quarta-feira, 20 de setembro de 2017
quarta-feira, 30 de agosto de 2017
Espinhos na barriga
É triste ver o Brasil roubado pelos seus mais admirados administradores públicos
Roberto DaMatta, O Estado de S. Paulo
30 Agosto 2017
Luto com espinhos na barriga desde os 9 anos. Ao chupar uma laranja, engoli um caroço. Preocupado, abri-me com minha avó Emerentina:
– Vovó, eu engoli um caroço...
– Quando, meu netinho?
– Agora mesmo...
– Estás perdido. Amanhã ou depois vão nascer espinhos na sua barriga.
Vejam bem. Eu era acusado de ser canhoto, era o mais velho e tinha medo de almas do outro mundo. Agora estava condenado a ter espinhos na barriga.
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Mais de meio século depois, vejo que o País também tem um espinheiro na barriga. A irresponsabilidade contaminada de familismo – todo mundo é parente de todo mundo neste país de Deus! – fez com que engolíssemos todos os caroços.
Come-se fruta, jogam-se fora a casca e o caroço. Nada pode ser completamente abocanhado. Se você recebe, é obrigado a dar. O ideal é o amor cujo egoísmo quanto mais prazer nos traz, tanto melhor para o outro. Não é por acaso que o amor nos leva ao pico do altruísmo pelo mais fechado e ardente egoísmo. A chave está em conjugar altruísmo com egoísmo.
Engolir caroços promove indigestão. É triste ver o Brasil roubado pelos seus mais altos e mais admirados administradores públicos e particulares.
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Estarei vivo quando o Brasil estiver “recuperado”?
Vivi tempos em que éramos apenas “subdesenvolvidos”. Naquela era mitológica, havia um atraso admitido: o clima tropical (que impedia o pensamento, como dizia um dos nossos professores), a Serra do Mar (muralha que bloqueia a conquista do sertão), a colonização lusa (se fossem os holandeses...), a mistura fatal das raças, o jeitinho jurídico que, vejam o horror, condena ácidos criminosos a doces prisões domiciliares, o feroz imperialismo ianque, os coronéis latifundiários, os políticos ladrões (mas que faziam...), os sistemas eleitorais indevidos, a saúva, a sensualidade, o samba, a cachaça, o Diabo...
O Brasil, como dizia Otto Lara Resende, não tinha furacão, tufão, terremoto, nevasca e maremoto, mas tinha inflação. Domesticamos a inflação, mas o populismo que produziu a plutocracia quebrou as contas públicas. Hoje, temos um sistema travado e o nosso time político, com o perdão pelo feio qualificativo que lhe cabe, é uma merda. Com a devida vênia aos honestos, todos têm algum laço, traço ou gene espúrio.
Aliás, a nossa elite é uma Grande Família. Os partidos, que deveriam conter os empenhos da casa, ressurgem fortes no estamento (como dizia com avassaladora sapiência Raymundo Faoro). Se você gritar “tio!” ou “padrinho!” no Congresso Nacional, ou em qualquer outro ambiente repleto de “gente grande”, você vai ouvir um amoroso “SIM?...”. Mudamos para a coisa pública, mas os laços de parentesco retornam como um furacão. Reprimimos legalmente o nepotismo puro, mas um ardiloso jeitinho inventou um brasileirismo – o nepotismo cruzado!
Nada, convenhamos, é mais legítimo na nossa democracia igualitária e meritocrática do que dar uma “mãozinha” a um parente se ele (ou ela) tem aquele talento. Mas – pergunta o menino com espinho na barriga – qual é o parente que, no Brasil, não tem talento?
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Mais uma vez, abrimos a rotineira temporada de reformas. Eu vivi as “reformas de base”, que resolveriam tudo. E votei no dilema entre presidencialismo e parlamentarismo. Depois, me envolvi no retorno da monarquia. Agora, testemunho essa requentada temporada de reformas e logo percebo que a reforma mais essencial – a da Previdência, sendo evitada porque leva a uma indesejável análise do nosso sistema administrativo e de outros temas avessos à chamada “vontade política” como o nosso perfil demográfico.
Não falo da reforma política, exceto para dizer que precisamos mais de uma metamorfose dos políticos do que de uma mudança de regras. Sou, entretanto, a favor de eleições e de deseleições (recall) que nos livrem dos canalhas. Sou contra esse tal fundo eleitoral que alguns imbecis chamam de “democrático”. Partidos políticos são associações de cidadãos e, como um clube, devem ser autofinanciáveis. A doação eleitoral só é um problema porque, entre nós, a doação vira um favor. Temos caridade, não temos a filantropia que leva a um melhor diagnóstico da dinâmica sociopolítica, além de ser um penhor dos muitos ricos à coletividade que lhes permitiu êxito.
Pelo que devo às sociedades tribais do Brasil, sou contra a privatização de reservas indígenas. E favorável à coletivização das riquezas particulares que, literalmente, saem pelo ladrão.
quarta-feira, 16 de agosto de 2017
É impossível distribuir
Como ser altruísta se um egoísmo oportunista permeia a nossa vida social?
Roberto DaMatta, O Estado de S. Paulo
16 Agosto 2017
Quando distribuir se torna uma questão social e deixa de ser um tema sociológico? Quando uma sociedade quebra porque não consegue distribuir com equidade coisa alguma? Ou melhor, por que a sua engenharia distributiva foi sempre farta e feita de favores, privilégios e presentes para particulares, esquecendo suas obrigações para com os bens e serviços universais? Como foi que chegamos a esse escandaloso modelo de distribuição no qual os ricos enriquecem os políticos e estes os ricos, e todos se tornam bilionários capazes de comprar a própria competição e, por pouco, não compram o Brasil?
Como pensar nos outros se não pensamos no Brasil? Como ser altruísta se um egoísmo malandro e oportunista – golpista, pois chega inesperadamente como essas reformas que reformam reformas – permeia a nossa vida social, privilegiando categorias, pessoas, instituições, cargos, títulos, ideologias, partidos políticos e tudo o mais? Até mesmo Deus tem partido num certo Brasil!
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Hoje, vivemos a explosão dessas bolhas. Um Estado com muitos funcionários, uma população que envelhece e onera um sistema previdenciário desenhado quando uma pessoa de 50 anos era tida como velha, uma roubalheira em nome do povo jamais vista. Junte-se a isso uma camada administrativa, cujas garantias legais nada devem a nenhuma casta e a uma legislação dura no papel, mas dotada de recursos infinitos, os quais condenam criminosos a uma doce prisão domiciliar. Não tenho espaço para falar do “fundo partidário” bilionário, ao lado de uma ciência e cultura sem fundos.
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O jogo simultâneo de distribuição generosa e escassa transformou populismo em plutocracia. Um sistema movido a promessas e magia descobre o absurdo de ser sistematicamente farto com a fartura e sovina com a escassez. É preciso mudar essa perversa equação distributiva.
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Seria possível ter uma coletividade sem alguma forma de distribuição? Lévi-Strauss respondeu dizendo que a própria sociedade nasce quando alguém deixa de casar com sua irmã (ou irmão), sabendo que o seu vizinho faria o mesmo. A distribuição resultante permite ler o incesto (não casar para dentro) como um modo de distribuir (casar fora ou, como o disse Tylor, guerrear). Eis uma troca (ou “imposto”) na qual todos ganham sem segundas intenções, golpe ou malandragem.
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Os estilos de vida de uma sociedade são visíveis sobretudo no seu espaço físico. Nas sociedades indígenas de língua jê que estudei, é muito difícil aplicar a matriz “pobre/rico”, porque tais comunidades são permeadas pela reciprocidade do ‘dar para receber’. Nelas, tudo o que é produzido, é dividido pelo costume e não por leis. No primeiro caso, há o presente; no segundo, o imposto. Em grupos tribais, não existem o castelo kafkiano, o palácio do governo, os bairros de condomínios fechados e guarnecidos com suas mansões amuradas como que a dizer ao visitante: “Você sabe onde está entrando?”. Tais espaços ocupam hoje o lugar das casas-grandes e são a prova de diferenciações sociais jamais questionadas.
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Seria possível sugerir, sem ferir os sábios de plantão, que a empatia, a compaixão, a caridade (o amor) seriam os mecanismos elementares dos quais nasceram os impostos e, com eles, uma distribuição relativamente satisfatória de bens e serviços?
Haveria um mecanismo implícito ou inconsciente destinado a corrigir iniquidades em todos os sistemas? Eu penso que sim. Não há nenhuma sociedade que não pense uma de suas partes, mesmo as mais problemáticas, sem imaginar as suas obrigações para com o todo. Pois é no todo que está a legitimidade. Seria plausível, então, dizer que quando uma sociedade perde a noção de si mesma como uma totalidade que exige impostos morais – os chamados sacrifícios – ela perde o seu coração e a sua alma?
quarta-feira, 28 de junho de 2017
Nevoeiro ou labirinto?
Uma pertinente reflexão acerca dos foros privilegiados na vida pública nacional.
Nevoeiro ou labirinto?
Todos são iguais, mas os foros privilegiados transformam a igualdade em desigualdade
Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo
28 Junho 2017
Somos obrigados a falar uma só língua por um motivo óbvio: se cada indivíduo inventasse seu código de comunicação, ressuscitaríamos Babel. Múltiplas línguas e éticas engendram o caos e, no limite, a violência. É - como advertiu FH mais como observador do que como participante - algo gravíssimo.
Línguas e éticas delineiam limites. Num nível profundo são elas que nos falam. Roland Barthes dizia que “a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista”. Ninguém se lembra de ter aprendido sua língua materna, mas todos recordam suas lições de francês, italiano ou mandarim.
Sem uma única língua não se pode exercer o sumo da democracia: discordar. E sem reclamação e debate honesto vivemos o nevoeiro que resulta de um imenso labirinto legal. Esse marco do nosso sistema político.
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Nesse plano há pontos capitais, mas esquecidos. Eu posso ser contrário a um sistema político, mas devo ser honesto nos meus propósitos. Não posso ser um defensor dos pobres, enriquecendo pelo compadrio com capitalistas; não posso ajudar a depor uma rainha sendo um rei suspeito dos mesmos delitos.
Se nos inspirarmos em Shakespeare, concordando que o mundo é um palco, diríamos que o texto dos dramas históricos é a moralidade ou a ética inspiradora do drama. Você só pode ser um personagem se tiver o propósito de sustentar (como mocinho, bufão, traidor ou bandido) a cena, levando-a ao seu arremate. Se, contudo, o seu objetivo era de entrar na peça com a intenção de roubar a qualquer custo todas as cenas e, em seguida, destruir o palco e o teatro, matando o autor da peça, então não há o que discutir.
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Essa analogia ajuda a enxergar a gravíssima crise que hoje vivemos. O colapso tem como centro um sistema de papéis amparados por uma estrutura burocrática destinada a manter privilégios. Meu lado antropológico sugere que o nosso republicanismo usa e recusa levar avante os seus valores. Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocrata, transferimos aos cargos republicanos os conteúdos aristocráticos vigentes na monarquia. A República não foi pactuada, ela foi “proclamada”. Um dado óbvio da crise é nossa dificuldade de unidade, de um acordo mais profundo do que o ganhar ou perder no parlamento. Não chegamos nem a discutir qual seria o mínimo denominador nacional. Seria o mérito? A amizade? O cargo legalmente embasado nas piruetas jurídicas?
Onde seria ancorada a nossa vida pública? Nas biografias que desmoralizam os cargos; ou nos cargos que desmoralizam seus atores? Nossas práticas sociais destroem qualquer racionalidade. A vantagem de uma língua comum é poder discordar. A de uma moralidade é o controle do jogo político que não pode mais continuar fundado nos oportunismos do vale-tudo. Teoricamente, o interesse político esbarra na lei. Mas e quando ele deseja ser a própria lei?
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Qual seria a unidade de um povo (feito até anteontem de senhores e escravos; e de nobres e comuns) se até hoje alguns podem fazer o que bem entendem, ignorando a igualdade? Todos são iguais, mas os inúmeros foros privilegiados transformam a igualdade em desigualdade.
O sistema legaliza sem legitimar um sistema de cargos obtidos numa competição eleitoral na qual - eis a imoralidade - os vencedores traem abusivamente seus projetos e suas promessas. O resultado é uma nomenclatura investida de desigualdades jurídicas a qual não é mais aceita pela sociedade consciente que é ela quem paga o preço da pirâmide. A racionalidade do mercado inundou a sociedade e não se pode mais disfarçar o quanto se paga pela ética do compadrio, que impede passar a limpo os conflitos motivados pela aliança entre poder e dinheiro.
E o pior é descobrir que mesmo quando descobrimos que as mais altas autoridades da cidade, do Estado e do País, se transformaram em assaltantes das instituições que deveriam governar, não chegamos ao fundo do poço.
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Impermeáveis aos requisitos racionais do diabolizado capitalismo, cuja ética engendrou e estimulou o direito à diferença, à discórdia, à oposição, à competição e ao mérito, confundimos muitos direitos com legitimidade, muitas polícias com o controle do crime e inúmeros tribunais com acesso igualitário à Justiça. O resultado não antecipado de tantos controles é uma contaminação patológica na qual se salvam todos interesses, menos o do povo brasileiro.
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PS: Volto a escrever neste espaço em agosto, mas, como a vida não cansa de me lembrar, há sempre o inesperado.
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