e opção preferencial pelas farsas. Vem da fraqueza exposta da equipe governamental, com gente que não estaria habilitada a administrar um município de tamanho médio. Vem da percepção de amadorismo político, em face da incapacidade de ministrar alianças partidárias. Vem da incrível fragilidade para lidar com as expectativas - tanto na forma como no conteúdo.

A fragilidade não está apenas na presidente, que raramente consegue falar durante cinco minutos algo que faça sentido, tenha começo, meio e fim, com conteúdo e coerência. Há um nivelamento por baixo que se espraia em todas as áreas da administração. Não me lembro de nenhum governo, desde Juscelino Kubitschek até hoje, passando pelos militares, que se tenha dedicado a rebater um editorial de jornal - no caso, o britânico Financial Times - por intermédio de um ministro de Estado. E pior: o governo o fez com argumentos de botequim, na linha "você fala mal de nossa economia e nós falamos mal da economia do seu país".

A economia brasileira não está à beira do precipício, mas está presa numa camisa de força. Perdeu-se raio de manobra em matéria fiscal, de inflação e de balanço de pagamentos. É fato também que o governo Dilma não é a origem de todos os males, algumas das principais travas vêm do governo Lula - por exemplo, em relação à Petrobrás, vítima de grandes erros estratégicos na década passada, como o método de partilha no pré-sal e a forma como foi implementado.

Mais ainda, veio também do governo Lula a herança do desperdício dos recursos provenientes da bonança externa e da abundância de capitais internacionais. Esse dinheiro foi torrado em consumo e serviu à desindustrialização do País, problema que está na origem do lento crescimento, do desequilíbrio crescente do balanço de pagamentos e do freio aos investimentos privados. Aliás, foi em relação ao período Lula que outra publicação britânica, a revista The Economist, fez uma das capas mais equivocadas de sua história, no fim de 2009: mostrava um Cristo Redentor turbinado a jato, rumo ao céu da prosperidade econômica. Uma análise econômica algo cuidadosa mostraria que o querosene do jato não duraria muito além das eleições do ano seguinte.

Infelizmente para as expectativas econômicas, a presidente pretende disputar as eleições porque, apesar de sua administração não ser bem avaliada, as pesquisas de intenção de voto não são desanimadoras para ela. É um quadro compatível com a presença diária do governo na TV, o investimento maciço em propaganda e uma oposição tímida. Creio que as intenções de voto em Dilma tenderão a murchar na sequência da fragilidade do seu desempenho, mas isso ocorrerá bem mais adiante. Nesse caso, imaginem os leitores o volume dos novos tropeços verbais e não verbais que nos espera. Curiosamente, no entanto, a possibilidade de alternância de governo poderá ao menos impedir que as expectativas se deteriorem. O Brasil precisa tanto de oposição que a simples possibilidade de que ela venha a fortalecer-se já melhora o ânimo dos agentes econômicos.

Em artigos anteriores escrevi que o governo havia sumido. Pensei melhor: infelizmente, ele existe.
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Estado de exceção

DEMÉTRIO MAGNOLI
O GLOBO

Os cubanos estão chegando. O governo anunciou que quatro mil novos profissionais cubanos desembarcarão no país, para se juntarem aos 7.400 já integrados ao Mais Médicos. Mirando o acessório, críticos provincianos diagnosticam a natureza eleitoreira de um programa movido, essencialmente, a razões de política internacional. Essa linha de crítica embaça o olhar, auxiliando o governo a ocultar o impacto mais desastroso do compromisso ideológico com Havana: o Mais Médicos introduz uma “exceção cubana” nas regras de nossa democracia.

Num discurso de 1960 às Milícias Cubanas, Che Guevara anunciou o surgimento, no pote quente da revolução, de “um novo tipo de homem” e de uma “medicina revolucionária”. Menos de três anos depois, 58 médicos cubanos apresentaram-se ao primeiro governo da Argélia independente, inaugurando a política de “missões internacionalistas”. Os ecos da ideia original reverberam no lema “um exército de batas brancas”, que acompanha as solenidades de despedida dos profissionais de saúde enviados ao exterior. Contudo, há muito, o objetivo de exportar a revolução foi substituído por outras metas, ligadas à sobrevivência do regime castrista. É disso que trata o Mais Médicos.

O “Maleconazo”, uma revolta popular na esplanada costeira da capital cubana, em 1994, acendeu um sinal vermelho de alerta, evidenciando que a depressão econômica do período pós-soviético ameaçava o poder de Fidel Castro. A “medicina internacionalista” converteu-se, então, em uma das ferramentas de restauração da estabilidade política. A Escola Latinoamericana de Medicina (Elam), uma instituição destinada a atrair estudantes estrangeiros oferecendo bolsas integrais, fundada em Havana, em 1998, tinha a função de romper o isolamento diplomático do regime. As missões médicas no exterior, por sua vez, converteram-se em fonte crucial de divisas e, desde a consolidação do chavismo, em moeda de troca nas importações de petróleo subsidiado da Venezuela. O Mais Médicos entra em cena na hora do esgotamento da “solução venezuelana”.

Mais de 15 mil médicos cubanos foram enviados à Venezuela e milhares de outros à Bolívia, ao Equador e à Nicarágua. Na última década, um em cada três médicos de Cuba trabalhava no exterior em qualquer momento determinado, o que provocou carências em hospitais da Ilha já premidos por falta de remédios e deterioração de equipamentos. O Mais Médicos nasceu de uma articulação secreta entre Lula e o regime castrista concluída nas semanas dramáticas da agonia de Hugo Chávez em Havana, como resposta à hipótese de interrupção do programa de intercâmbio de médicos por petróleo. O novo contingente de “missionários” de Cuba chega ao Brasil na moldura do aprofundamento da crise econômica venezuelana e das incertezas sobre o futuro do governo de Nicolás Maduro.

Mas toda a operação de importação de médicos cubanos exige que se congele a vigência das leis brasileiras que asseguram direitos políticos e trabalhistas. Os primeiros precisam ser suspensos para assegurar o controle de Havana sobre “soldados de batas” inclinados a “desertar”. Os segundos, a fim de propiciar a transferência da quase totalidade dos recursos para o caixa do Estado cubano. Evidentemente, o esquema não funcionaria sem a cumplicidade ativa do governo brasileiro.

Na Venezuela, as oportunidades de “deserção” são menores pois, na ausência de um Judiciário independente, praticamente inexistem obstáculos à deportação de médicos cubanos pelo regime chavista. No Mais Médicos, a forma encontrada para reduzir esse risco é submeter os médicos ao controle de agentes policiais de Havana, que atuam sob o disfarce de funcionários da “Brigada Médica Cubana”. Os “missionários internacionalistas” não podem receber visitas ou deslocar-se para outras cidades sem informar tais agentes. O Brasil, de fato, sob o silêncio desavergonhado do Parlamento e do Ministério Público, colocou entre parêntesis o direito de ir e vir.

A Organização Pan-Americana de Saúde, um órgão internacional capturado pelo governo cubano, faz a intermediação da contratação pelo Brasil dos médicos cubanos. Celebrados com uma certa “Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A.”, fachada do próprio regime castrista, os contratos conferem aos profissionais apenas uma fração do salário, reservando a maior parcela à misteriosa empresa. O Ministério da Saúde mentiu ao declarar que são contratos similares aos de médicos cubanos atuando na França, no Chile e na Itália. Nos casos francês e chileno, os profissionais recebem a integralidade do salário; a Itália nem sequer contrata médicos cubanos. O Brasil colocou entre parêntesis sua legislação trabalhista — e o Ministério Público do Trabalho só começou a reclamar quando eclodiu a denúncia da “desertora” Ramona Rodríguez.

A solidariedade política entre uma democracia e uma ditadura destila, inevitavelmente, um ácido que corrói os valores da primeira. Tradicionalmente, a política externa brasileira é avessa ao embargo econômico americano contra Cuba — uma posição que pode ser defendida com base em princípios. Os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff deram um passo à frente (ou melhor, atrás!), produzindo declarações asquerosas sobre presos políticos em Cuba — e o ex-ministro Tarso Genro ultrapassou tanto as fronteiras da legalidade quanto as da decência ao deportar os pugilistas cubanos. O Mais Médicos, porém, eleva a solidariedade a um novo grau. Ao importar, junto com os médicos, as normas jurídicas da ditadura castrista para o Brasil, o programa instala um Estado de exceção.

A crise do regime castrista já não se limita a provocar tensões na política externa brasileira. Agora, ela mutila o arcabouço de direitos políticos e sociais vigentes no Brasil. Que isso aconteça sem maior escândalo é atestado da falência das oposições e de um perigoso amortecimento moral da opinião pública.
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DEMOCRACIA E DITADURA



Denis Lerrer Rosenfield 
O GLOBO - Opinião


O discurso da diplomacia brasileira sobre a Venezuela e os países bolivarianos segue a doutrina do PT, segundo a qual estaríamos diante de uma democracia, pelo simples fato de lá haver eleições. Eleições seriam, então, o único critério de definição de estados democráticos, com evidente desprezo para com as instituições da sociedade civil. Mais concretamente, há total desconsideração para com o equilíbrio de poderes e a independência dos poderes Judiciário e Legislativo. A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral é sistematicamente pisoteada, senão aniquilada.

Neste sentido, a “democracia” poderia prescindir das liberdades civis e políticas, devendo se contentar com eleições e referendos, cada vez mais restritos, pois as condições de competitividade são progressivamente reduzidas. De fato, a democracia representativa, nesses países “socialistas”, é substituída, para retomar um conceito de J. L. Talmon, pela democracia totalitária.

A democracia representativa caracteriza-se por ser constitucional, obedecendo a princípios que fogem a qualquer deliberação popular. Consequentemente, não pode ser objeto de deliberação a igualdade de gêneros ou de raças. Uma maioria popular machista ou racista não poderia se impor em uma democracia representativa, graças aos limites constitucionais, de princípios e valores, por ela assegurados. 
Segundo a democracia totalitária, o poder reside na vontade popular encarnada pelo líder carismático. Não possui ele, em virtude de sua delegação popular, nenhuma limitação, como se eleições lhe autorizassem, virtualmente, a fazer qualquer coisa. Basta um referendo para que tal ocorra. Foi o que aconteceu com o “socialismo do século XXI”, nas figuras de Chávez e de sua caricatura Maduro, que aboliram a separação de poderes, emascularam o Judiciário e o Legislativo, fazendo do Executivo o único poder que conta.

A economia de mercado, por sua vez, foi cerceada quando não aniquilada, tendo como consequência o domínio do Estado, cujos efeitos mais nítidos são a inflação galopante e a falta de produtos básicos, sendo o papel higiênico o mais emblemático deles.

A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral foi sendo suprimida, sobrando, hoje, o resquício de uma sociedade livre. Milícias no melhor estilo das SS nazistas aterrorizam a população, fazendo uso da violência e do assassinato sempre e quando o líder máximo o exigir. Tudo, evidentemente, em nome da “revolução” e do “socialismo”.

Não obstante, o Itamaraty e setores do PT continuam justificando a “democracia venezuelana”, como se os protestos do que resta de oposição fossem o real perigo. As posições estão totalmente invertidas. A dita “cláusula democrática”, bem entendida, significaria, apenas, a “cláusula democrática totalitária”.

Do ponto de vista diplomático, por uma questão de pudor, não se pode acatar o argumento de que o país não se imiscui nos assuntos de outros países, uma vez que foi bem isto que o Brasil fez no Paraguai. O então presidente Lugo foi afastado do poder por um impeachment, segundo a legislação daquele país. O governo brasileiro não reconheceu o impeachment e aproveitou a ocasião para suspender esse país do Mercosul, viabilizando, desta maneira, a entrada da Venezuela. É evidente o uso de dois pesos e duas medidas.

Nesta perspectiva, poderíamos aplicar os mesmos critérios para o que se denominou chamar de “ditadura” militar brasileira, com o intuito de melhor apreciarmos a “verdade” do período, contrastada com o juízo “democrático” do governo a propósito do “socialismo do século XXI”. 
Considera-se a ditadura militar como se estendendo desde o governo Castello Branco até o fim do governo Figueiredo, quando há diferenças significativas neste longo período. O governo Castello Branco, por exemplo, tinha uma inclinação liberal, enquanto o governo Geisel foi fortemente estatizante.

Segundo esse critério, o governo Dilma se encaixaria na concepção geiselista, com forte intervenção do Estado na economia, a escolha de empresas e setores privilegiados a serem apoiados e o uso da política fiscal e de subsídios para o apoio a esses grupos. Seria Geisel de esquerda conforme essa concepção? Mais ou menos democrático? E Lula, em seu primeiro mandato, seria castellista?

Durante o período do governo Castello Branco (1964 a 1967) até o Ato Institucional nº5, promulgado por Costa e Silva, em dezembro de 1968, o país gozava de ampla liberdade. Foi esse ato extinto em 1978, por Geisel, e o habeas corpus, restaurado. Penso não ser atrevido dizer que as liberdades civis eram muito mais respeitadas do que o são nos países que, atualmente, encarnam o “socialismo do século XXI”.

A gozação, para não dizer a sátira e a ironia do “Pasquim”, começou em 1969, quando o regime militar tinha endurecido e a ditadura propriamente dita se estabeleceu. Isto é, a ditadura tolerou o “Pasquim”, enquanto os governos bolivarianos não toleram qualquer crítica, muito menos aquela que se faz através da sátira que atinge os seus líderes.

A greve do ABC, sob liderança de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, foi um marco no Brasil, abrindo efetivamente caminho para a liberdade de participação sindical. Ocorreu em 1974, sob o governo Geisel. A partir dela novas greves se estenderam de 1978 e 1980, já no governo Figueiredo. Imaginem algo semelhante nos países bolivarianos! Por muito menos, os “socialistas” enviam as suas milícias e fazem uso de perseguições, assassinato, prisões e tortura.

A Lei da Anistia, negociada entre militares democratas, políticos do establishment e a oposição do MDB, com amplo apoio da sociedade civil, foi assinada por Figueiredo, em agosto de 1979, abrindo realmente caminho para a redemocratização do país. São os próprios militares que tomaram a iniciativa de abandonar o poder.

Sem dúvida a “democracia” bolivariana consegue ser mais dura do que a ditadura brasileira nesses períodos!

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