Sérgio Amaral*
O Estado de S. Paulo
Alguns órgãos da mídia internacional aparentemente compraram a tese de Lula de que o processo de impeachment é um golpe das elites contra um governo que se voltou para os mais pobres. A frase é de efeito. Tem um encanto romântico ao evocar a figura do pai dos pobres, recorrente na História latino-americana do século 20. Mas a tese é falsa.
Como têm salientado vários juristas eminentes, entre os quais Sydney Sanches e Carlos Velloso, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, o impeachment é um processo jurídico-político. Lamentavelmente, Dilma falha nos dois quesitos.
O requerimento de impeachment à Câmara é de autoria de três ilustres juristas. Um deles, Hélio Bicudo, cidadão de reconhecida estatura moral e jurídica, foi membro fundador do PT, do qual se afastou ao perceber o crescente desvio do partido de seus compromissos originais. O arrazoado é bem fundamentado. Assenta-se num acórdão do Tribunal de Contas da União que registra operações de crédito do governo federal, sem autorização prévia do Congresso e sem contabilização no Tesouro Nacional com instituições financeiras controladas pela União. Tais operações caracterizam violações da Lei de Responsabilidade Fiscal e crime de responsabilidade, por improbidade administrativa, previsto na Constituição federal. Esse é o claro fundamento jurídico de um processo de impeachment, que está transcorrendo em pleno respeito à Constituição e às instituições democráticas.
Muitos dirão que um presidente da Republica não pode ser removido do cargo a que foi conduzido, democraticamente, por mais de 50 milhões de votos, por causa de despesas irregulares de alguns bilhões de reais. O ponto parece convincente. Mas o problema está em que as chamadas pedaladas fiscais são apenas a ponta visível e tipificável do iceberg de um verdadeiro descalabro fiscal. De um déficit orçamentário que cresce a cada ano e contribuiu para o aumento da dívida pública, que já ultrapassa 70% do PIB, e de uma recessão de mais de 7%, em dois anos.
Estamos entre os três países com índices mais elevados de recessão entre os pesquisados pelo Economist, ao lado da Venezuela, que está promovendo o desmanche de sua economia, e da Rússia, que sofre os efeitos de um bloqueio econômico.
A violação reiterada da Lei de Responsabilidade Fiscal é grave. É o claro sintoma da desorganização e da falta de perspectiva da economia. Diante da incerteza, a empresa não investe, o consumidor não compra o banco não empresta e o trabalhador não encontra emprego.
O problema, portanto, não é só jurídico. É econômico e político, diante da incapacidade do governo de adotar as medidas necessárias para recuperar a economia e a tranquilidade social. Se o impeachment fosse um julgamento apenas jurídico, o foro deveria ser o Supremo Tribunal Federal, e não o Parlamento. Mas como é também um julgamento político, o constituinte desenhou um cuidadoso itinerário de varias votações e elevado coeficiente de votos, tanto na Câmara quanto no Senado, para assegurar a convicção do deputado, do senador e da sociedade de que existem fortes razões para destituição de um presidente. Como bem diz Sydney Sanchez, que presidiu a sessão do impeachment do então presidente Collor, o senador não precisa fundamentar o seu voto em leis ou pareceres jurídicos. Basta dizer sim ou não.
Nas sondagens de opinião a aprovação de Dilma tem oscilado em torno de 10%, sua reprovação é superior a 70% e o apoio ao impeachment, perto de 70%. Sua desaprovação é elevada mesmo nas camadas de renda mais baixa, que constituem tradicional reduto eleitoral do PT. Não conta com uma aliança política para promover reformas ou executar um efetivo programa de restauração do equilíbrio fiscal. Obteve apenas 27% de apoio na Câmara dos Deputados na admissão do impeachment. Como pode governar nestas condições?
É verdade que nada consta contra Dilma quanto à prática de corrupção. O problema é que nos governos do PT a quantidade virou qualidade. A corrupção tornou-se sistêmica, na maioria das vezes em proveito do partido e de suas campanhas eleitorais, várias vezes com o conhecimento ou conivência de autoridades.
Não parece verdadeiro que as elites em geral sejam contra o PT. Ao contrário, a julgar pelas investigações e condenações da Operação Lava Jato, alguns segmentos empresariais estabeleceram com o PT um mutuamente proveitoso modus vivendi.
Tampouco é correto dizer que as elites são contra as políticas sociais. Elas estão contra a falta de política econômica. O Brasil está perto de um consenso sobre o imperativo e a urgência de um novo contrato social. Mas para fazer programas sociais não é preciso quebrar a economia.
A aparência dos fatos pode deixar a impressão de que o impeachment resulte de conluios pouco democráticos entre elites políticas e empresariais contra massas ludibriadas. É preciso analisar este momento complexo em mais profundidade e colocá-lo em perspectiva.
Como observou FHC em artigo recente, o Brasil viveu desde a redemocratização de 1984 importantes momentos de definição. Primeiro foi a Constituição de 88, que consolidou a cidadania e lançou as bases de um ambicioso projeto social, que inclui serviços universais e gratuitos de saúde e educação. Nos anos 90, a estabilização da moeda, por FHC, abriu espaço para a abertura e liberalização da economia. Ao início do século, o governo Lula pôs os programas sociais no topo da agenda. Hoje vivemos um novo ciclo, que é a ruptura, que se espera efetiva, da promiscuidade entre setores do Estado e do setor privado em detrimento da sociedade.
A despeito das aparências, o Brasil está construindo, à sua maneira, as instituições básicas de um Estado moderno e de uma sociedade mais justa. O impeachment é mais uma etapa desse processo.
*Sérgio Amaral é diplomata e foi secretário de Comunicação Social no governo FHC