quinta-feira, 5 de maio de 2016

O 'golpe' do impeachment

Sérgio Amaral*

O Estado de S. Paulo
 

Alguns órgãos da mídia internacional aparentemente compraram a tese de Lula de que o processo de impeachment é um golpe das elites contra um governo que se voltou para os mais pobres. A frase é de efeito. Tem um encanto romântico ao evocar a figura do pai dos pobres, recorrente na História latino-americana do século 20. Mas a tese é falsa.
 

Como têm salientado vários juristas eminentes, entre os quais Sydney Sanches e Carlos Velloso, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, o impeachment é um processo jurídico-político. Lamentavelmente, Dilma falha nos dois quesitos.
 

O requerimento de impeachment à Câmara é de autoria de três ilustres juristas. Um deles, Hélio Bicudo, cidadão de reconhecida estatura moral e jurídica, foi membro fundador do PT, do qual se afastou ao perceber o crescente desvio do partido de seus compromissos originais. O arrazoado é bem fundamentado. Assenta-se num acórdão do Tribunal de Contas da União que registra operações de crédito do governo federal, sem autorização prévia do Congresso e sem contabilização no Tesouro Nacional com instituições financeiras controladas pela União. Tais operações caracterizam violações da Lei de Responsabilidade Fiscal e crime de responsabilidade, por improbidade administrativa, previsto na Constituição federal. Esse é o claro fundamento jurídico de um processo de impeachment, que está transcorrendo em pleno respeito à Constituição e às instituições democráticas.
 

Muitos dirão que um presidente da Republica não pode ser removido do cargo a que foi conduzido, democraticamente, por mais de 50 milhões de votos, por causa de despesas irregulares de alguns bilhões de reais. O ponto parece convincente. Mas o problema está em que as chamadas pedaladas fiscais são apenas a ponta visível e tipificável do iceberg de um verdadeiro descalabro fiscal. De um déficit orçamentário que cresce a cada ano e contribuiu para o aumento da dívida pública, que já ultrapassa 70% do PIB, e de uma recessão de mais de 7%, em dois anos.
 

Estamos entre os três países com índices mais elevados de recessão entre os pesquisados pelo Economist, ao lado da Venezuela, que está promovendo o desmanche de sua economia, e da Rússia, que sofre os efeitos de um bloqueio econômico.
 

A violação reiterada da Lei de Responsabilidade Fiscal é grave. É o claro sintoma da desorganização e da falta de perspectiva da economia. Diante da incerteza, a empresa não investe, o consumidor não compra o banco não empresta e o trabalhador não encontra emprego.
 

O problema, portanto, não é só jurídico. É econômico e político, diante da incapacidade do governo de adotar as medidas necessárias para recuperar a economia e a tranquilidade social. Se o impeachment fosse um julgamento apenas jurídico, o foro deveria ser o Supremo Tribunal Federal, e não o Parlamento. Mas como é também um julgamento político, o constituinte desenhou um cuidadoso itinerário de varias votações e elevado coeficiente de votos, tanto na Câmara quanto no Senado, para assegurar a convicção do deputado, do senador e da sociedade de que existem fortes razões para destituição de um presidente. Como bem diz Sydney Sanchez, que presidiu a sessão do impeachment do então presidente Collor, o senador não precisa fundamentar o seu voto em leis ou pareceres jurídicos. Basta dizer sim ou não.
 

Nas sondagens de opinião a aprovação de Dilma tem oscilado em torno de 10%, sua reprovação é superior a 70% e o apoio ao impeachment, perto de 70%. Sua desaprovação é elevada mesmo nas camadas de renda mais baixa, que constituem tradicional reduto eleitoral do PT. Não conta com uma aliança política para promover reformas ou executar um efetivo programa de restauração do equilíbrio fiscal. Obteve apenas 27% de apoio na Câmara dos Deputados na admissão do impeachment. Como pode governar nestas condições?
 

É verdade que nada consta contra Dilma quanto à prática de corrupção. O problema é que nos governos do PT a quantidade virou qualidade. A corrupção tornou-se sistêmica, na maioria das vezes em proveito do partido e de suas campanhas eleitorais, várias vezes com o conhecimento ou conivência de autoridades.
 

Não parece verdadeiro que as elites em geral sejam contra o PT. Ao contrário, a julgar pelas investigações e condenações da Operação Lava Jato, alguns segmentos empresariais estabeleceram com o PT um mutuamente proveitoso modus vivendi.
 

Tampouco é correto dizer que as elites são contra as políticas sociais. Elas estão contra a falta de política econômica. O Brasil está perto de um consenso sobre o imperativo e a urgência de um novo contrato social. Mas para fazer programas sociais não é preciso quebrar a economia.
 

A aparência dos fatos pode deixar a impressão de que o impeachment resulte de conluios pouco democráticos entre elites políticas e empresariais contra massas ludibriadas. É preciso analisar este momento complexo em mais profundidade e colocá-lo em perspectiva.
 

Como observou FHC em artigo recente, o Brasil viveu desde a redemocratização de 1984 importantes momentos de definição. Primeiro foi a Constituição de 88, que consolidou a cidadania e lançou as bases de um ambicioso projeto social, que inclui serviços universais e gratuitos de saúde e educação. Nos anos 90, a estabilização da moeda, por FHC, abriu espaço para a abertura e liberalização da economia. Ao início do século, o governo Lula pôs os programas sociais no topo da agenda. Hoje vivemos um novo ciclo, que é a ruptura, que se espera efetiva, da promiscuidade entre setores do Estado e do setor privado em detrimento da sociedade.
 

A despeito das aparências, o Brasil está construindo, à sua maneira, as instituições básicas de um Estado moderno e de uma sociedade mais justa. O impeachment é mais uma etapa desse processo.
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*Sérgio Amaral é diplomata e foi secretário de Comunicação Social no governo FHC

Comércio exterior: complicações de sua inserção no Itamaraty

 Indústria age para evitar eliminação de ministério
 

Valor Econômico Por Daniel Rittner

 
As duas maiores entidades industriais do país - CNI e Fiesp - preferem manter discrição, mas estão fortemente incomodadas com a possibilidade de extinção do Ministério do Desenvolvimento, que teria suas atribuições na área de comércio exterior repassadas ao Itamaraty e outras funções transferidas para o Planejamento. Ninguém quer marcar uma posição de conflito com o vice-presidente Michel Temer, mas a articulação de empresários tem sido pesada para barrar a ideia.
 
"A impressão que passa é de pouca relevância da indústria", afirma o presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso, um dos que falam abertamente sobre o assunto. "Sou fã do José Serra, eu o acho um dos políticos mais preparados do país, mas essa estrutura incomoda", acrescenta Velloso, em referência ao senador tucano, convidado para assumir o Itamaraty turbinado.
 
O ex-embaixador do Brasil em Washington e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Rubens Barbosa, reforça essa percepção. Para ele, a estrutura de carreiras dos ministérios do Desenvolvimento e das Relações Exteriores é incompatível. Barbosa também aponta que a tendência de desindustrialização precisa ser revertida e isso requer uma pasta forte - não o contrário.
 
Nas conversas com aliados de Temer, empresários têm buscado demonstrar que o comércio exterior não envolve apenas negociações de acordos comerciais, mas áreas fora da "expertise" do Itamaraty: defesa comercial, financiamento às exportações, instrumentos tributários (como o regime de drawback). Enfatizam ainda o fato de a chancelaria, mais do que qualquer outro órgão governamental, ser suscetível a pressões políticas de outros países. A diplomacia caminha em uma linha tênue entre confronto e cooperação: precisa medir os prós e contras de qualquer contencioso com uma nação, por exemplo, que pode render votos na luta por uma reforma do conselho de segurança das Nações Unidas ou na eleição de um diretor de organização internacional.
 
A Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e o Inmetro, hoje vinculados ao Ministério do Desenvolvimento, têm algumas centenas de servidores com carreiras próprias. Como encaixá-los em estrutura subordinada ao Itamaraty ou ao Planejamento é algo que ninguém sabe responder.
 
"Comércio hoje é uma briga de matar ou morrer. Isso não combina com o Itamaraty", observa o executivo da Abimaq. Próximo ao PSDB, Rubens Barbosa sugere uma alternativa para resolver a questão: ter uma Câmara de Comércio Exterior (Camex) mais robusta, com assento no Palácio do Planalto, tendo à frente um nome forte - mais ou menos nos moldes definidos para o "grupo executivo" que o ex-ministro Moreira Franco deverá comandar na área de privatizações, concessões e parcerias público-privadas.
 
Nos Estados Unidos, por exemplo, as atribuições comerciais são divididas em duas estruturas diferentes: o USTR cuida das negociações de acordos e o Departamento de Comércio trata das demais questões - ambos têm status ministerial.
 
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A reconstrução como foco

Fernando Gabeira
 O Globo
 

Neste momento em que palavras se liquidificam e argumentos tornam-se cusparadas, até por dever de ofício sempre me pergunto o que é importante e como não perder o foco. O processo de impeachment segue seu rumo no Congresso, é hora de apressar o processo de reconstrução econômica, buscar atrair investimentos mais rapidamente, atenuar a crise no mercado de trabalho.
 

Os diagnósticos já conhecidos parecem convergir para um objetivo de retomada do crescimento com proteção dos mais vulneráveis. Uma das críticas ao Bolsa Família era a ausência de foco nos mais vulneráveis, precisamente para alcançar o melhor efeito com o dinheiro. A dispersão do modelo petista traz mais votos, mas tem menos eficácia. Vamos esperar a dança dos nomes e a chegada do momento em que possamos reagir, saindo logo desse pesadelo nacional. Uma capa de revista com cartaz “help” na estátua de Cristo expressa esse sentimento.
 

A energia de reconstrução talvez seja mais leve do que dos embates políticos do momento. Um segundo e importante front é a transparência sobre o que se passou no governo. Só a Lava-Jato colheu 65 delações premiadas. Num único fim de semana, três importantes depoimentos apareceram. Um deles, da publicitária Danielle Fonteles, revela como o esquema de propina sustentou a propaganda do PT e a folha dos blogueiros chapa-branca. Em outro, Mônica Moura, mulher de João Santana, revela que recebeu dinheiro por interferência do ex-ministro Guido Mantega. Finalmente, o dono da Engevix, José Gomes Sobrinho, revelou seu esquema de propinas pagas ao PT e ao PMDB, citando Renan e Temer. Todo esse conjunto de dados vai estar à disposição para que todos se interessem, leiam e saibam como operou o governo, como se venceram as eleições. Depois de tudo isso digerido, será mais fácil conversar. De vez em quando chegam críticas pesadas. No mesmo tom raivoso das ruas. Para alguns deles, sou velho e amargurado. Minhas ideias são medidas pelos anos e não pela sua consistência.
 

Bobagem. Quando todas as cartas estiverem na mesa, será mais fácil mostrar como se enganam os que veem em 2016 uma repetição de 1964. Talvez pressintam isso, mas são prisioneiros da tese de que Dilma sofreu um golpe e não um impeachment. O próprio Lula parece não compreender a diferença entre um golpe militar e um impeachment. Afirma que não entende pessoas perseguidas e exiladas pela ditadura apoiarem o impeachment. Como se estivéssemos apoiando censura, prisões, exílios e banimentos. A tese de que isto é uma repetição de 64 iguala o pensamento da esquerda ao de Jair Bolsonaro, que, no seu discurso, disse “vencemos em 64, vencemos de novo”, como se os tanques do General Mourão marchassem contra o Planalto.
 

O Brasil mudou, vivemos um momento diferente. A própria Guerra Fria, a atmosfera envolvente da época, foi embora com a queda do Muro de Berlim. No entanto, existe um dado na experiência pós-64 que ainda me intriga. Depois da derrota do populismo de esquerda, os jovens fizeram uma pesada crítica aos líderes, uma grande renovação, a partir do movimento estudantil que buscou um outro caminho, equivocado, mas um outro caminho. Hoje, os populistas levam o país para o buraco e ainda convencem seus seguidores que a derrota é fruto da maldade do adversário. Um dos artifícios é fragmentar a realidade, fixar-se numa era de bonança internacional, escamoteando uma longa gestão perdulária que acabou resultando nisto: retrocesso econômico, desemprego. Assisti no século passado ao fim do socialismo real. Agora assisto aos últimos suspiros do chamado socialismo do século XXI, com as mesmas filas para comprar produtos essenciais. Minha rápida incursão na Venezuela, já na fronteira, indicava o fracasso boliavariano. Ainda no lado brasileiro, em Pacaraima, via pessoas com imensos maços de notas em busca de reais ou dólares. Os caminhões de carne brasileiros voltavam cheios porque já não conseguiam pagá-los.
 

Aceitar a realidade não significa amargura. Talvez por isso tanta gente se refugie na ilusão e persiga tantos moinhos. Aceitar a realidade abre caminho para novas ideias, reinvenções. No século passado, foi possível abrir novos caminhos para uma esquerda limitada pela luta de classes. Ao cooptar as lutas emergentes e colocá-la sob sua asa financeira no Estado, a esquerda conseguiu levar algumas dessas lutas à caricatura. De todos os princípios que tentei preservar do desastre do século passado, ao lado da preocupação com o meio ambiente, os direitos humanos, a redução da desigualdade social, um deles é básico: a democracia como objetivo. Por mais que fale em democracia, o governo do PT a utilizou para seus próprios fins, esgrimiu seu nome sempre que isto era bom para ele.
 

Quando passar toda essa emoção, pode estar aí um bom roteiro para descobrir o ovo da serpente. Não adianta brigar ou cuspir, mas tentar entender a ruína do próprio projeto político. O governo vai dizer que caiu por suas qualidades. O marketing exige assim. Uma sociedade malvada rejeitou seus salvadores. É uma canção de ninar. Sofremos na terra, mas será nosso o reino dos céus. Perdemos mais uma batalha, mas será nossa a vitória final. Se conseguir interessá-los por esse paradoxo, talvez tenha valido a pena ouvir os seus insultos.
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Impeachment ou golpe de estado?

Cássio Casagrande*
 
A Presidente da República sofreu uma traição política sórdida. O aliado de ontem apunhalou-a pelas costas. Deputados que eram ministros 48 horas antes votaram pelo impeachment. O ex-líder do governo no Senado passou para a oposição como quem troca de roupa. Podemos dizer que seus coligados da véspera conspiraram e engendraram uma trapaça política. Ela sofreu um duro golpe. Mas de que golpe estamos falando? A presidente alega que isto é um “golpe de estado”. Ela está complemente errada. “Golpe de Estado” e “golpe Político” são coisas completamente diferentes. Confundir um pelo outro é grave porque distorce o próprio conceito do que é um regime democrático: se não sabemos o que é golpe de estado, então não sabemos o que é democracia constitucional.

Democracia é procedimento fundado no princípio da igualdade política. Ou seja, a democracia não tem “conteúdo” - ela não prescreve o que deve ser decidido, mas tão somente como deve ser decidido: sendo todos iguais, a decisão deve ser pela regra da maioria, observados certos limites, que são os direitos fundamentais, especialmente os da minoria. O regime democrático simplesmente estabelece as regras e os limites do jogo. Se o resultado deste jogo disputado dentro das regras for desagradável a uma parcela do eleitorado (até mesmo à maioria), nada pode ser feito. A democracia raramente é um espetáculo bonito, especialmente porque o pressuposto majoritário e a igualdade política contêm três patologias congênitas: a tirania da maioria, a demagogia, e o império do interesse em desfavor da virtude cívica, como profetizou antes de todos Tocqueville, que testemunhou o seu nascimento e quem melhor sobre ela escreveu.

O processo de impeachment é um mecanismo de responsabilidade e de limitação do poder que nasceu com as revoluções democráticas, no mesmo momento em que se conformou a noção de representação política pela maioria.

No absolutismo o rei não representava a maioria e não podia ser responsabilizado por seus atos (“the king can do no wrong”). Todas as constituições produzidas durante a Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que consagraram a representação pela maioria, estabeleceram mecanismos de responsabilidade política; assim também a Constituição americana de 1787 que instituiu o impeachment, de onde adaptamos o instituto para nosso sistema constitucional, desde a Constituição de 1891. Adaptação que foi mal feita, pois na tradição da Common Law não há uma lei infraconstitucional de impeachment, é a própria constituição que define os crimes de responsabilidade. Ao trazer o impeachment para nossa Civil Law, tratamos equivocadamente de codificá-lo no direito infraconstitucional e criamos uma infinidade de tipos penais abertos e mal delineados - razão de muitos dos malentendidos sobre a questão -, o que dá a ilusão de que o processo de crime de responsabilidade é semelhante, no aspecto processual, a uma ação penal comum.

Por isto assistimos a Câmara de Deputados aprovar sem muita convicção o processo de impeachment em uma base legal frágil; mas, sobretudo, assistimos atônitos a decisão sendo tomada por uma Câmara composta por uma escumalha de desqualificados e chefiada por um presidente descrito por seus pares como “gangster” e “psicopata”. Pensamos, num impulso, que estes deputados “não nos representam”. Sim, não representam a nós elite ilustrada, que somos uma parcela ínfima da população. Eles certamente representam, e muito bem, o seu eleitorado (é disso que Tocqueville está falando quando trata da demagogia). Induvidosamente, há problemas de representação em nosso sistema político, que distorcem a vontade do eleitorado. Isto não retira a legitimidade dos que estão lá até que as regras sejam mudadas. Ser democrata é reconhecer este fato. Regras só podem ser mudadas pelas regras sobre mudança de regras. Além disto, as distorções da vontade eleitoral também ocorrem na escolha do executivo, inclusive do atual. Ninguém ignora como são financiadas as campanhas presidenciais. Mas por enquanto também é a regra do jogo. Então, se há motivos para questionar a legitimidade do Congresso, também os haveria para questionar a do Executivo (presidente e vice, diga-se), aqui especialmente se demonstrada a ilegalidade do financiamento da campanha. Mas não é o caso, por ora: grande parcela dos deputados está sendo processada por corrupção; a chapa da presidente está sendo impugnada na Justiça Eleitoral, também por corrupção. Mas no impeachment nenhuma destas causas está em questão. Então vale a regra do jogo e os jogadores são legítimos até que a Justiça os exclua.

O impeachment, sendo instrumento de controle do regime democrático é, portanto, na essência, procedimento. Ele pressupõe sim o cometimento de um crime político, definido na lei. Porém quem faz a tipificação é a Câmara dos Deputados no juízo de admissibilidade e o Senado no julgamento definitivo. O “juiz da causa” é o Legislativo, não o Judiciário. Portanto, o juízo do “mérito” da causa é jurídico, mas é predominantemente político porque o julgador, neste caso, não tem a obrigação de fundamentar sua decisão (que é o que distingue o impeachment de um processo estritamente jurídico, já que neste o juiz tem o dever de fundamentá-la). Como em um tribunal do júri, os membros do Congresso Nacional votam “sim” ou “não” a um libelo (relatório da comissão especial). Podemos alegar que um júri condenou um inocente, por um erro na apreciação da culpabilidade do réu. Ainda que a decisão transite em julgado, não podemos questionar a legitimidade do júri. Nesta hipótese, a decisão foi errada e injusta, mas ocorreu dentro do procedimento previsto. Pode ser chocante, mas é exatamente esse o espírito “democrático” do júri. A democracia, goste-se ou não, não tem como propósito produzir resultados ideais, “justos”. Ela garante o governo da maioria e a maioria pode ser injusta, ainda que dentro da lei. Ela não garante que os melhores e mais virtuosos serão eleitos. Ela também não assegura que os eleitos, ainda que puros, não possam ser destituídos do poder de acordo com regras preestabelecidas, mesmo que isto seja uma “injustiça”. E é por isto que o Judiciário não pode reexaminar o mérito do julgamento do Senado, mesmo que o enquadramento legal aos tipos do crime tenha sido malfeito e o resultado injusto. Esta questão já foi muito bem definida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Nixon v. United States, de 1993 (506 U.S. 224; não se trata do caso do Presidente Richard Nixon, mas do juiz federal Walter Nixon, que questionou no judiciário o seu julgamento por impeachment perante o Senado).
No caso brasileiro, inclusive, o Judiciário legitima o processo quando o presidente do STF comanda o julgamento no Senado (Constituição, art. 52, parágrafo único).

O impeachment, sendo essencialmente procedimento, se conduzido dentro das regras constitucionais (e o foi, com o beneplácito do Supremo), não pode ser considerado golpe de estado, por inconsistentes que sejam as acusações. A expressão golpe de estado nasceu na França (coup d’État) e se popularizou para descrever a ascensão de Napoleão no 18 de Brumário. Como neste evento arquetípico, ela significa tomada de poder pela força, com ruptura das regras constitucionais. O Brasil viveu quatro golpes de Estado: 1889, 1930, 1937 e 1964. Em todos eles houve ruptura da ordem constitucional e medidas de exceção foram impostas, com cerceio a liberdades públicas. Nada disto está acontecendo agora, a Constituição está intacta. Nada disto aconteceu em 1992. Não se deve esquecer que Collor foi absolvido pelo STF quanto ao fato que deu substância “jurídica” ao seu processo de impeachment. Isto não transformou sua deposição em golpe de estado. Ninguém nunca alegou esta tese, além do próprio Collor. A Presidente poderá ser absolvida futuramente na Justiça quanto à sua eventual responsabilidade civil ou penal nas pedaladas fiscais. Isto também não transformará o impeachment em golpe de estado. Poder-se- á dizer que o julgamento político da Presidente foi injusto, como talvez o foi o de Collor. Nada mais do que isso.

A presidente não deveria, por estas razões, alegar que está sendo vítima de um golpe de estado. A alegação em si desqualifica nossa democracia, que é de fato imatura, mas não é frágil, pois já se sustenta há quase trinta anos.
Ela pode sim alegar que o resultado da votação do impeachment decorreu de uma trapaça política; de uma traição vil de conspiradores desonestos. Mas a democracia, como procedimento, não tem como objetivo, nem poderia ter, evitar a traição e a conspiração. Traição e conspiração entre aliados estão no campo da política “burguesa”, mas dentro das regras democráticas, como Marx observou no ”18 de Brumário de Luís Bonaparte”. Em qualquer país democrático políticos são traídos por aliados e podem perder o poder por isto, seja no parlamentarismo ou no presidencialismo. Aliás, na democracia, políticos podem trair até mesmo o próprio eleitorado. No nosso caso, tudo isto está acontecendo com incrível desfaçatez. É bastante desagradável, como a democracia por vezes o é. Mas o máximo que podemos fazer é tampar o nariz. Ou mudar as regras do jogo.
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*Doutor em Ciência Política. Professor de Teoria da Constituição da Graduação e do Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense - UFF.

A falácia dos gastos sociais

A falácia da defesa dos gastos sociais pelo PT
EDITORIAL O GLOBO
 
A irresponsabilidade fiscal, assumida em nome do combate à pobreza, termina levando o próprio governo a fazer o que não gostaria: a reduzir estas mesmas despesas
 
Acuada no Palácio do Planalto enquanto avança a tramitação do pedido de seu impeachment no Senado, a presidente Dilma não deixaria passar o 1º de Maio sem se defender.
 
Foi à concentração da CUT em São Paulo e, sem ter ao lado o ex-presidente Lula, seu mentor, ausente por uma alegada afonia, Dilma repetiu o mantra do “golpe” — cujo efeito se circunscreve cada vez mais à militância —, e fez, num gesto populista, o anúncio de bondades com recursos de um Tesouro quebrado.
 
O aumento médio de 9% do Bolsa Família, mais 25% mil moradias no Minha Casa Minha, e o reajuste da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física realizados na conjuntura em que se encontra o país, com um déficit público recorde próximo de 10% do PIB, reafirmam o que já se sabe há tempos: o descompromisso de Dilma com a responsabilidade fiscal. Tanto que o país se encontra em péssima situação, e ela poderá ser afastada do cargo, pelo Senado, na semana que vem.
 
Muito eficiente em agitação e propaganda, o hegemonista PT buscou se apropriar do discurso da defesa das despesas sociais, existentes no país há muito tempo. Mas a prática lulopetista nem sempre foi coerente com este discurso.
 
Afinal, se existe um fator decisivo para inviabilizar programas sociais, e quaisquer outros, é a própria irresponsabilidade fiscal. Quando, portanto, decidiu não mais seguir regras de prudência na gestão das contas públicas, inclusive em nome dos “pobres”, Lula, no seu segundo governo, e depois Dilma agiam em sentido oposto. Trabalhavam contra os mais necessitados.
 
Na edição de domingo, O GLOBO, com base em estudo feito pela assessoria técnica do DEM, sobre dados de dotações de 2016 e 2015, identificou cortes, alguns profundos, em vários programas sociais do governo, todos trombeteados na propaganda oficial e partidária como boias de salvação decisivas para milhões de pessoas.
 
Mesmo a joia da coroa dos programas lulopetistas, o Bolsa Família, não escapou da tesoura: corrigida pela inflação, o orçamento do BF para este ano havia encolhido em 5,5% — antes do reajuste anunciado em 1º de maio.
 
Apesar do slogan “Pátria Educadora”, criado para o segundo mandato de Dilma, recursos destinados ao setor — por exemplo, Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), verbas para a construção de creches, Pronatec, este para o ensino profissionalizante — foram reduzidos, na contramão do discurso do tudo pelo social, inclusive a irresponsabilidade fiscal.
 
A análise feita pelo DEM sobre dados oficiais comprova que mesmo um governo comprometido, por motivos políticos, eleitorais e ideológicos, com as despesas sociais não consegue preservá-las se não fizer bem o dever de casa de manter as contas sob controle. Dilma não conseguiu atender a este imperativo, foi obrigada a cortar onde não gostaria de fazê-lo e ainda passou a enfrentar um processo de impeachment.
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Um governo de propaganda

KIM KATAGUIRI
FOLHA DE SP
 
O governo de Dilma Rousseff se tornou uma grande campanha eleitoral. Como toda campanha petista, não apresenta nenhuma proposta, mas promove um verdadeiro espetáculo de demonização do adversário. O partido, que chegou ao poder envolto numa falsa aura de honestidade e defesa dos mais pobres –e, uma vez lá, se mostrou corrupto e elitista–, agora tenta renovar a própria mística atacando inimigos imaginários.
 
Nas eleições de 2014, o PT aterrorizava o eleitorado em suas propagandas, mostrando que o Brasil governado pela oposição seria um país "das elites, do desemprego, da inflação, dos juros altos, dos cortes na Saúde, na Educação e nos programas sociais".
 
A realidade do segundo governo de Dilma Rousseff reproduz a caricatura que ela fazia dos seus adversários: benesses para grandes bancos e empreiteiras; desemprego de 10,9%; inflação de 10,67%, a maior desde 2002; juros em 14,25%, a maior taxa em quase dez anos; cortes bilionários na Saúde e na Educação –a redução no orçamento de programas sociais pode chegar a 87%.
 
Agora o PT quer fazer a população acreditar que, num eventual governo de Michel Temer, haveria corrupção institucionalizada e interferências na Operação Lava Jato.
 
Ora, que ironia! Não foi o próprio PT que transformou a corrupção em método de governo? Que excluiu do próprio dicionário a palavra "democracia" e instaurou a ditadura da propina?
 
Além disso, segundo a delação do senador Delcídio do Amaral, a própria presidente Dilma interferiu na Operação Lava Jato: teria nomeado Marcelo Navarro para o STJ (Superior Tribunal de Justiça) para que este votasse a favor da soltura de Marcelo Odebrecht e de Otávio Marques de Azevedo, além de tentar, junto ao então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, convencer o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski, a mudar os rumos da operação.
 
Se nem o PT, que teve mais de 13 anos para aparelhar o Estado e estruturar seu esquema de compra de base parlamentar, foi capaz de acabar com a Operação Lava Jato, como poderia fazê-lo um governo recém-chegado, com um país totalmente quebrado a recuperar, que precisará de amplo apoio do Congresso para sobreviver e que estará sob constante vigilância de uma sociedade que nunca antes priorizou tanto o combate à corrupção?
 
O PT aprendeu a projetar em seus adversários tudo aquilo que ele mesmo é. O partido o fez em sua ascensão e o está fazendo em sua derrocada. E assim, aos trancos e barrancos, a legenda sobrevive, recebendo na veia doses reforçadas de narrativa financiada por dinheiro público.
 
Não precisamos de um gigantesco Ministério da Propaganda, precisamos de um governo. A propaganda governista não amedronta. O que dá medo, de verdade, é a realidade que o governo nos impôs.

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