quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ninguém segura este país

Vinicius Torres Freire - Folha de S. Paulo

Difícil que o PIB cresça 2% em 2018, com este início de ano pífio e tumulto político

O crescimento da economia no resto deste ano está por um fio de esperança. Depende das intermitências do coração, dos ânimos de consumidores, praticamente. A julgar por conversas recentes, a confiança das empresas vai para o vinagre.

Durante os últimos dez dias, por aí, este jornalista ouviu empresários e executivos a falar em “risco” ou “surto de venezuelização” do Brasil. Não vem ao caso se a hipótese é surtada, talvez um exagero destes dias de pânico. O que importa é o espírito da coisa: assim tende a ser se assim lhes parecer.

Muita gente de empresa parece conformada com o falecimento da aceleração do crescimento em 2018. Pelo menos nestes dias, desapareceu de vez a conversa de que um “candidato responsável de centro” ainda está para crescer nas pesquisas.

Claro que o tumulto recente, dos caminhões ao dólar, nada teve a ver com a lerdeza da economia no primeiro trimestre. Ao contrário. A economia catatônica contribuiu para a revolta geral.

Andávamos devagar, quase parando. Agora, há vento contrário e areia no motor. Caso a economia continue no mesmo ritmo do primeiro trimestre, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) em 2018 será de 1,5% (no ano passado, foi a quase estagnação de 1%).

A fim de crescer algo em torno dos 2,5%, que era mais ou menos a média da previsão da praça financeira desde dezembro, a economia teria de crescer 1,1% por trimestre no restante do ano (cresceu 0,4% no primeiro trimestre deste 2018, soubemos nesta quarta, 30, pelo IBGE). Ou seja, praticamente inviável.

Os motivos imediatos da lerdeza são sabidos.

O desemprego na prática não cai desde setembro do ano passado; o emprego precário e mal pago domina o mercado. O crescimento mais rápido do rendimento do trabalho em 2017 era em parte ilusório; noutra parte, perdeu impulso com o fim da surpresa inflacionária positiva (inflação caindo muito abaixo dos reajustes nominais acordados).

O impulso do saque do FGTS não foi o bastante para o PIB pegar no tranco. As taxas de juros nos bancos pararam de cair desde o fim do ano.

A construção civil voltou a cavar mais um pouco do buraco onde caiu quase morta, em parte porque o governo quebrado dizimou o investimento em obras, apesar de gastar em besteira (favores para setores empresariais, perdões de dívidas, aumentos para servidores federais e, agora, subsídio para o diesel).

Reformas não passaram, entre outros motivos porque o governo vive ocupado em fugir da polícia. Etc.

A dose nova de veneno vem da revolta geral. Ficou evidente a popularidade de ideias lunáticas, do autoritarismo político a soluções erradas para problemas econômicos (crise do diesel, crise fiscal).

Nas ruas, vê-se um monstro de duas cabeças: uma apoia a intervenção estatal paternalista na economia, outra rejeita impostos. O bicho ainda tem um rabo gordo de apreço por salvadores da pátria. Há um chocalho autoritário na ponta.

As maluquices tiveram apoio explícito de vários candidatos e tolerância conivente ou covarde de outros. Todas as flores do pântano florescem, tudo parece possível, em especial o pior.

O país esteve à beira da paralisia econômica, lideranças do Congresso e o governo zumbi de Michel Temer legitimaram e ratificaram chantagens e soluções erradas. Esquerda e direita tentaram faturar a crise. Mais do que mesquinharia política, viu-se oportunismo sórdido e suicida.

Quem vai investir nesse ambiente? A senhora leitora, que é perspicaz, investiria?

Triste episódio

Zeina Latif *- O Estado de S.Paulo

A combinação de governo sem credibilidade com apoio ao movimento aumentou a fatura

Difícil explicar para a sociedade indignada a complexidade que envolve a paralisação dos caminhoneiros. Para piorar, ninguém quer ouvir explicações de um governo com reduzida credibilidade. O resultado é o apoio de parcela importante da sociedade à greve.

A raiz da crise está nos equívocos de governos passados, como apontado por Samuel Pessôa. Os caminhoneiros reagiram à queda do seu rendimento e às incertezas em relação ao rendimento no futuro. De um lado, fretes deprimidos pela recessão e pelo crescimento excessivo da frota de caminhões (54% entre 2008 e 2014) estimulado por crédito subsidiado. De outro, o ajuste expressivo do preço do principal insumo dessa atividade, depois de vários anos de preços controlados, que gerou um custo em torno de US$ 40 bilhões para a Petrobrás, segundo especialistas.

A conta do artificialismo na economia tardou, mas apareceu, gerando uma sensação de que toda a culpa da crise é do governo atual, ainda que este tenha sua parcela de responsabilidade. Um governo enfraquecido que não consegue mais aprovar reformas, resistir a pressões de grupos de interesse e restabelecer a ordem.

Os motoristas autônomos e as pequenas transportadoras têm razão em reclamar da flutuação excessiva do preço do diesel, pois não conseguem repassar tempestivamente esse custo ao valor do frete. Além disso, não há mecanismos de proteção (hedge) disponíveis. Mas isso não justifica uma paralisação ampla e duradoura, bloqueando estradas e afetando setores vitais.

A Petrobrás também tem razão de repassar ao consumidor a alta do dólar e do diesel no mercado internacional. É necessário preservar sua solidez financeira e capacidade de investir. Pode-se discutir a forma de repasse, mas não o repasse em si.

O cenário externo mudou, o preço do diesel subiu e a conta precisa ser paga. Em condições normais, parte do choque de custo seria absorvida pelo setor produtivo, e, certamente, o grosso seria repassado ao consumidor final. Na saída desorganizada de agora, o ônus para a sociedade ficou bem mais alto, pelo impacto fiscal e na economia.

A combinação de governo sem credibilidade, apoio da sociedade ao movimento e eleições aumentou a fatura. A redução de R$ 0,46 no litro do diesel é significativa e as demais medidas do acordo lembram o Brasil do passado.

O impacto na atividade econômica não será desprezível. Há destruição de riqueza, como na indústria de alimentos; há perdas que não serão recuperadas, como no setor de serviços (meios de pagamentos e companhias aéreas, para citar alguns); e prejudica-se a saúde financeira de empresas, que poderão ter dificuldades para honrar compromissos. Mais difícil ficará a vida dos desempregados.

Além disso, a imagem do País foi afetada, sendo que as mudanças de contratos, como no caso do pedágio, e o sentimento de vulnerabilidade da Petrobrás podem afastar investidores.

Esse triste episódio revela várias fragilidades do Brasil: a resistência de grupos organizados às reformas estruturais, como o fim de subsídios; a vulnerabilidade da sociedade ao populismo e a fraqueza das instituições. Órgãos de controle não reagiram como deveriam. Atos ilegais dos grevistas não foram condenados e o acordo proposto pelo governo em vários pontos vai na contramão da defesa da concorrência, como apontado por Marcos Lisboa.

O comportamento da classe política e dos poderes preocupa. Com a fraqueza do Executivo, a responsabilidade deveria ser ainda mais compartilhada pelos demais poderes e esferas de governo. Houve oportunismo e omissão de muitos. Os governadores, de uma forma geral, lavaram as mãos, enquanto deveriam participar da solução com a mudança de cálculo do ICMS sobre o diesel e garantir o fluxo nas estradas. Lamentavelmente, alguns presidenciáveis pegaram carona na crise.

Não foram só as mercadorias que sumiram. O espírito republicano e a responsabilidade com o País também.
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* Economista

Flerte com o abismo


William Waack - O Estado de S.Paulo

Enorme quantidade de pessoas não entende que dinheiro público é o dinheiro delas

Como assim as pessoas apoiam um movimento, o dos caminhoneiros, mesmo sabendo que sofrerão severos transtornos e prejuízos diretos na vida pessoal e financeira? Em outras palavras, agindo contra os próprios interesses – e sabendo disso.

Supõe-se que alguma coisa mais esteja em jogo, além da irracionalidade em decisões (no comportamento de consumidores, por exemplo) há tanto tempo detectada por teorias econômicas de comportamento. Como eventual contribuição a uma explicação, avanço aqui duas possibilidades inteiramente subjetivas e derivadas da minha biografia pessoal como repórter.

Será que as pessoas percebem seus “interesses objetivos e racionais” como analistas percebem ou acham que deveriam perceber? No caso brasileiro dos últimos dias, é patente que não. Em primeiro lugar, salta aos olhos que uma enorme quantidade de pessoas não entenda que dinheiro público é o dinheiro delas, recolhido por meio de impostos e contribuições. Para elas, portanto, se tem alguém gastando mais do que arrecada, esse alguém é “o governo”, essa distante e incompreensível entidade que manda nas nossas vidas sem que a gente entenda muito bem como.

Em segundo lugar, o governo é ocupado por “eles”, políticos e seus nomeados, uma espécie de casta. “Eles” são interessados apenas nos próprios negócios, na própria corrupção e, agora que “nossa” paciência se esgotou e nossa indignação explodiu, precisam ser varridos como lixo. É evidente que “nós” não nos sentimos representados por “eles” – e quando confrontada com o fato de que “eles” estão lá pois foram votados para estarem lá, imensa quantidade de pessoas não gosta do que enxerga no espelho.

Muita gente acha que a revolta que acompanhou as manifestações de caminhoneiros (acompanhadas, em alguns casos, de comportamento criminoso) é uma espécie de mal necessário para que dessa situação crítica renasça um novo País, não importam os danos imediatos causados à economia. É óbvio, na minha percepção, que essa conduta reflete muito mais uma imensa frustração do que um claro sentido de ação, mesmo os caminhoneiros tendo arrancado o que pretendiam (baixar os próprios custos, empurrando a conta para outros).

Não são poucos os que enxergaram, por outro lado, que atender às reivindicações dos caminhoneiros só seria possível tornando ainda mais complicada a solução para contas públicas quebradas. Mas – e aqui deveríamos escrever MAS, em maiúsculas –, foi irresistível para parcela expressiva da população a identificação proporcionada pelo símbolo do trabalhador sacrificado (o caminhoneiro) que levanta o dedo médio em riste contra “eles”, enquanto entrega a Deus o comando na boleia.

Acho perda de tempo decifrar neste momento qual o “recado” que essa revolta está transmitindo para a política – na verdade, a mensagem principal é o ódio e o desprezo em relação à própria política, entendida como um jogo sujo no qual só “eles” ganham, com seu sistema de benefícios próprios, desperdícios, corrupção e a inexplicável administração de preços que leva o combustível que “nós” produzimos a custar bem menos na Bolívia.

Temo ter de dizer que esse flerte com o abismo, registrado nos últimos dias, seja a expressão da desintegração (que não me parece meramente passageira) da capacidade do Estado de impor diretrizes e autoridade. Mas também desse nebuloso estado de espírito segundo o qual a fúria e a frustração que existem na população criam a necessidade de mudança por meio do fracasso social.

Perplexidade

O que me deixa perplexo com essa recente crise foi a qualidade de apoio e, sobretudo, de entendimento do eleitor, muito próximo ao caos anunciado de outubro, acerca de como as coisas funcionam no país.

A esquerda (leia-se PT com maior peso) que desde o início articulou esse "Autônomo" movimento, conduziu o processo para obter a simpatia da sociedade para os detratores e incutir uma rejeição ao presidente Temer. Por esse viés conseguirão tornar o nosso ir e vir, até outubro, e acesso a serviços básicos (serviços de saúde, energia elétrica, coleta de lixo, transportes, etc etc) variando de desconfortável ao desesperador.

Para uma sociedade contumaz e deliberadamente avessa à leitura e ao conhecimento da gestão da coisa pública, em pleno ano de 2018 em uma, apesar de tênue, República, entender que temos um imperador onisciente, onipresente é a verdade absoluta ao invés de um presidente em uma República que depende, sobremaneira, dos humores e boa vontade dos parlamentares lá colocados pelo distraído e desinteressado voto de um eleitor que prima por manter-se na puberdade democrática.

Após os carnavalescos movimentos de rua de Fora Collor e Fora Dilma, o cidadão ainda recusa-se a entender o papel de eminência parda dos nossos parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Não entenderam que presidentes, inobstante sua aproximação com o clientelismo e a corrupção, são reféns do Congresso. Ou se dá o que eles exigem ou caem...simples assim.

Collor reduziu a quantadade de ministérios para 16 e Lula os elevou para 28 e chamou a isso de "governabilidade". Dilma, evitando captular, elevou para 32. Tudo isso para atender a interesse de deputados e senadores. E ninguém se importou em aprender e a refletir, até para melhorar a qualidade do voto.

A base das reclamações dos caminhoneiros é a Carga Tributária. Quem resolve isso são os deputados e senadores e não o presidente. Ninguém incomoda governadores e prefeitos responsáveis pela má gestão dos 45% de tributos incidentes nos combustíveis. Mas vai explicar isso para quem só tem embocadura cognitiva para entender as tramas de novelas ou táticas de posicionamento de jogadores em campo.

Já que o PT tem absoluta noção de que terá um desastre nas urnas nas duas esferas da administração, resta-lhe tumultuar e invalidar eleições empurrando o povo para pedir militares nas ruas e, com tal situação, suspender eleições. Estamos às portas dessa convulção social a ser concatenada a começar para paralisação dos petroleiros.

Enfim, é a sociedade esclarecida, com uma fabulosa capacidade de acesso a informação, fazendo uma vez mais exatamente o que o PT quer que seja feito. O pior é que não percebem isso.

Aposta no caos


O sucesso da greve dos caminhoneiros, que colocou o governo de joelhos, inspirou os oportunistas de sempre a tentar capitalizar e, quem sabe, ampliar a insatisfação popular. É o caso da Federação Única dos Petroleiros
       
O Estado de S.Paulo

31 Maio 2018

O estrondoso sucesso da greve dos caminhoneiros – que viram atendidas todas as suas reivindicações e colocaram o governo de joelhos, arrancando urras de parte considerável da população – inspirou os oportunistas de sempre a tentar capitalizar e, quem sabe, ampliar a insatisfação popular.

É o caso, por exemplo, da Federação Única dos Petroleiros (FUP), sindicato petista que decidiu deflagrar “a maior greve da história da Petrobrás” para protestar contra “os preços abusivos dos combustíveis” e “contra o desmonte da empresa que é estratégica para a nação” – razão pela qual exige a demissão do presidente da estatal, Pedro Parente.

Felizmente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) declarou a greve ilegal, estipulando multa diária de R$ 500 mil em caso de descumprimento. Em sua decisão, a ministra do TST Maria de Assis Calsing disse que se trata, “a toda evidência, de greve de caráter político”. Com razão, a magistrada considerou que a pauta dos grevistas representa “forte ingerência no poder diretivo da Petrobrás” e também “em ações próprias de políticas públicas, que afetam todo o País e cuja solução não pode ser resolvida por pressão de uma categoria profissional”. Além disso, escreveu ela, uma greve de petroleiros neste momento provocaria enormes prejuízos à população, especialmente “por resultar na continuidade dos efeitos danosos causados com a paralisação dos caminhoneiros”. E Maria de Assis Calsing arrematou: “Beira o oportunismo a greve anunciada”.

Os oportunistas em questão, é claro, não se fizeram de rogados. “Consideramos inconstitucional (a decisão do TST). A Constituição nos garante decidir quais interesses devemos proteger com a greve”, disse um porta-voz da FUP. A pilantragem hermenêutica apenas confirma o caráter totalmente mendaz desse e de outros movimentos feitos exclusivamente para explorar o apoio popular obtido pela greve dos caminhoneiros.

Esses movimentos pretendem ampliar a já crescente hostilidade ao governo do presidente Michel Temer, transformado pelos jacobinos da luta anticorrupção e por aproveitadores em geral em símbolo de um país carcomido pela corrupção e pelos privilégios a minorias bem articuladas.

Ora, não é preciso morrer de amores por Temer para ver aí um evidente exagero, pois o presidente herdou um país esfrangalhado pela criminosa irresponsabilidade lulopetista e, em pouco tempo, restabeleceu um mínimo de racionalidade fiscal, disso resultando a queda da inflação e dos juros e a retomada do crescimento. No entanto, nada do que esse governo faz, mesmo seus acertos mais evidentes, parece digno de crédito, pois, conforme indicam as pesquisas e a julgar pelo apoio popular aos caminhoneiros, Temer passou a ser um exemplo de governo desastroso.

Esse discurso ressuscitou o que deveria estar morto, isto é, o embuste lulopetista, segundo o qual o País era uma maravilha nos tempos de Lula da Silva e Dilma Rousseff – inclusive com combustível barato, subsidiado. A nostalgia daqueles tempos “dourados” ignora, por exemplo, que a política de subsídios tende a concentrar renda nos grupos organizados da sociedade, restando à maioria desorganizada e pobre arcar com o custo.

Aliás, é preciso lembrar que a crise dos caminhoneiros tem sua origem não só na ilusão do diesel barato, mas também na farra petista do crédito farto, que estimulou muitos a comprar caminhões, inflando assim a oferta do serviço de transporte, o que baixou o preço do frete. Quando veio a crise, a demanda pelo serviço caiu, deixando muitos caminhoneiros endividados e sem trabalho. A racionalização do preço dos combustíveis, para sanear a Petrobrás destruída pelos petistas – os mesmos que ora organizam uma greve para “defender” a estatal –, completou o quadro.

A política de austeridade e as reformas de Temer nada têm a ver com essa crise. São, ao contrário, sua solução, nunca sua causa. Mas é mais fácil acreditar nas patranhas lulopetistas ou, pior, defender a volta dos militares ao poder, do que aceitar a dura realidade de que o Estado não é senão administrador de recursos escassos.

O ESPLENDOR DO POLITICAMENTE IDIOTA


por Miguel Sousa Tavares. Artigo publicado em 07.05.2018


Pobre Fernando Medina, do que ele se foi lembrar: fazer um Museu das Descobertas, ou dos Descobrimentos, em Lisboa! Uma ideia que pareceria absolutamente consensual e necessária e que só pecava por tardia, parece que se transformou numa polémica que já suscitou a indignação de mais de uma centena de historiadores e “cientistas sociais”, trazida a público num abaixo-assinado de professores de diversas Universidades, portuguesas e estrangeiras — se bem que, para dizer a verdade, quase todas de segundo plano, as Universidades, e quase todos, portugueses, os professores, com excepção de alguns, que presumo brasileiros, em decorrência dos nomes que ostentam e que só podem ter origem em antepassados portugueses e não em avós balantas ou mesmo tupi-guaranis.

Antes de, com a devida vénia e indisfarçável terror, entrar na polémica, deixem-me confessar a minha ignorância preliminar relativamente a duas questões, seguramente menores: desconheço quase por completo, não só os nomes, mas, sobretudo, a importância dos ditos historiadores para o que, num português em voga mas não recomendável, chamam “a riqueza problematizante” do que ora os ocupa; e desconheço ainda mais o que faça ao certo um cientista social que o torne uma autoridade na matéria.

Isto posto, e indo ao fundo da controvérsia, estas cem excelentíssimas autoridades indignam-se, em suma, contra o maldito nome do nascituro museu. Porque a questão, dizem eles, é que chamar-lhe Museu das Descobertas ou dos Descobrimentos, “não é apenas um nome, é o que representa enquanto projecto ideológico”. Este, esclarecem, é o projecto ideológico do Estado Novo, “incompatível com o Portugal democrático”. Bravo, António Ferro, o SNI continua vivo, os Descobrimentos portugueses mais não foram do que a antecâmara do colonialismo e o Estado Novo o seu apogeu e desfecho natural! O “mar sem fim português”, de que falava Pessoa, outra coisa não era, afinal, do que o Portugal do Minho a Timor, de que falava Salazar.

Pois, bem, se a palavra “descobertas” envolve um “projecto ideológico” de conotações maléficas, isso significa que as excelentíssimas autoridades têm outro projecto ideológico que se opõe e resgata este. Qual seja, e abreviando, chamar a atenção, por exemplo, para que os povos alegadamente descobertos pelos portugueses não se terão sentido descobertos, porque, de facto, já lá estavam. É um argumento tão fantástico, que, de facto, é irrebatível. Mas, salvo desconhecida opinião, ninguém sustenta que Vasco da Gama criou do nada o samorim de Calicut, que os Jesuítas encontraram o Tibete despovoado ou que Pedro Álvares Cabral celebrou a primeira missa em Terras de Santa Cruz para uns fantasmas vestidos de índios. Não, o que eles fizeram foi encontrar as rotas, marítimas ou terrestres, que ligaram o Ocidente e a Europa ao Oriente e às Américas, pondo em contacto dois mundos até aí sem contacto algum (com a excepção parcial das viagens de Marco Polo, por via terrestre, e as viagens marítimas, sem sequência científica ou outra, dos vikings). O que se sustenta é que não foi o samorim que se deu ao trabalho de largar o seu luxuoso trono e apanhar uma low-cost para a Europa, mas o Gama que se arriscou a ir mar fora naquelas cascas de noz ao seu encontro. Na época, isso significou — em termos de navegação, de cartografia, de indústria naval, de rotas comerciais e de avanços científicos em todas as áreas — um pulo de uma dimensão nunca antes e raras vezes igualado depois, na história da Humanidade. Sem falar das terras virgens que descobrimos e dos que não descobriram povos, dos que navegaram em pleno desconhecido, movidos por um verdadeiro sentido de descoberta tão extremo e destemido que só poderemos classificar como quase demência: Bartolomeu Dias dobrando o Cabo da Boa Esperança sem saber o que iria encontrar do outro lado; Fernão de Magalhães procurando insanamente o Estreito que ainda hoje tem o seu nome, ligando o Atlântico ao Pacífico e provando que a terra era redonda e circum-navegável em toda a sua extensão; os irmãos Corte-Real desbravando o limite extremo do norte navegável. Todos eles em mar aberto e em terra de ninguém, onde seria impossível às excelentíssimas autoridades encontrarem forma práctica de dar execução a outro dos argumentos arrolados para o conceito ideológico do seu museu: “Valorizar as experiências de todos os povos que estiveram envolvidos neste processo”.

Enfim, e sempre resumindo, vem depois o argumento da escravatura. É incontornável e eu subscrevo-o: deve estar referenciado num museu sobre as Descobertas, e subsequente colonização portuguesa. Sem esquecer, porém, que não foram os portugueses que inventaram a escravatura, mas apenas aproveitaram o comércio de escravos que encontraram florescente nas costas oriental e ocidental de África. E sem esquecer também que, sem desculpar o que foi a tragédia da escravatura, não há erro mais simplista de cometer do que julgar a História pelos padrões éticos contemporâneos. E estou à vontade no assunto, pois escrevi um romance histórico cujo tema central era a escravatura em São Tomé e Príncipe e em que, apesar de ela ter durado até à primeira metade do século XX (!), não encontrei, curiosamente, entre tanta fonte pesquisada e tanto historiador preocupado, nenhum trabalho histórico de referência que a contemplasse.

Não resisto a uma palavra aos invocados historiadores brasileiros que assinam esta petição. Conheço muito, de ver e de ler, da herança história de Portugal no Brasil — e tenho um profundo orgulho nela. Todos os ciclos de prosperidade histórica do Brasil, ligados às riquezas naturais, tirando o primeiro — o do pau-brasil, irrelevante, em termos económicos — foram feitos graças a árvores levadas para lá pelos portugueses: a cana de açúcar, a borracha, o cafeeiro, até os coqueiros, que levámos da Índia. E o ouro, o célebre ouro, roubado pelo D. João V? Ah, o ouro do Brasil! Do célebre “quinto real” (tudo o que cabia à Coroa), nem um quinto cá chegou. O resto? Perguntem a todas as ‘Lava-Jato’ que saltearam o Brasil, desde 1822. Pedras, monumentos? Tudo o que ficou de pé é português: no Pará, em Pernambuco, em Salvador, em Minas, no Rio, em Paraty, onde quiserem. E o Amazonas, cujo desbravamento por Pedro Teixeira é uma aventura assombrosa de coragem e persistência e cuja colonização, que incluiu a construção dos sete fortes de fronteira, erguidos com pedras de granito levadas de Portugal a mando do marquês de Pombal, e a que o Brasil ficou a dever milhões de quilómetros quadrados de floresta virgem preciosa, e que foi, no dizer do grande historiador brasileiro Joaquim Nabuco, “talvez a maior extraordinária epopeia de todos os Descobrimentos portugueses”? É bem provável que os brasileiros não saibam nem queiram saber dessa história. Os portugueses não sabem com certeza. Mas deviam saber.

Que haja portugueses que tenham vergonha desta história e queiram reescrevê-la numa espécie de museu de autoflagelação é problema deles. Mas não pode ser problema dos outros. O dinheiro dos nossos impostos não pode servir para fazer um museu contra a nossa História, contra uma História que foi tão grandiosa que, se calhar por isso mesmo, nem a conseguimos entender, na nossa pequenez actual. Tudo isto me faz lembrar o que escreveu no início de um poema uma senhora que, por acaso, era minha mãe: “Navegavam sem o mapa que faziam/ Atrás deixando conluios e conversas/ Intrigas surdas de bordéis e paços…”.

Para terminar: já me tinha pronunciado sobre isto antes. Antes de esta irrepetível oportunidade para fazer uma coisa bem feita ter sido capturada pela intelligentsia ociosa dos abaixo-assinados. Mas volto ao que então escrevi: eu não queria apenas um Museu das Descobertas em Lisboa. Queria um Museu de Portugal e do Mar ou dos Portugueses e o Mar. Onde coubesse também a história de duas outras extraordinárias epopeias que o comum dos portugueses e dos estrangeiros que nos visitam desconhece: a nossa contribuição única e indispensável na história da pesca à baleia (juntamente com os cabo-verdianos), no Atlântico e Pacífico, e na história da pesca ao bacalhau à vela, na Gronelândia e norte do Canadá. Desse modo se tornaria patente que não foi por um simples acaso, nem para espalhar a fé e o império, ou apenas para trazer a pimenta e a canela da Índia, que este pequeníssimo povo, entalado entre o fim da Europa e o mar, escolheu o mar como destino. E, porque o espaço tem relação directa com isso, porque está miseravelmente desaproveitado, porque é lindo e porque sai mais barato aos contribuintes, queria vê-lo na Cordoaria Nacional.

*Miguel Sousa Tavares, jornalista e escritor português, ignora o Acordo. Escreve segundo a antiga ortografia.

**Publicado originalmente no jornal Expresso e reproduzido do blog A Estátua de Sal, pelo Diário do Poder.

Até quando?



ANA CARLA ABRÃO
ESTADÃO - 15/05

Em tempos de revolução digital, é de surpreender que ainda dependamos de cartórios

Outro dia recebi uma ligação dizendo que o registro do meu imóvel estava vencido e que precisava de uma nova certidão emitida pelo cartório para evitar que meu pedido de remoção de uma árvore condenada fosse arquivado. Mais do que depressa, fui ao cartório e paguei as custas para a emissão da certidão – cujo prazo de validade é de 30 dias –, garantindo assim a autorização para retirar a árvore que ameaçava cair sobre a minha casa.

Fornecer essa informação à prefeitura me custou R$ 51, individualmente uma quantia irrisória. Mas significou também tempo, esforço e perda de produtividade, pois exigiu deslocamento e esperar numa fila para ter acesso a um pedaço de papel que ainda teve de ser entregue do outro lado da cidade. Além disso, meus R$ 51 ajudaram a engrossar uma receita que atingiu R$ 14,6 bilhões no ano de 2017 e que, além da parcela que entra como receita do cartório, alimenta um fundo do Tribunal de Justiça, outro do Ministério Público e em alguns Estados também ajuda os Tesouros estaduais a reforçar os caixas para custear despesas vinculadas ao sistema penitenciário.

Em tempos de revolução digital, não é difícil antever um futuro muito próximo em que a blockchain se torne a grande e única forma de conferir credibilidade às informações. É, portanto, de se surpreender que ainda dependamos tanto de instituições como os cartórios e que tenhamos de lançar mão de documentos físicos para garantir que as informações prestadas sejam verídicas. Ainda mais quando se trata de registros que deveriam estar unificados e acessíveis por órgãos públicos mediante uma simples autorização do cidadão. É como se manter na idade da pedra quando o mundo contemporâneo já se estabeleceu há muito e uma nova realidade digital já se impôs.

O Projeto de Lei 9.327/17, que cria a duplicata eletrônica, tenta trazer o avanço. Além do ganho generalizado de redução do custo do registro de garantias e do aumento da agilidade, o projeto traz um grande benefício às micro, pequenas e médias empresas que só têm no desconto de duplicatas o caminho para ampliar o seu pouco acesso a crédito. Ao tornar essas garantias mais seguras, o registro eletrônico reduz o custo de crédito não tanto para as grandes corporações, mas principalmente para um segmento que representa hoje 16 milhões de empresas, responde por 63% dos empregos com carteira assinada e 48% dos salários pagos no Brasil.

Conceitualmente, não diferimos muito do resto do mundo. Esse é um segmento que sofre os efeitos de balanços não confiáveis, da alta volatilidade e da pouca governança. A falta de acesso a dados sobre essas empresas gera incerteza quanto à qualidade do crédito e aumenta o prêmio de risco. Além disso, a falta de uma base de dados centralizada enfraquece a garantia. Com isso, a insegurança jurídica para cobrança e recuperação dos empréstimos é muito alta, o que se reflete em taxas de juros também mais altas.

Se essas garantias forem percebidas como de boa qualidade e críveis, ou seja, pouco sujeitas a fraudes, as evidências mostram que o mercado cresce e ajuda a alavancar empresas que, de outra forma, morrem sem acesso a financiamento para seus projetos. Isso reduz o diferencial de juros entre grandes e pequenas empresas. No Brasil, esse diferencial é hoje duas vezes maior do que na maioria dos países e é isso que o registro eletrônico das duplicatas quer combater. 

Ao baratear o custo de registro e fortalecer as garantias, o registro eletrônico dá maior poder de barganha ao pequeno e médio empresário, ampliando a competição e diminuindo os juros do crédito. Todos ganham com isso, a não ser aqueles cujas receitas vêm do monopólio de atestar o que pode ser atestado de forma mais rápida, barata e transparente.

Ao tolerarmos que o atraso continue se sobrepondo ao avanço, estaremos também aceitando que empregos deixem de ser gerados, que boas empresas percam a chance de crescer e que pequenos empreendedores continuem presos aos juros altos. Até quando continuaremos presos ao passado, evitando que um futuro melhor nos garanta um país mais rico e próspero?

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN

‘Brasil vive em estado de indignação permanente’

‘Brasil vive em estado de indignação permanente’, diz cientista político

Segundo o cientista político, descontentamento generalizado leva à solidariedade popular com movimento de um grupo específico. Ele considera que pré-candidatos deram ‘show de contradições’ e diz que empresas são ‘viciadas em subsídios’

Rennan Setti | O Globo

Para o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, o Brasil vive em “estado permanente e latente de indignação”, e é isso que explica a sustentação da greve dos caminhoneiros. Segundo o autor de “A Era do Imprevisto”, a organização horizontal dos manifestantes, que ocorre via WhatsApp, é sintoma da falta de representatividade do sistema político e dificulta as negociações com o governo.

• O que explica essa greve?

De um lado, há uma motivação econômica. Saímos de um período de congelamento de preços para um de aumento diário, influenciado pelo câmbio e pela geopolítica. Isso elevou o custo do frete em um momento de crise. Além disso, o sistema de transportes brasileiro é de extrema exploração, com uma parcela grande de autônomos expostos a um leilão brutal e tendo que aceitar um frete quase de subsistência. Quando ele paga um pedágio alto, mesmo andando vazio, e vê o diesel disparar, existe uma indignação legítima. Do outro lado, há um sentimento difuso de inquietação e descontentamento.

• Mas esse movimento também não atende a interesses corporativos?

Das concessões do governo, o frete mínimo é a única que atende aos autônomos. O resto é resultado do lobby das empresas. A empresa brasileira é viciada em subsídio. Eu não pesquisei o suficiente para saber em qual desses núcleos o movimento nasceu, mas sei o suficiente para saber que, sozinhos, os autônomos não conseguiriam fazê-lo durar tanto tempo.

• Por que o governo encontra tanta dificuldade para desmobilizar a greve, mesmo com tantas concessões?

As lideranças verticais estão perdendo a capacidade de controlar movimentos que nascem de forma mais difusa e espontânea. Uma parcela grande deles não é representada por associações, criadas para representar profissionais formais. Agora, o “biscateiro” da carga, que estava desempregado e viu nas facilidade dadas pela Dilma a possibilidade de trabalhar, não é alcançado pelas lideranças. É muito mais fácil para ele se comunicar em rede, por meio do WhatsApp, com outros grevistas do que ligar a televisão e reconhecer o representante que diz negociar em nome dele. O verdadeiro autônomo hoje não faz parte da malha do sistema, mas é alcançável pela rede. É um fenômeno da transição. Em todas as categorias, quando houver esse tipo de problema, o governo não conseguirá lidar com os instrumentos tradicionais.

• Então a organização virtual, em rede, foi fundamental para o surgimento dessa greve?

É um instrumento e será cada vez mais. Diante de um sistema político que não dá voz à sociedade, que só representa a si mesmo, a indignação da população se valerá cada vez mais desses canais. A culpa é do sistema político.

• Do ponto de vista do sistema político, há uma razão estrutural para esta crise?

Em meu próximo livro, “Presidencialismo de coalizão” (que sai em agosto pela Companhia das Letras), trato da questão de fundo, que é a péssima qualidade das políticas de base no Brasil, por conta de uma visão de curto prazo e do “toma lá, dá cá” com o Congresso. Isso produziu políticas de muito má qualidade. Além disso, temos uma concentração absurda no governo federal. Essas questões se refletem em nossa estrutura tributária e fiscal absurdas. O sistema tributário é um Frankenstein. Tudo isso é um incentivo brutal ao clientelismo e impede os estados de buscarem suas próprias iniciativas.

• O que explica o apoio de parcela importante da população ao movimento?

O Brasil apresenta nível quase unânime de indignação e insatisfação, com a política e com o governo. Cada vez que um segmento específico é mais apertado e se revolta, esse descontentamento explode na rede e ganha respaldo dos indignados em geral. O governo, desde a Dilma (Rousseff ), prometeu coisa demais e não cumpriu. (O presidente Michel) Temer chegou prometendo o paraíso. Embora a inflação tenha caído, a melhora econômica não veio. Tem-se, então, uma sociedade em estado permanente e latente de indignação, o que gera uma reação espontânea de solidariedade com o outro. Mas isso é efêmero. Conforme o desabastecimento afeta o conforto, esse elas começam a enxergar um exagero e mudar de argumentação.

• Qual será o impacto da greve nas eleições?

Será como o das manifestações de 2013. Só não sabemos para que lado mudará o quadro eleitoral. Mas está claro que o Brasil tem uma agenda que não dá para resolver. Nenhum dos pré-candidatos demonstrou ter noção da gravidade do problema. Não sei o que esperar das eleições diante de respostas tão esvaziadas. Foi um show de “vaselina” e contradições. Quando você é candidato a presidente, você tem obrigação de vir a público, expor as causas do problema e como enfrentá-lo. Aliás, é a hora de mostrar sua capacidade de articulação e participar da intermediação com os manifestantes, como fez o (Emmanuel) Macron, durante a campanha eleitoral na França, nos protestos na fábrica da Whirlpool.

Nó do setor portuário está bem longe de ser desatado



Editorial | Valor Econômico
No intervalo de apenas uma semana, o Tribunal de Contas da União determinou o despejo de duas importantes empresas que operam terminais no porto de Santos, o mais importante da América Latina. Se a medida do TCU foi vista como truculenta por alguns e saneadora por outros, o único consenso possível é o de que o setor portuário parece incapaz de se desvencilhar do nó em que está metido há décadas.

Com o alegado objetivo de modernizar a legislação portuária, de corrigir distorções e de promover investimentos de bilhões de reais, o governo aprovou em maio do ano passado o Decreto 9.048/17. Exatamente uma semana depois da assinatura veio a público o acordo de delação premiada do empresário Joesley Batista, que fez o decreto trocar as páginas de economia pelas policiais.

Diante da grande repercussão do caso, que envolve o presidente da República, o governo percebeu que o decreto não vai prosperar e ensaia jogar a toalha. Reportagem do Valor mostrou que os aliados de Michel Temer já admitem abrir mão dos principais benefícios do decreto para impedir que um carimbo de "ilegal" complique ainda mais a situação do presidente no inquérito do qual é alvo.

Infelizmente, a contaminação política impediu que as medidas propostas fossem debatidas em bases puramente técnicas. O alto escalão do TCU não quer se vincular à eventual aprovação de um decreto envolto em tantas suspeitas de corrupção. A cautela é até compreensível, já que um dos principais personagens da delação de Joesley, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures - o "homem da mala" - participou ativamente das discussões para a elaboração do decreto.

Ainda não há provas, entretanto, de que o texto beneficiou A ou B mediante propina. Vários técnicos que participaram da construção do decreto garantem que os benefícios valem para todo o setor. Quase 100 empresas pediram para se adequar ao decreto e prometeram colocar R$ 14 bilhões em melhorias nos terminais portuários.

Muitas delas, vale registrar, adotam há décadas todas as táticas possíveis para impedir que o desenvolvimento dos portos brasileiros se dê em um ambiente de competição saudável. Desde que as licitações no setor passaram a ser obrigatórias, em 1993, não são poucas as operadoras que apelam à Justiça para permanecerem com seus terminais sem serem incomodadas.

Ao mesmo tempo, o governo demonstra grandes dificuldades para promover as licitações - e isso não se restringe ao setor portuário. Os próprios técnicos do Ministério dos Transportes reconhecem a incompetência do poder público para fazer com que os processos avancem de acordo com um cronograma e regras estabelecidos e que os ativos sejam oferecidos de forma a atrair o real interesse do setor privado.

Quando aprovou a Nova Lei dos Portos, em 2013, o governo decidiu concentrar em Brasília todas as licitações de terminais. O objetivo era fazer uma faxina nas companhias Docas, onde as ilegalidades florescem com impressionante facilidade. A concentração dos certames, contudo, se deparou com a falta de estrutura suficiente e quase nada saiu do papel. Portos que eram geridos pelos governos estaduais perderam empreendimentos que estavam prestes a sair e que cinco anos depois continuam parados.

O próprio Tribunal de Contas tem sua parcela de responsabilidade. A última leva de concessões do setor portuário, lançada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, ficou quase dois anos no TCU, pulando de gabinete em gabinete devido a pedidos de vistas tão longos quanto inexplicáveis. Com os recentes despejos do Grupo Libra e da Rodrimar, o órgão tenta demonstrar que está comprometido com a regularização do setor.

Se confirmada, a falência do polêmico Decreto dos Portos deve resultar em uma nova onda de judicializações em um setor já acostumado a esse expediente. Que sirva, ao menos, para fomentar o debate em torno da construção de um ambiente competitivo e juridicamente estável. Para ser produtivo, esse debate deve contemplar, com pesos equivalentes, as obrigações das empresas e também os benefícios dos investimentos que elas oferecem. Não é preciso dizer que o Brasil não está em condições de desperdiçar R$ 14 bilhões de investimentos em infraestrutura. Também redundante presumir que, sob o atual governo, nada mais acontecerá.

Militares candidatos


Trata-se de uma opção democrática e legalmente apoiada na Constituição de 1988
         
*RÔMULO BINI PEREIRA, O Estado de S.Paulo

19 Maio 2018  

Envolto em persistente crise política, econômica e social, sem precedentes, o Brasil terá em outubro mais uma eleição geral, com inúmeros pré-candidatos de diversas posturas políticas e ideológicas. Nestes 30 anos da Nova República, eis que surge no cenário eleitoral, pela primeira vez, um candidato à Presidência oriundo do meio militar, que, de modo surpreendente, atinge e mantém índices significativos nas pesquisas eleitorais. Trata-se do deputado federal Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército Brasileiro. Para os opositores dessa candidatura, o resultado das pesquisas é um fato que deve ser combatido com críticas de toda ordem, por representar, segundo eles, um verdadeiro perigo de retorno ao regime militar.

Tornou-se corriqueiro nos últimos anos culpar o regime militar como sendo o grande responsável pelas constantes crises e pelos desacertos políticos e sociais. Criou-se uma imagem de escuridão e malignidade em tudo o que se referia ao regime, com uma incidência ideológica das esquerdas brasileiras em artigos a esse respeito, como ainda agora, denegrindo presidentes militares com base em documento de agência estrangeira (CIA) relativo a fatos supostamente ocorridos há mais de 40 anos. O interessante é que tal agência sempre foi considerada o “grande satã” pelas esquerdas sul-americanas. Hoje esse “oportuno memorando” se tornou de alta e inquestionável credibilidade. Uma evolução surpreendente! 

Os fatos positivos do período, tais como a modernização do País e conquistas sociais de relevância, raramente são assinalados, muito menos as virtudes e os predicados morais que os governos militares apresentaram em suas gestões: a honestidade, a probidade, a responsabilidade no trato da coisa pública, a grandeza de pôr os interesses do País em primeiro plano e a inadmissibilidade de atos de corrupção em todos níveis governamentais.

Dentre as razões da aceitação de Bolsonaro por parte da população, sobressai a sua integridade pessoal, observada na longa vida parlamentar sem nenhuma mancha ligada a corrupção. De seus opositores, inúmeros estão envolvidos nessa corrupção desenfreada que se alastra pelo Brasil, e há até os que atuaram na luta armada fratricida. Estes, sob a capa de luta pela “democracia”, desejam solertemente a instalação de regimes bolivarianos. Aliados a esses opositores há artistas e intelectuais, bem como políticos receosos de perder as benesses que lhes proporciona o status quo da vida política atual.

Em data recente, cerca de 70 militares pré-candidatos a cargos eletivos em todo o País se reuniram em Brasília e adotaram como lema de suas campanhas: “Ética, Moral e Honestidade”. Possíveis atitudes radicais em nenhum momento foram postas em discussão e todos eles optaram por sua inclusão democrática no processo eletivo, que já começou.

O próprio comandante do Exército – por incontáveis vezes – já declarou a predominância dos princípios da Constituição nas soluções políticas de problemas nacionais. Em seus pronunciamentos não existe uma assertiva sequer de adoção de medidas manu militari ou o apoio a crescentes clamores intervencionistas.

Destarte, desejar relacionar candidaturas militares, principalmente a de Bolsonaro, a um possível retorno ao regime militar é, ao mesmo tempo, uma falácia e uma leviandade. Um verdadeiro fantasma criado sub-repticiamente.

Por oportuno, cito o recente artigo publicado nesta página do Estado, edição de 5 maio, intitulado Volta à ditadura pelo voto, de autoria do jurista dr. Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, quando expressa a sua opinião a respeito da candidatura de Bolsonaro. O articulista assegura que ela representaria um retorno dos militares ao poder. Com a devida vênia, discordo dessa afirmativa. Nos preâmbulos deste artigo apresento as minhas razões de discordância daqueles que consideram a candidatura de Bolsonaro um perigo para o regime democrático e, complementando, digo que ela representa, além de outros motivos, um protesto do povo contra os governos incompetentes e corruptos das três últimas décadas.

Como ex-ministro da Justiça, o dr. Reale sabe muito bem o que os militares têm representado para a solução de problemas de toda ordem, nos quais a ação governamental se mostra incapaz. No presente, cumprem duas missões relevantes: uma, humanitária, em Roraima, no acolhimento dos refugiados oriundos da bolivariana Venezuela, e outra na intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, no setor de Segurança. Na Nova República o grande objetivo foi servir ao País, o que lhes tem dado uma credibilidade ímpar perante a opinião pública.

Ainda em seu artigo, o dr. Reale – como a profetizar um terror futuro e alertar os que ele denominou “ignorantes” do que foi o regime militar –, ressalta a sua participação na presidência da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Sem dúvida, uma ação de alto grau humanitário, mas que deu origem à polêmica Comissão da Verdade por sua forma unilateral de interpretar fatos históricos. Foi uma comissão de verdade única e ideologicamente comprometida, que proporcionou milhares de beneficiários de pensões vitalícias e polpudos proveitos a bancas advocatícias. A ideologia esquerdista, com isso, foi para as calendas.

Correndo o risco de ser ousado, talvez seja mais válido voltar sua inteligência e seu notório saber jurídico, como no impeachment de Dilma Rousseff, para o nosso débil sistema democrático, no qual os três Poderes da República estão desacreditados pela população brasileira. Este, sim, um fato real.

Por fim, espero que o eminente jurista compreenda e aceite as candidaturas de militares, incluída a de Jair Bolsonaro, como uma opção democrática e legalmente apoiada na Constituição de 1988.

*GENERAL DE EXÉRCITO R/1, FOI CHEFE DO ESTADO-MAIOR DO MINISTÉRIO DA DEFESA

E o que mais preocupa é que, a poucos meses de uma eleição importantíssima, pessoas “esclarecidas” deliberadamente abriram mão do bom senso para ficar “bem na foto” ou, pior, demonstraram o mais irrefragável desconhecimento de questões cruciais para as quais irão escolher alguém, tão despreparado quanto, para se corrigir problemas que o próprio eleitor não faz a menor noção do que seja, tampouco a solução que ele, pelo voto, espera que ocorra.

William Waack

Flerte com o abismo.
Estadão.com.br

Enorme quantidade de pessoas não entende que dinheiro público é o dinheiro delas

Como assim as pessoas apoiam um movimento, o dos caminhoneiros, mesmo sabendo que sofrerão severos transtornos e prejuízos diretos na vida pessoal e financeira? Em outras palavras, agindo contra os próprios interesses – e sabendo disso.

Supõe-se que alguma coisa mais esteja em jogo, além da irracionalidade em decisões (no comportamento de consumidores, por exemplo) há tanto tempo detectada por teorias econômicas de comportamento. Como eventual contribuição a uma explicação, avanço aqui duas possibilidades inteiramente subjetivas e derivadas da minha biografia pessoal como repórter.

Será que as pessoas percebem seus “interesses objetivos e racionais” como analistas percebem ou acham que deveriam perceber? No caso brasileiro dos últimos dias, é patente que não. Em primeiro lugar, salta aos olhos que uma enorme quantidade de pessoas não entenda que dinheiro público é o dinheiro delas, recolhido por meio de impostos e contribuições. Para elas, portanto, se tem alguém gastando mais do que arrecada, esse alguém é “o governo”, essa distante e incompreensível entidade que manda nas nossas vidas sem que a gente entenda muito bem como.


Em segundo lugar, o governo é ocupado por “eles”, políticos e seus nomeados, uma espécie de casta. “Eles” são interessados apenas nos próprios negócios, na própria corrupção e, agora que “nossa” paciência se esgotou e nossa indignação explodiu, precisam ser varridos como lixo. É evidente que “nós” não nos sentimos representados por “eles” – e quando confrontada com o fato de que “eles” estão lá pois foram votados para estarem lá, imensa quantidade de pessoas não gosta do que enxerga no espelho.

Muita gente acha que a revolta que acompanhou as manifestações de caminhoneiros (acompanhadas, em alguns casos, de comportamento criminoso) é uma espécie de mal necessário para que dessa situação crítica renasça um novo País, não importam os danos imediatos causados à economia. É óbvio, na minha percepção, que essa conduta reflete muito mais uma imensa frustração do que um claro sentido de ação, mesmo os caminhoneiros tendo arrancado o que pretendiam (baixar os próprios custos, empurrando a conta para outros).

Não são poucos os que enxergaram, por outro lado, que atender às reivindicações dos caminhoneiros só seria possível tornando ainda mais complicada a solução para contas públicas quebradas. Mas – e aqui deveríamos escrever MAS, em maiúsculas –, foi irresistível para parcela expressiva da população a identificação proporcionada pelo símbolo do trabalhador sacrificado (o caminhoneiro) que levanta o dedo médio em riste contra “eles”, enquanto entrega a Deus o comando na boleia.

Acho perda de tempo decifrar neste momento qual o “recado” que essa revolta está transmitindo para a política – na verdade, a mensagem principal é o ódio e o desprezo em relação à própria política, entendida como um jogo sujo no qual só “eles” ganham, com seu sistema de benefícios próprios, desperdícios, corrupção e a inexplicável administração de preços que leva o combustível que “nós” produzimos a custar bem menos na Bolívia.


Temo ter de dizer que esse flerte com o abismo, registrado nos últimos dias, seja a expressão da desintegração (que não me parece meramente passageira) da capacidade do Estado de impor diretrizes e autoridade. Mas também desse nebuloso estado de espírito segundo o qual a fúria e a frustração que existem na população criam a necessidade de mudança por meio do fracasso social.

Corporações na política


Tão importante quanto a eleição do próximo presidente da República é a escolha dos parlamentares que renovarão a Câmara dos Deputados e o Senado
       
O Estado de S.Paulo

27 Maio 2018 

Tão importante quanto a eleição do próximo presidente da República é a escolha dos parlamentares que renovarão a Câmara dos Deputados e o Senado. Não são pequenos os desafios que se impõem à próxima legislatura e os eleitores devem prestar muita atenção ao histórico e à agenda que os candidatos a cargos no Poder Legislativo pretendem levar para o Congresso Nacional.

Causa estranheza o recente lançamento da “Frente da PF”, movimento que pretende lançar 29 candidaturas ligadas à Polícia Federal (PF) para disputar as eleições legislativas de 2018, tanto no plano federal como no estadual. Atribui-se a iniciativa a um apelo positivo que a Operação Lava Jato exerceria sobre os eleitores.

O nome mais conhecido no rol de candidatos da “Frente da PF” é Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), escrivão da PF que foi eleito deputado federal na esteira do sucesso de seu pai, Jair Bolsonaro. Eduardo concorrerá à reeleição.

A priori, uma vez preenchidos os critérios de elegibilidade definidos pela Constituição e pela lei eleitoral, nada obsta que qualquer cidadão lance seu nome e suas ideias ao escrutínio da sociedade. Isso não impede, no entanto, que os cidadãos sejam alertados quanto aos riscos que certas candidaturas podem representar para o País. Candidaturas ligadas a corporações de Estado podem ser nocivas porque não será fácil dissociar os interesses das categorias que representam dos interesses da Nação. E nem sempre eles andam juntos. Não é à toa que, desde a “Polaca” de 1937, a organização política nacional repele a representação classista.

A sociedade brasileira foi de tal forma dividida ao longo dos pouco mais de 13 anos de lulopetismo que parte dela mal se vê, hoje, como “nação” na acepção clássica da palavra, ou seja, um conjunto de indivíduos que reconhecem um passado formador comum e comungam das mesmas aspirações em relação ao futuro. A próxima legislatura haverá de lidar com projetos que ajudem a reconstruir as pontes derrubadas pela cisão patrocinada pelo PT.

As contas públicas foram de tal forma desrespeitadas pela presidente cassada Dilma Rousseff que a recuperação fiscal do País irá demandar o esforço de, pelo menos, mais uma geração de brasileiros para voltar ao patamar anterior ao desastre de seu governo. A próxima legislatura terá sob sua responsabilidade projetos de suma importância para a reconstrução econômica do Brasil e para a criação de um ambiente seguro para investimentos, geração de empregos e de renda, retomando os tão sonhados crescimento econômico e desenvolvimento social.

Alguns desses projetos, embora absolutamente indispensáveis e inadiáveis, são bastante impopulares. É o caso da reforma da Previdência, da qual tanto o Executivo como o Legislativo não poderão se desvencilhar em 2019, sob pena de levar o País ao colapso.

Cabe questionar se essas tais “frentes” de representantes de corporações de Estado – há também as candidaturas de membros do Ministério Público (MP) – estarão empenhadas em legislar em prol das necessidades do País. Não custa lembrar que a mencionada reforma da Previdência sofreu forte resistência das corporações de servidores, já que, entre outros objetivos, ela se presta a acabar com muitos dos privilégios que criaram duas categorias diferentes de cidadãos brasileiros.

É evidente que a viabilidade de candidaturas políticas ligadas à PF ou ao MP está ligada ao anseio da sociedade em ver debelados, de uma vez por todas, os males da corrupção e da impunidade. Mas a pauta do combate à corrupção não deve se impor sobre outros tópicos da longa agenda de projetos nacionais com a qual o Congresso deve lidar. Mesmo porque tal combate é feito pelos órgãos de cumprimento da lei.

O Estado brasileiro não pode continuar refém dos interesses das corporações de servidores públicos. A sociedade tem no Congresso o locus para a defesa de seus interesses, acima de todos os outros. Lá devem prevalecer os interesses dos cidadãos que não fazem parte da estrutura do Estado.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

A face não tão bela do Big Data -

 CRISTINA M. A. PASTORE
GAZETA DO POVO - PR - 25/04

Microtargeting não nos parece tão malévolo quando a Netflix nos sugere o filme perfeito para o momento, certo?
Quem não exclamou algo parecido com “é um absurdo!” sobre o recente escândalo envolvendo Facebook e Cambridge Analytica? Parece inadmissível considerar que empresas estejam usando nossas informações compartilhadas em uma rede social para nos manipular, principalmente porque não os autorizamos a usar estes dados. Mas talvez esta revolta não nos dê a visão mais completa.

No caso específico da Cambridge Analytica, tudo começou com o psicólogo e cientista de dados Michael Kosinsky, interessado em como a personalidade poderia afetar decisões, comportamentos e preferências. Ele criou um aplicativo de Facebook que prometia mapear a personalidade das pessoas a partir de suas respostas, ao mesmo tempo em que coletava dados pessoais dos usuários. A autorização era solicitada com uma frase parecida com “permitir que o aplicativo acesse seus dados de perfil” – certamente o leitor se lembra de já ter visto isso em alguma ocasião. Munido de uma gigante base de dados, Kosinsky criou um algoritmo preditivo relacionando os elementos de personalidade com o comportamento dos usuários no Facebook e divulgou o estudo. Daí ao uso deste tipo de dados e algoritmos para persuadir eleitores, foi um pulo.

Mas o que a estratégia da Cambridge Analytica tem de tão inovadora? Se entendermos eleitores como consumidores, pouca coisa. Eles usam dados individuais para gerar mensagens convincentes dentro do objetivo que têm, que poderia ser vender sabão em pó da marca A, mas é convencer a votar no candidato B. Na eleição de Trump, por exemplo, se você fosse eleitor nos Estados Unidos, poderia ter recebido mensagens dizendo “não vote em ninguém”, “vote em Trump”, “Hillary não é confiável” ou diversas outras, conforme sua propensão a concordar com isso ou aquilo. A estratégia se chama microtargeting e é a evolução da mídia de massa: em vez de enviar a mesma mensagem a muitos consumidores, o uso de dados como filtros direcionadores permite a comunicação de maneira one-to-one, em que a empresa pode dizer exatamente o que o consumidor espera ouvir.

Nós queremos que empresas armazenem nossos dados e os utilizem para gerar experiências de compra personalizadas

Veja por outro lado: microtargeting não nos parece tão malévolo quando a Netflix nos sugere o filme perfeito para o momento, certo? Ou quando buscamos algo específico no Google e a resposta ideal aparece logo no primeiro link patrocinado. Aliás, isso é justamente o que queremos hoje enquanto consumidores: customização. Esperamos que ao acessar o aplicativo de transporte nossas preferências de destino estejam salvas, que ao chegar a uma nova cidade outro aplicativo nos sugira restaurantes de acordo com nossas preferências, e que ao fazermos compras on-line possamos, na sequência, receber ofertas de produtos que “combinem”. Nós queremos justamente que empresas armazenem nossos dados e os utilizem para gerar experiências de compra personalizadas. Qual, então, o problema ético com a Cambridge Analytica, se ela fez essencialmente o mesmo? Falta de transparência? Tratar eleitores como consumidores? Ambos?

A linha limítrofe é tênue. Transparência na coleta de dados é fundamental para que a conduta seja ética e o consumidor não se sinta desrespeitado, mas não vejo, sinceramente, este fator como o centro da discussão. A busca por prazer e felicidade se tornou algo tão intenso nos últimos anos, com objetivos tão imediatistas e de curto prazo, que o risco do compartilhamento de informações parece pequeno no instante da decisão. Tornar a coleta mais transparente não fará com que deixe de acontecer. Veja a configuração do seu celular: quantos aplicativos monitoram sua localização geográfica em tempo real, oferendo em troca rapidez e customização?

Ao lado da “irresponsabilidade” dos consumidores, a forma como os dados são adquiridos é outro dos elementos centrais. A Cambridge Analytica não coletou dados, não pediu autorização aos eleitores ou ofereceu algo em troca; ela simplesmente comprou a base de dados do Facebook, plataforma que vende diversão, e os usou para criar uma comunicação convincente. Isso não pode acontecer em um mercado pautado por respeito, e é preciso que encontremos meios legais de garantir que não se repita no futuro. Regulamentar o acesso aos dados é vital para que não desvirtuemos a essência do uso de Big Data.

Um último ponto: deveria haver um limite para a persuasão. A medida de quão longe uma empresa pode ir utilizando dados dos consumidores não está definida e não sabemos qual a distância entre oferecer um produto e direcionar um voto. Talvez a Cambridge Analytica tenha feito um favor à sociedade, ao iluminar um problema que precisa ser resolvido. É hora de desmistificar o uso de Big Data, aceitar que nossa realidade hoje está apoiada na coleta e armazenamento de dados e, juntos, construir diretrizes que regulamentem seus pormenores.

Temos de lembrar que o uso de Big Data tem seu lado positivo e ele é enorme. Na área de saúde, por exemplo, o compartilhamento de dados de pacientes gera pesquisas que auxiliam no avanço de tratamentos e na criação de condutas adequadas. No direito, há algumas iniciativas que utilizam Big Data para auxiliar advogados e juízes a tomar melhores decisões. Existem índices de violência sendo criados pelo compartilhamento de dados, aqui mesmo no Brasil, cujo objetivo é aumentar a segurança pública. Todos partem de dados individuais para, de alguma forma, influenciar positivamente a vida de outras pessoas. Usar dados para customizar ações não é um problema em si, mas pode se tornar um – e dos grandes – sem atitudes éticas.

Cristina M. A. Pastore é professora e pesquisadora de marketing e comportamento do consumidor na PUCPR, pesquisadora visitante de Neurociência do Consumo no Tech3Lab/HEC Montreal e consultora de gestão estratégica de marketing na Mefil.

O sistema de saúde universal no Canadá: um colossal fracasso estatal


O que ocorre quando você tem de esperar mais de 21 semanas para receber um tratamento?

Tom Kent era o principal burocrata e estrategista político do Canadá quando o Medical Care Act [decreto que estatizou e "universalizou" o acesso ao sistema de saúde canadense] foi aprovado em 1966. Ele descreveu abertamente o objetivo do governo:

O objetivo daquela política pública era clara e simplesmente garantir que as pessoas pudessem receber tratamentos médicos sempre que necessitassem, sem levar em conta quaisquer outras considerações ou empecilhos.

Já o Ministro da Saúde e do Bem-Estar Social, Allan J. MacEachen, foi ainda mais direto:

O governo do Canadá acredita que todos os canadenses têm o direito de obter serviços de saúde de alta qualidade de acordo com sua necessidade e independentemente de sua capacidade de pagar. Acreditamos que a única maneira prática e efetiva de se fazer isso é por meio de um esquema de atendimento universal, pré-pago, e bancado pelo governo.

À época, o governo federal se responsabilizava por bancar 50% dos gastos em saúde das províncias do país.

Já o Canada Health Act (Decreto de Saúde do Canadá), aprovado em 1984, estabeleceu cinco programas decisivos: administração pública, abrangência, universalidade, portabilidade e acessibilidade. Este ato, em efetivo, proibiu os pacientes de serem diretamente cobrados pelos serviços médicos fornecidos, o que levou, na prática, à socialização da medicina no país.

Ou seja, atualmente, no Canadá, o financiamento para a saúde advém dos impostos. Os hospitais são entidades privadas — ou seja, não são instituições públicas —, porém seus profissionais são pagos pelo governo e suas receitas também advêm do governo. Na prática, portanto, funcionam como estatais.

No Canadá, menos de 30% dos serviços de saúde são financiados particularmente. E quais são esses serviços? Odontologia, cirurgias cosméticas, medicações e serviços de optometria.

Após meio século do surgimento desta política, o governo ainda não honrou seu compromisso. Apesar do contínuo aumento dos gastos estatais com saúde, o desempenho dos serviços médicos no país cai a cada ano. O que é pior: o governo tornou ilegal — ou seja, é crime — aos cidadãos pagar a agentes privados para receber serviços de saúde que o governo fracassou em fornecer.

Esperando por um atendimento - até morrer

De acordo com uma pesquisa do canadense Instituto Fraser, o tempo médio de espera para pacientes canadenses que necessitam de tratamentos médicos — desde a consulta a um clínico geral, o qual indica um especialista, até a data efetiva do tratamento — foi de 21,2 semanas em 2017.

Ou seja, quase cinco meses de espera.

Esse tempo de espera observado em 2017 foi 128% maior que o observado em 1993, quando era de "apenas" 9,3 semanas.

Se um canadense sofrer queimaduras de terceiro grau em um acidente automobilístico e precisar de uma cirurgia plástica reconstrutora, o tempo médio de espera pelo tratamento será de 20 semanas. O tempo de espera para uma cirurgia ortopédica no Canadá também é de quase cinco meses. Para uma neurocirurgia é necessário esperar três meses completos. E leva-se mais de um mês para uma cirurgia cardiovascular. 

Pense nisso: se o seu médico descobrir que suas artérias estão entupidas, você terá de esperar na fila por mais de um mês, com a possibilidade iminente de uma morte por ataque cardíaco. Não é à toa que tantos canadenses vão para os EUA em busca de tratamento médico.

Quem é da área médica sabe muito bem que o tempo de espera para tratamentos médicos necessários não é apenas uma inconveniência benigna. Tempos de espera podem ter, e têm, severas consequências, dentre elas aumento das dores excruciantes, do sofrimento e da angústia mental. Em alguns casos, podem também gerar resultados médicos piores do que seriam caso o tratamento fosse realizado a tempo — transformando lesões ou doenças potencialmente reversíveis em situações médicas crônicas e irreversíveis, podendo até mesmo causar invalidez permanente.

Ou até mesmo a morte.

Um estudo de 2014 do Fraser Institute declarou:

Ministros da Suprema Corte do Canadá afirmaram que os pacientes do país estão morrendo em decorrência das listas de espera utilizados para os serviços de saúde universalmente acessíveis.

É estimado que entre 25.456 e 63.090 (com um valor médio de 44.273) mulheres canadenses morreram em decorrência do aumento do tempo médio de espera entre 1993 e 2009.

Pegando-se o dado mais conservador, pode-se dizer com certeza que aproximadamente 1.500 mulheres morreram anualmente, entre 1993 e 2009, como resultado do aumento do tempo de espera no Canadá.

O jornal The Toronto Star publicou uma carta endereçada ao Cancer Care Ontario (CCO - Tratamento do Câncer de Ontário), uma agência estatal responsável pelo financiamento. A carta foi assinada por cinco cirurgiões especialistas em transplante, claramente frustrados com a escassez de financiamento estatal (o sublinhado é meu):

Eis o efeito líquido das crescentes listas de espera: pacientes tendo recidivas e morrendo enquanto esperam por um transplante; pacientes fazendo sessões extras de terapia para tentar sobreviver até que se consiga marcar uma data para o transplante; fadiga, exaustão e depressão das equipes médicas, neste que é um problema nacional. [...]

Estimativas anteriores do CCO quanto às instalações e às equipes médicas necessárias para transplantes não levaram em consideração todos os fatores operacionais, o que resultou em instalações deficientes, com baixa capacidade e aquém da demanda, o que aparentemente surpreendeu a todos do governo, exceto a nós médicos, que já havíamos antecipado esse problema, pois o vivenciamos nos centros de transplante há vários anos. [...]

Os programas de transplante requerem recursos que permitam um aumento da capacidade instalada em pelo menos 35%, sendo o ideal talvez 50%, apenas para reduzir as listas de espera e assim haver tempos de espera mais saudavelmente apropriados para uma pessoa que necessita de um transplante.

Nada de novo

A realidade é que a situação canadense não só é antiga, como também é muito bem documentada. Infelizmente, de uns tempos para cá, com a intensificação do debate sobre o ObamaCare nos EUA, a mídia adotou uma ideologia pró-medicina socializada, o que dificultou a divulgação de informações sobre a falência da medicina estatal canadense.

No entanto, se regredirmos alguns anos, as informações se tornam bem mais abundantes.  Um artigo no The New York Times de 16 de janeiro de 2000, intitulado Full Hospitals Make Canadians Wait and Look South [Hospitais Lotados Fazem os Canadenses Esperar e Olhar Para o Sul], fornece alguns bons exemplos de como o controle de preços no Canadá criou sérios problemas de escassez.

Uma senhora de 58 anos esperava por uma cirurgia cardiovascular no saguão de um hospital de Montreal junto a outros 66 pacientes. As portas elétricas abriam e fechavam durante toda a noite, permitindo a entrada de correntes de ar com temperaturas em torno de -18°C. Ela estava em uma lista de espera de cinco anos para sua cirurgia.
Em Toronto, em um único dia, 23 dos 25 hospitais da cidade deixaram suas ambulâncias paradas por causa de uma escassez de médicos.
Em Vancouver, ambulâncias permaneciam abandonadas por horas enquanto vítimas de ataques cardíacos aguardavam dentro delas, à espera de serem adequadamente atendidas.
Pelo menos 1.000 médicos canadenses e dezenas de milhares de enfermeiras canadenses migraram para os EUA em busca de maiores salários e melhores condições de trabalho.
Concluiu o jornalista: "Poucos canadenses recomendariam seu sistema como modelo de exportação".

E isso em 2000. De lá para cá, tudo piorou.

Per capita, os EUA têm oito vezes mais máquinas de ressonância magnética, sete vezes mais unidades de radioterapia para tratamentos de câncer, seis vezes mais unidades de litotripsia, e três vezes mais unidades de cirurgia cardiovascular. 

Existem mais scanners de ressonância magnética no estado de Washington, cuja população é de cinco milhões de pessoas, do que em todo o Canadá, cuja população é de mais de 30 milhões de indivíduos (Veja John Goodman e Gerald Musgrave, Patient Power).

Indiferença política e burocrática

Políticos e burocratas, obviamente, não mostram nenhuma preocupação em relação às dezenas de milhares de vítimas de seu falido sistema universal de saúde. O caso da jovem Laura Hillier, de apenas 18 anos de idade, e que se tornou uma mera estatística para o governo, é um exemplo clássico.

Laura estava sofrendo de leucemia mieloide aguda, e necessitava desesperadoramente de um transplante de células-tronco. Vários doadores compatíveis estavam disponíveis, mas não havia nenhum leito hospitalar disponível. O jornal The Toronto Star noticia:

Em julho de 2015, Frances (mãe de Laura) enviou cartas para Kathleen Wynne [primeira-ministra da província de Ontário] e para Eric Hoskins (Ministro da Saúde da província de Ontário) em nome de Laura e de todos os outros pacientes submetidos às "cruéis, desumanas, e potencialmente letais" listas de espera para transplantes. Nem Wynne nem Hoskins responderam, diz Frances.

Em julho de 2015, a Ministra da Saúde federal Rona Ambrose também se recusou a comentar sobre o assunto quando questionada pela rede CTV News.

O silêncio de Ambrose, Wynne e Hoskins é, de certa forma, compreensível, pois não há como argumentar em prol da eficácia da saúde estatal. Ademais, em alguns casos, uma resposta é pior do que o silêncio. Em uma declaração à CTV News, Shae Greenfield, porta-voz do Ministro Eric Hoskins, disse:

É nossa expectativa que os hospitais priorizem pacientes com urgência médica. No entanto, essas decisões são tomadas por cada hospital, individualmente.

Essa declaração insensível foi, obviamente, uma tentativa de abdicar de suas responsabilidades e transferir a culpa para terceiros. No entanto, a questão não é de "prioridade", mas sim de falta de recursos. Há vários pacientes que são prioridade porque suas necessidades são urgentes do ponto de vista médico; no entanto, todos estão presos em uma lista de espera.

A culpa das listas de espera e da baixa capacidade operacional não está nos hospitais, mas sim no governo: sendo a medicina estatal e sendo o governo o único financiador, é fato que ele não forneceu aos hospitais o financiamento necessário para, como havia prometido Tom Kent, "garantir que as pessoas pudessem receber tratamentos médicos sempre que necessitassem, sem levar em conta quaisquer outras considerações ou empecilhos."

Forçada pelo governo a esperar, a situação de Laura se deteriorou e ela morreu seis meses depois, no dia 20 de janeiro de 2016, ainda esperando por um leito.

Cirurgias de transplante de células-tronco, outras cirurgias de câncer, cirurgias de catarata, cirurgias de joelho e quadril, cirurgias bariátricas, cirurgias cardíacas — há uma lista de espera e um atraso de vários meses para todas essas cirurgias. Com isso, a saúde e o bem-estar de vários canadenses vai se deteriorando — e muitos vão morrendo — enquanto o governo os obriga a esperar meses para receber um serviço que o próprio havia prometido entregar rapidamente.

O fracasso estatal era previsível

Os gastos do governo com os serviços de saúde estão subindo continuamente, mas isso não tem como durar:

Após anos aumentando os gastos com saúde a um ritmo insustentável, tudo indica que os governos provinciais começaram a chegar ao seu limite nos últimos 5 anos: a continuação desta política levará ou a uma redução em outros gastos, ou a mais impostos, ou a mais déficits e maior endividamento. Ou uma combinação dos três.

Sobre o sistema de saúde universal no Canadá, sua insustentabilidade foi prevista ainda em 1970 pelos próprios responsáveis por sua implantação. Na página 288 do seu livro, o canadense William Gairdner mostra que:

Em 1970, a Comissão de Saúde de Ontário profeticamente alertou que "a sociedade nunca considerará como suficiente a quantidade de bens e serviços de saúde que poderão ser ofertados pelo estado, mesmo que todos os recursos da sociedade sejam direcionados para a provisão de cuidados médicos".

Previsão bastante acurada. Não importa quanto seja aumentada a quantidade de dinheiro jogada no sistema de saúde estatal; no final, a administração burocratizada e sem concorrência irá simplesmente desperdiçar este dinheiro.

E este é o grande problema dos sistemas de saúde estatizados: é impossível fazer uma administração racional dos recursos.

De um lado, dado que o dinheiro advém de impostos e não da qualidade dos serviços ofertados, não há um sistema de lucros e prejuízos a ser seguido. Logo, não há racionalidade na administração. Com efeito, nem sequer é possível saber o que deve ser melhorado, o que está escasso e o que está em excesso. Não há como inovar ou se tornar mais eficiente.

De outro, quando algo passa a ser ofertado "gratuitamente", a quantidade efetivamente demandada sempre será maior que a ofertada. E aí escassez e racionamento tornam-se uma inevitável rotina.

Ou seja, a oferta, além de ser limitada, é ineficiente e irracional, pois não segue um sistema de preços. Já a demanda tende ao "infinito", pois o custo é zero.

Tem-se, assim, a tempestade perfeita. Como os recursos para a saúde são limitados e gerenciados de maneira burocrática, mas a demanda é crescente e "gratuita", filas de espera para tratamentos, cirurgias, remédios e até mesmo consultas de rotina viram a norma. No extremo, pacientes são abertamente rejeitados, cirurgias são canceladas e pessoas são deixadas para morrer sem tratamento.

No caso do Canadá, trata-se de um fato inegável que, quanto mais recursos (impostos) foram direcionados para gastos em saúde, mais a provisão de serviços de saúde declinou, como mostram as crescentes listas de espera. Quanto mais o governo (supostamente) tenta ajudar, mais as coisas pioram.

Efeitos econômicos

Os gastos do governo com o sistema universal de saúde no Canadá, em 2016, foram de aproximadamente US$ 4.000 por capita. Mas há os custos não-vistos que recaem desproporcionalmente sobre os mais pobres.

Por exemplo, se considerarmos as horas de uma semana de trabalho normal, estima-se que o custo de 'espera' por paciente foi de aproximadamente US$ 1.759 em 2016. Quem sofre mais? É claro que os mais pobres: quando eles estão impossibilitados de trabalhar por estarem presos em uma lista de espera do governo para receber tratamento médico, não auferem renda.

Ou seja, embora o governo canadense tenha decretado a saúde estatal em nome da "ajuda aos mais pobres", o fato é que ele não só não cumpriu sua promessa, como ainda está tornado os pobres e doentes em doentes ainda mais pobres.

Conclusão

Em um sistema de saúde controlado pelo governo, é o estado quem determina quem pode receber tratamento, como e quando. Assim como em uma economia sob controle de preços, a oferta sempre irá se exaurir perante a demanda.

Os canadenses mais ricos recorrem à medicina americana. Os mais pobres morrem enquanto aguardam seu nome nas crescentes listas de espera.

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