sábado, 10 de março de 2018

A encruzilhada da humanidade


por Thomaz Wood Jr. 

Tendências no mercado de trabalho sugerem mais turbulências e incertezas à frente tanto para empresas como para profissionais


A máxima é atribuída ao diretor norte-americano Woody Allen: “Mais do que em qualquer outro momento da história, a humanidade enfrenta uma encruzilhada. Um caminho leva ao desespero e à total desesperança. O outro, até a extinção total. Vamos orar para termos a sabedoria de escolher corretamente”.

A frase já conta algumas décadas, mas continua sombriamente atual. Passou de puramente cômica a tragicômica. Algumas decisões e eventos recentes parecem adiantar a segunda alternativa: a extinção total.

Certas tendências, entretanto, estão mais orientadas a “apenas” fomentar o desespero e a desesperança. Este pode bem ser o caso das tendências envolvendo as organizações e o mercado de trabalho.

Por quase todo o século XX, a paisagem corporativa foi dominada por gigantes: grandes empresas que prosperaram adicionando áreas, funções e funcionários. Quando cresciam as vendas, cresciam os organogramas e as folhas de pagamento.

As mudanças ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 alteraram substancialmente esse cenário: estatais foram privatizadas e muitas empresas privadas desapareceram sob o peso da própria inépcia. Centenas de fusões e aquisições fizeram a alegria de financistas e advogados, com a conta geralmente paga por acionistas e clientes.

Finalmente, novos gigantes, movidos a tecnologia, surgiram para maravilhar e assombrar o mundo. Várias das maiores empresas atuais têm menos de 30 anos: a Amazon foi fundada em 1994, o Google em 1998 e o Facebook, em 2004. As novíssimas estrelas do firmamento corporativo são ainda mais jovens: a Airbnb foi criada em 2008 e o Uber, um ano depois.

Esses gigantes se diferenciam dos mamutes de outras eras pelo papel central das tecnologias da informação e da comunicação em seus modelos de negócios e pelo pequeno número de funcionários.

Airbnb, Uber e similares são fruto de tendências que devem se manter nos próximos anos. Assim como a automação e os robôs aumentaram a produtividade e dizimaram empregos nas corporações industriais, as novas tecnologias prometem fazer o mesmo nas empresas de serviços. O futuro aponta para menos empregos formais e mais arranjos temporários; menos gente empregada, porém com maior capacitação.

Levantamentos realizados em alguns países desenvolvidos já apontam uma queda contínua do número de empregos formais. Muitas empresas continuam, entretanto, a se deparar com escassez de talentos, a falta de quadros profissionais com a expertise ou disposição para preencher suas vagas.

Entre os mais jovens parece haver cansaço com o emprego corporativo que nutriu os sonhos das gerações anteriores. Muitos querem trabalhos mais interessantes e significativos, frequentemente orientados para um benefício social palpável.

Outros simplesmente não veem sentido em dar duro 12 horas por dia em troca de magros salários. Preferem as virtudes e vertigens da montanha-russa da aventura empreendedora.

Para fazer frente a mais competição por clientes e funcionários, muitas organizações lutam para modernizar seus discursos e práticas: adotam estruturas mais fluidas e ágeis, investem em formação contínua e adotam princípios de marketing para promover a própria imagem diante de potenciais funcionários.

Em um texto recente, Jane Partridge, professora de Recursos Humanos da Universidade de Northampton, na Inglaterra, alerta para as necessidades opostas apresentadas por empresas e por profissionais. Enquanto as primeiras enfrentam turbulências e precisam de estruturas enxutas e quadros flexíveis, os últimos necessitam de certo nível de estabilidade e permanência. 

Partridge também chama atenção para um conjunto de competências necessárias para lidar com uma realidade marcada por fluidez e laços tênues. Sua lista soma paradoxos: saber organizar, mas lidar com incertezas; atender a objetivos e se relacionar com pessoas difíceis ou pouco produtivas; planejar e se adaptar a um ambiente em mutação; agir como dono do negócio e aceitar a instabilidade dos novos arranjos do trabalho.

Nenhum luminar foi capaz de descortinar o mistério que engolfa o futuro do trabalho e do emprego. A encruzilhada tragicômica de Woody Allen provavelmente permanecerá por algum tempo como metáfora apropriada ao contexto. 

Que benefício a educação superior traz à sociedade?


por Thomaz Wood Jr. 

Economista critica a expansão excessiva do ensino universitário e propõe uma reorientação dos investimentos

A expansão da educação superior tem sido objeto de políticas públicas em todo o mundo. O senso comum, sustentado por pesquisas e evidências, associa educação a desenvolvimento. Gestores públicos vangloriam-se quando o porcentual da população jovem que atinge a universidade cresce.

Quanto mais, melhor. O movimento envolve também a pós-graduação, com a multiplicação do número de mestrados e doutorados. Supõe-se que mais mestres e doutores ajudem a gerar mais conhecimento, patentes e riquezas.

A expansão da educação superior faz muita gente feliz: estudantes que almejam um futuro melhor, famílias que querem o bem para suas crias, professores felizes com a demanda crescente, gestores públicos orgulhosos de sua obra e até investidores, atraídos por gordas margens de lucro, no caso de algumas universidades privadas.

Entretanto, por trás da fachada, a realidade tem mais espinhos do que flores. Pressionados a expandir o atendimento, os sistemas públicos experimentam sinais de deterioração e perda de qualidade.

Alguns deles se converteram em arenas políticas de governança impraticável, nas quais grupos digladiam na disputa por pequenos espaços e vantagens. Enquanto isso, muitos sistemas privados se transformam em usinas de aulas, a gerar diplomas como quem produz commodities.

Em um ensaio de promoção de seu livro The Case Against Education: Why the Education System Is a Waste of Time and Money (Princeton University Press), Bryan Caplan, professor de Economia da Universidade George Mason, trata do tema.

Em uma era que celebra o conhecimento, sua tese soa herética: para o economista, a verdadeira função da educação é simplesmente prover um certificado aos formandos. Em outras palavras, com honrosas exceções, pouco se aprende na universidade. O que importa é o diploma que dará acesso ao futuro emprego.

Para Caplan, o sistema de educação superior desperdiça tempo e dinheiro. O retorno para os indivíduos é substantivo: com o título vêm melhores salários. No entanto, o retorno para a sociedade é pífio. Segundo o autor, quanto mais se investe na educação superior, mais se estimula a corrida por títulos. E basta cruzar a linha de chegada: terminar a faculdade.

Nas universidades, estudantes passam anos debruçados sobre assuntos irrelevantes para sua vida profissional e para o mercado de trabalho. Qual o motivo para a falta de conexão entre o que é ensinado e o que será necessário? Simples: professores ensinam o que sabem, não o que é preciso ensinar. E muitos têm pouquíssima ideia do que se passa no mundo real.

Além disso, Caplan observa que os estudantes retêm muito pouco do que lhes é ensinado. De fato, seres humanos têm dificuldade para conservar conhecimentos que raramente usam. Alguns cursos proporcionam modos e meios para que os pupilos assimilem e exercitem novos conhecimentos. Contudo, a maioria falha em prover tais condições.


Curiosamente, o fato de os estudantes pouco aprenderem nos quatro ou cinco anos de universidade não é relevante. O que seus empregadores procuram é apenas uma credencial que ateste que o candidato seja inteligente, diligente e capaz de tolerar a rotina tediosa do trabalho. Para isso basta o título.

O autor não poupa críticas a estudantes, colegas e gestores. Os primeiros, para ele, são incultos e vulgares, incapazes de transpor conteúdos escolares para a vida real. Passam a maior parte do tempo na universidade como zumbis na frente de seus smartphones e em outras atividades destinadas a turvar a mente e o espírito.

Além disso, o crescimento da educação superior está levando para a universidade indivíduos sem características para serem universitários. Está atraindo para a pós-graduação profissionais sem o perfil para reflexão profunda e crítica. E está formando mestres e doutores que não têm talento ou inclinação para ensinar e pesquisar.

Inflar as vagas e criar mecanismos para facilitar o acesso à universidade pode parecer causa nobre. Alimenta os sonhos das classes ascendentes e produz casos de sucesso, sempre ao gosto da mídia popular. Entretanto, pode estar drenando recursos do ensino fundamental e vocacional, e da pesquisa de ponta.

A educação é, certamente, um grande meio de transformação social. Isso não significa despejar insensatamente recursos em simulacros de ensino e sistemas de emissão de títulos universitários. 

terça-feira, 6 de março de 2018

Apenas 2,1% dos alunos pobres do País têm bom desempenho escolar

Como se esperar saída da crise em médio prazo e desenvolvimento em longo prazo se o cenário da educação no Brasil não muda, apesar de termos, desde 1985, a maioria dos políticos e parlamentares de esquerda?
Quando haverá reversão desse perverso cenário?


Apenas 2,1% dos alunos pobres do País têm bom desempenho escolar

De 71 países, Brasil é o 62º na quantidade de estudantes que vão bem em avaliação internacional apesar da situação de pobreza, os chamados resilientes; baixa rotatividade de professores e atividades extraclasse têm efeitos positivos no resultado
         
Renata Cafardo, O Estado de S.Paulo
04 Março 2018 

O Brasil é um dos países em que há menos estudantes resilientes, aqueles que apesar da condição de pobreza conseguem ter bom desempenho escolar. Um estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra só 2,1% dos alunos brasileiros com esse perfil. A pesquisa analisou resultados da última edição do Pisa, maior avaliação internacional de educação, feita por jovens de 15 anos. A média de resiliência entre países membros da OCDE é de 25,2%.

No ranking de 71 países participantes, o Brasil ficou em 62.º, abaixo de outros latinos como Chile, Uruguai e Argentina. Uma das razões é o fato de alunos de baixa renda, em geral, frequentarem as piores escolas. “O Brasil ainda tem um longo caminho para garantir que estudantes tenham acesso igualitário às oportunidades educacionais, independentemente da origem dos seus pais ou do lugar em que vivem”, disse ao Estado um dos autores do estudo na OCDE Francesco Avvisati. 

São resilientes os alunos que estão entre 25% mais pobres do país e atingiram pelo menos o nível 3 de desempenho do Pisa, nas três áreas avaliadas - Matemática, Ciências e Leitura. Para a OCDE, o nível 3 é o mínimo necessário para que o jovem possa ter “uma vida com oportunidades de aprendizagem”.

Apesar da resiliência também ser uma característica pessoal, políticas e práticas educacionais podem reduzir a vulnerabilidade dos estudantes, afirma o relatório. Foram tabulados os fatores que mais influenciam nesse resultado positivo. 

Um dos mais importantes é um bom ambiente escolar, sem graves problemas de disciplina. Escolas com pouca rotatividade de professores e atividades extraclasse têm mais resilientes. Segundo o estudo, alunos pobres que estudam com colegas de classes sociais mais altas têm mais chance de sucesso. Já a menor quantidade de alunos faltosos ajuda, mas é menos significante. “Um clima em que os estudantes se sentem seguros e apoiados por professores e colegas é crucial para o sucesso dos que estão em desvantagem socioeconômica”, diz Avvisati. 

Não foi encontrada qualquer relação entre o número de computadores por aluno e outros recursos não humanos com a maior resiliência. Classes menores também não têm influência. E meninas de perfil socioeconômico baixo tem 9% menos chances de serem resilientes do que meninos da mesma escola. 

Como o Brasil tem índice baixo, não foi possível tabular quais fatores mais influenciam a resiliência no País. Mas, nos questionários do Pisa sobre o clima na escola, 40,3% dos brasileiros disseram que “os alunos não começam a estudar logo que começa a aula” e 38% que “não ouvem o que o professor fala”. Nas redes estaduais e municipais os índices são mais altos que na particular. 

Emoção. “É bagunça o tempo todo, professores ruins, tudo desestimula”, diz Victor Gonzaga, de 19 anos, um exemplo de resiliência. Ele mora em Guarulhos e os pais não têm ensino superior. Ao terminar o ensino médio na rede pública, fez dois anos de cursinho, com bolsa. Mês passado, surpreendeu a família toda ao ser aprovado em Medicina na Universidade de São Paulo (USP), na Federal de São Paulo (Unifesp) e na Estadual de Campinas (Unicamp). “Minha mãe sempre me incentivou e deixou que eu não trabalhasse nesses anos, mas a maioria dos meus amigos não teve essa sorte.”

Gabriel Zanata, de 17 anos, também da rede pública, acha o sistema injusto. “Quem é mais rico vai para a escola particular. Parece que a regra é: quem está embaixo tem de continuar embaixo, quem está em cima continua em cima.” Ele passou o último ano saindo de casa às 6 horas e voltando só à meia-noite - fez escola e cursinho juntos. “Foi muita emoção ver meu nome na lista (de aprovados no vestibular). Vou ter uma oportunidade que meus pais não tiveram.” Gabriel vai cursar Engenharia na USP. O pai é eletricista e a mãe, desempregada. 

Equidade. Hong Kong tem a maior taxa no ranking, 53,1%. É clara a relação entre resiliência, qualidade e equidade. Em países com melhor resultado educacional e menos desigualdade social, como Finlândia e Canadá, o valor é maior do que 30%. Os que estão no fim da lista se saem pior em avaliações como o Pisa e são menos igualitários, como Argélia, Peru e Líbano. 

“Fico preocupada em acharmos que a escola sozinha resolve toda essa questão”, diz a ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação e diretora da Fundação SM, Pilar Lacerda. Para ela, a má distribuição de renda e a pobreza influenciam muito na falta de perspectiva para que o aluno consiga se enxergar em um lugar melhor. “O esforço que temos de fazer é cinco vezes mais do que em países onde as necessidades básicas já são atendidas.”

O Brasil é o 10.º país mais desigual do mundo, segundo as Nações Unidas. “São os menos favorecidos que estudam nas escolas que não têm aula, que falta professor”, completa Mozart Neves Ramos, do Instituto Ayrton Senna. A disparidade também é vista no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Segundo dados tabulados pelo Estado, só 8% dos alunos com as mil melhores notas em 2016 eram da rede pública. E 2,6% vêm de famílias com renda menor de 1,5 salário mínimo. 

Para Ramos, o caminho para reduzir a desigualdade passa pela inclusão no currículo das habilidades socioemocionais, entre elas, saber trabalhar em grupo, resolução de problemas e resiliência. “Você trabalha situações que promovem mudança de atitude, auto estima. Primeiro você faz isso para depois corrigir fluxo e alfabetização.” 

Também foi tabulado o avanço ao longo do tempo. Entre 2006 e 2015 (o Pisa é de três em três anos), o Brasil passou de 0,6% de resilientes para 2,1%, alta considerada significativa. Alguns dos maiores saltos foram de Portugal (16,3% para 25,8%) e Rússia (12,7% para 24,5%).

Textos e frações. O Pisa tem níveis de desempenho de 1 a 6. Os conhecimentos do 3 são tidos como mínimos para alunos de 15 anos. E, por isso, são o limite para jovens pobres serem considerados resilientes. Isso significa que sabem lidar com frações, porcentagens e decimais. Na prova de leitura, identificam e categorizam várias partes de um texto. Em Ciências, são capazes de explicar fenômenos naturais mais conhecidos.

Colégio da periferia aprova em universidades públicas
Na Escola Estadual de Educação Profissional Mário Alencar, no Ceará, no ano passado nenhum dos 384 alunos foi reprovado. O índice de abandono é zero. A unidade, que fica no bairro Jangurussu, periferia de Fortaleza, teve 25% dos estudantes do 3º ano aprovados em universidades públicas em 2017.

A receita do sucesso, explica a diretora Maiumi Lopes, é um acompanhamento integral do aluno, que passa pela família e termina com o encaminhamento profissional. “Uma vez por semana, no horário do almoço, aqueles que se sentirem sensibilizados, conversam sobre temáticas do dia a dia”, diz. Também é feito um controle rigoroso de frequência. “Quando alguém falta, a gente liga para saber o que houve.”

A escola funciona em período integral. Pela manhã, são as aulas da grade regular e à tarde, profissional (rede de computadores, enfermagem e eventos). No curso de rede, 80% dos formados saem empregados, como Guilherme Albuquerque, de 18 anos, que já atua como gerente de Tecnologia da Informação. Ele começou a estudar alemão porque quer fazer universidade no exterior. 

Por causa da alta procura, a escola faz seleção pelo histórico escolar, mas todos os alunos são de Jangurussu ou de bairros próximos, também periféricos. “Traçamos metas a partir da aptidão de cada um”, diz Maiumi.

Jangurussu tem 50.479 habitantes. O povoamento começou a partir de um aterro sanitário e, hoje, entre os bairros mais miseráveis de Fortaleza, tem os maiores índices de violência.

COLABOROU CARMEN POMPEU, ESPECIAL PARA O ESTADO

O marketing acadêmico das disciplinas sobre o golpe de 2016

DEMÉTRIO MAGNOLI
FOLHA DE SP - 03/03

Na era Lula, acadêmicos eram militantes partidários. Agora, eles ingressam no ofício de marqueteiros
A campanha presidencial simulada de Lula dissolveu a delgada película que ainda separava o pensamento acadêmico do imperativo partidário. O ácido foi derramado pelo professor da UnB Luis Felipe Miguel, que criou uma disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.

Uma reclamação imprópria do ministro da Educação serviu como pretexto para que dezenas de colegas emulassem o gesto de vandalismo intelectual, ofertando disciplinas idênticas em departamentos da USP, Unicamp, UFBA, Ufam e outras. Na “era Lula”, acostumamo-nos com a redução de acadêmicos a militantes partidários. Agora, assistimos ao ingresso deles no ofício de marqueteiros.

O vaga-lume ativa e desativa a bioluminescência segundo suas necessidades biológicas. O PT acende e apaga o sinal de “golpe” de acordo com as circunstâncias políticas. O luminoso foi ativado para reagrupar a militância, na hora do colapso dilmista, mas desativado pouco depois, quando o PT anunciou a retomada das alianças eleitorais com os partidos “golpistas” (o MDB e as siglas do “centrão”). Hoje, pressiona-se novamente o interruptor para denunciar o veto legal à candidatura de Lula. A ciência política tem algo a dizer sobre as funções desempenhadas pela narrativa do golpe. Já os acadêmicos que a reproduzem, aplicando-lhe um verniz de discurso científico, depredam a instituição na qual trabalham.

Na UFBA, a disciplina decola no golpe do Estado Novo, transita pelo golpe de 1964 e aterrissa no “golpe de 2016”, que abriria uma etapa de “autoritarismo”. As leis de exceção, a proibição de partidos, a cassação de parlamentares, as prisões políticas, a tortura, a censura, a repressão a manifestações —nada disso aparece no “golpe de 2016”, que obedeceu à letra da Constituição e procedeu segundo regras ditadas pelo STF. Por qual motivo, além da fidelidade ao partido, a disciplina não contempla o “golpe de 1992” (ou seja, o processo de impeachment contra Collor)?

“O discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido para inibir qualquer interpelação crítica do mundo”, alegou constrangedoramente Felipe Miguel em defesa de sua obra de marketing fantasiada de disciplina acadêmica. Ocorre que a noção de “imparcialidade”, tão cara ao direito, é estranha à investigação científica. O discurso científico distingue-se do discurso político-ideológico por rejeitar o finalismo: no campo da ciência, é proibido fabricar uma conclusão prévia da qual escorrem as “provas”. A disciplina dos neomarqueteiros não peca por “parcialidade”, mas por violar o método científico.

A prevalência da esquerda nas faculdades de humanidades nem sempre conduziu à dissolução do método científico. Os professores socialistas ou comunistas do passado separavam sua militância partidária de seu trabalho acadêmico, pois acreditavam que a transformação social não seria produzida por eles, mas por uma revolução dos “de baixo”. A ascensão do PT coincidiu com o descrédito da ideia revolucionária —eabriu caminho para o vale tudo intelectual.

Na confusa ideologia original petista, o socialismo nasceria “por cima”, pela construção de uma hegemonia social da esquerda, não da anacrônica insurreição proletária. A missão exigiria a produção de um direito, uma história, uma sociologia, uma antropologia “dos oprimidos”. Na mente dos quadros acadêmicos petistas, a fronteira entre discurso científico e discurso ideológico aparecia como uma conservadora exigência de “imparcialidade” destinada a proteger “as elites”.

Os professores que se entregam ao marketing lulista pertencem à geração de estudantes universitários do “PT das origens”. Tirando os mais ingênuos, eles já desistiram do objetivo socialista, contentando-se hoje com uma migalha: o sucesso eleitoral do partido. O golpe do “golpe de 2016” —eis o título para uma disciplina útil.

Demétrio Magnoli - É doutor em geografia humana e especialista em política internacional.

Ambientalistas de aquário, investimentos e geração de emprego

 JULIO GAVINHO
GAZETA DO POVO - PR - 03/03

Vivemos há muitos anos o dilema fundamentalista que opõe o crescimento econômico à preservação ambiental. Esta discussão é vazia e temerária

Aprendi com meu amigo Irineu Guimarães, o dínamo imobiliário do Ceará, que o Piauí recuperou seus 66 quilômetros de belas praias por um jamegão de dom Pedro II. O Ceará se fez de bobo por uns 300 anos, tungando do vizinho o acesso ao mar. A praia de Luís Corrêa, nesta nesga beira-mar do Piauí, é das mais belas do Brasil, com seus recifes coloridos, dunas e um vento preguiçoso que acalma o relógio. Tanto é acalmado o relógio que o desenvolvimento turístico ainda não chegou até lá.

Inúmeros peixes ornamentais nunca viram um rio ou um dos sete mares. Foram paridos e (se sobreviveram ao apetite dos pais) cresceram dentro de um aquário. Assim como vários outros animais de cativeiro, os peixes de aquário não conhecem predadores ou outro alimento a não ser aquele pó estranho que espalhamos sobre a água dos belos aquários que temos em casa. Claro que existem exceções, como aqueles que comem larvas ou as divertidas pítons domésticas que comem pequenos roedores. Mas o fato é: nenhum deles sabe como é a vida real. Assim como os nossos ambientalistas de aquário.

Não há preservação sem ocupação: o que há no lugar da ocupação é a invasão

Passei minhas férias no Ceará, assim como os últimos feriados, fins de semana, etc. Eu e minha família simplesmente amamos o Ceará, suas praias e cenários, mas principalmente amamos o cearense e sua cultura. Eu sempre quis desenvolver um resort no litoral cearense. No Marriott, no Hyatt e nos últimos anos da minha dura vida empresarial. Sempre esbarrei em questões ambientais que, de uma forma ou de outra, diminuíram meu apetite e daqueles que me financiavam. Fazendo uma conta de padeiro (excelentes matemáticos, por sinal), o meu desejo seria de um resort de cerca de 500 apartamentos e entre 500 e 1 mil empregos diretos. Seriam cerca de R$ 350 milhões em investimentos apenas no hotel. Seriam... seriam... seriam.Todos os centavos espantados pelo fantasma da incerteza de licenças ambientais.

Eu advogo pelo desenvolvimento, pelo emprego e pelo crescimento da economia através da iniciativa privada. Não advogo pelas dunas nem pelo mico-leão-dourado. Tem muita gente fazendo isso, do escritório, das estações ambientais e do sofá da sua casa mesmo. Embora eu entenda que ambos devam ser preservados, vivemos há muitos anos o dilema fundamentalista que opõe o crescimento econômico à preservação ambiental. Esta discussão é vazia e temerária, pois não há preservação sem ocupação: o que há no lugar da ocupação é a invasão, como atestam as encostas do Rio de Janeiro, o entorno da Lagoa da Conceição e quase toda a reserva de Mata Atlântica remanescente, abandonada pelos ambientalistas de cativeiro.

Durante meus 15 dias no litoral cearense pude observar, estarrecido, o fluxo de caminhonetes de luxo disputando rachas sobre as dunas. Também vi hordas de bugres com turistas, voando baixo nas dunas, com emoção. Até esqui puxado por caminhonetes eu vi, coroando o vácuo entre o entendimento burocrático da restrição/preservação e a humilhação do argumento oficial, real, prático, enterrado na areia.

Eu não toco o “samba do incorporador doido”, como diria o Stanislaw Ponte Preta. Mas demando uma visão prática sobre projetos turístico-imobiliários em um logradouro público dito turístico, como o Brasil.

Julio Gavinho é executivo da área de hotelaria, fundador da doispontozero Hotéis, criador da marca ZiiHotel, sócio e diretor da MTD Hospitality.

"Bala perdida"

 J.R. GUZZO
REVISTA VEJA

Uma dessas coisas que só existem no Brasil, como a mula sem cabeça e o adicional de moradia que os juízes recebem para viver na própria casa, é a “bala perdida”. No resto do mundo as armas de fogo nunca disparam sozinhas; se uma bala acerta alguém, é porque um ser humano deu um tiro, de propósito ou por acidente. Aqui não. Toda hora uma pistola ou fuzil abrem fogo, mas ninguém atira. O fato é que nas favelas do Rio de Janeiro e suas vizinhanças a bala perdida se tornou hoje a principal culpada por homicídios de autoria desconhecida. Mas não seriam os criminosos locais que estariam dando esses tiros que matam cada vez mais gente, sobretudo crianças? É uma hipótese que parece não ocorrer nunca no noticiário, e muito menos em qualquer avaliação da Ordem dos Advogados do Brasil, da Anistia Internacional, dos partidos de “esquerda” e outras entidades que se empenham em defender os direitos da população pobre dos morros — no momento ameaçada, segundo elas, pela presença de tropas do Exército nas ruas da cidade. Pelo que dá para entender daquilo que dizem, não há realmente bandidos matando gente nas favelas. Quem mata é “a polícia” ou, então, a bala perdida.

Eis aí uma maneira muito eficaz de esconder quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre em câmera lenta que os moradores mais pobres do Rio de Janeiro estão sofrendo há anos. Se eles são assassinados pela bala perdida, então ninguém é culpado, certo? Afinal de contas, não dá para dizer que a PM mata todo mundo; também ficaria chato dizer que há quadrilhas em guerra, pois isso poderia “criminalizar a pobreza” e reforçar “preconceitos” contra as “comunidades” que cobrem os morros cariocas. Assim, quando os bandidos trocam tiros de AK-47, que podem acertar uma pessoa a 1,5 quilômetro de distância, e acabam matando alguém que não conseguiu se esconder, como é comum acontecer com bebês e crianças pequenas, o assassino é a bala perdida. Pronto — problema resolvido. Todo mundo já pode voltar ao palanque para continuar pregando que o inimigo do pobre é a polícia, agora também o Exército e, se bobear, o juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF4, de Porto Alegre. Pensar desse jeito parece loucura — e é mesmo loucura. Mas, quando se veem as coisas com um pouco mais de atenção, dá para perceber muito bem que existe um método nessa loucura.

A “bala perdida” vem da mesma matriz onde se fabrica a linguagem politicamente correta, no Brasil de hoje, para tratar da questão do crime. Tome cuidado: utilizar um vocabulário diferente pode fazer de você um “fascista”, “direitista”, “golpista”, a favor da “ditadura militar” e sabe-se lá quantos pecados mais. Nessa linguagem o criminoso é sempre descrito como “suspeito”, mesmo que seja pego em flagrante assaltando alguém no meio da rua. Quando a polícia atira contra aqueles que estão de arma na mão em público, ou atirando contra ela, os delinquentes nunca são chamados de bandidos — são “rapazes”, “moradores” ou “pessoas”. Por exemplo: “A PM atirou ontem contra um grupo de rapazes no Complexo da Maré”. Nunca acontecem tiroteios entre quadrilhas de marginais; são “disputas entre facções”. Estão em vigor, também, regras bem claras para estabelecer diferenças morais entre militares e criminosos quando ambos praticam um mesmo ato; basicamente, para quem não quer correr o risco de parecer um extremista de direita, o mais seguro é dizer que a conduta dos militares é do mal e a dos bandidos é do bem, ou neutra.

Quando delinquentes armados invadem uma casa da favela, obrigando seus moradores a escondê-los da polícia durante tanto tempo quanto quiserem, os defensores dos direitos da “comunidade” não abrem a boca. Também não dizem nada quando cidadãos inocentes são forçados a ocultar armas ou drogas em sua residência. Quando o Exército faz uma revista domiciliar, a coisa muda: aí é uma violência contra a privacidade da população. Há grande preocupação da Ordem dos Advogados etc. com o fato de que os militares pedem e fotografam documentos de identidade, na tentativa de localizar foragidos da Justiça. Os bandidos sabem mais sobre os moradores dos morros do que o Exército, a polícia e a Justiça jamais saberão; sabem seus nomes e sobrenomes, endereço, ocupação, família, quanto dinheiro têm, quando devem pagar pela eletricidade, gás ou televisão a cabo, e mais tudo o que queiram saber. Não há lembrança de que isso tenha causado algum dia qualquer protesto por parte dos seus protetores nas classes intelectuais.

É “assim mesmo”, dizem eles — como a bala perdida.

Lucro não é desonra nem pecado

 MAÍLSON DA NÓBREGA
REVISTA VEJA

Ele promove a inovação, o investimento e a prosperidade

A partir do século XIX, a revolução científica e o Iluminismo foram decisivos para a prosperidade, ao criarem o ambiente favorável à inovação e ao investimento. Empreendedores podiam assumir riscos e aproveitar oportunidades apoiados na previsibilidade e na segurança jurídica resultantes de instituições que garantiam direitos de propriedade e respeito a contratos.

Douglass North provou que as instituições têm papel essencial no desenvolvimento. Vários pesquisadores ganharam o Prêmio Nobel de Economia por estudos realizados nesse campo, a começar por North, laureado em 1993.

North defendeu sua teoria no livro Institutions, Institutional Change and Economic Performance (1990), um dos mais citados na literatura econômica. Em Understanding the Process of Economic Change (2005), ele assinalou que “as crenças determinam as escolhas dos seres humanos” e os induzem a aprender, a evoluir culturalmente e a contribuir para mudanças institucionais.

No Brasil, novas crenças plasmaram avanços institucionais. Abandonamos ideias equivocadas que legaram atraso econômico, social e político. Por exemplo, nos anos 1980 deixamos de acreditar que a inflação contribui para o desenvolvimento, uma crença que nos levou à hiperinflação. Agora, valorizamos a estabilidade e rejeitamos governos lenientes com a inflação (Dilma que o diga).

Depois, percebemos que o crescimento econômico não é a única via para reduzir a pobreza. O Estado tem papel irrecusável, inclusive no combate às desigualdades. O Bolsa Família e outros programas sociais são fruto da nova realidade.

Hoje, a rejeição à ideia de que a corrupção seria inerente ao sistema político tornou esse flagelo a nossa maior preocupação, segundo o Datafolha. Daí vêm o apoio à Lava-Jato e a quase impossibilidade de sua reversão.

Ainda não surgiu, todavia, a crença que atribui ao lucro papel relevante no desenvolvimento econômico. O Datafolha revelou que 70% dos brasileiros se opõem à privatização. A ojeriza ao lucro privado pode explicar muito dessa rejeição.

Foi na Inglaterra do século XVIII que a atividade econômica deixou de ser vista como desprezível e desonrosa, como era comum na Idade Média. A aceitação do lucro foi a consequência natural da mudança. Vários pensadores elaboraram teorias nessa área, mas poucos se igualam ao escocês Adam Smith em sua obra A Riqueza das Nações (1776).

Smith sustentou que o lucro é a base do aumento da riqueza. Na opinião de Yuval Harari, autor de Sapiens (2014), essa foi “uma das ideias mais revolucionárias na história humana”. O comércio e a indústria floresceram. Uma inédita prosperidade surgiu onde vicejou o sistema capitalista.

Essa mudança mental é crucial para que possamos materializar o imenso potencial do Brasil. Há que educar os brasileiros, desde muito cedo, a não demonizar o lucro. Quando disso a maioria se convencer, crescerá o apoio a reformas, à competição e à privatização. Seremos um país mais próspero.

O ÚNICO MAL ABSOLUTO

Olavo de Carvalho. Artigo publicado em 05.03.2018


Norman Cohn, em "The Pursuit of the Millenium", assinala uma característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da possibilidade de pecar. "Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir, roubar ou fornicar sem problemas de consciência."

A continuidade essencial da visão gnóstica do mundo nas ideologias messiânicas modernas — nazismo, fascismo, socialismo — é um dado histórico bem estabelecido pelos estudos de Cohn, Voegelin, Billington e tantos outros pioneiros que desbravaram o assunto desde a década de 30. É verdade que esses estudos continuam quase desconhecidos do nosso "establishment" universitário. Mas, quer o saiba ou não a elite intelectual de Catolé do Rocha, o fato é este: uma linha de sucessão perfeitamente nítida vem das heresias medievais aos revolucionários de 1789, a Marx, a Sorel, a Gramsci e a todos os seus sucessores na missão auto-atribuída de "transformar o mundo".

Ao longo dessa linha, a crença na própria impecância essencial, derivada da certeza de união íntima a Deus, ao sentido da História, aos ideais eternos de justiça e liberdade ou a qualquer outra autoridade legitimadora transcendente — pois esta varia conforme a moda cultural, sem mudar de função — é que lhes infunde, geração após geração, um sentimento perfeitamente sincero de honradez e santidade no instante mesmo em que mergulham no mais fundo da abominação e do crime.

Não se trata de vulgar hipocrisia, mas de uma efetiva ruptura da consciência, que, elevando a alturas inatingivelmente divinas as virtudes da sociedade futura que o indivíduo acredita representar desde já, o torna "ipso facto" incapaz de julgar suas próprias ações à luz da moralidade comum, ao mesmo tempo que o investe, a seus próprios olhos, da máxima autoridade moral para condenar os pecados do mundo. Eis como as mais baixas condutas podem coincidir com as mais altas alegações de nobreza e santidade.

Foi com perfeita sensação de idoneidade que, após o fim da II Guerra, os marxistas continuaram discursando retroativamente contra a tirania e o genocídio nazistas, ao mesmo tempo que superavam rapidamente esses seus antigos concorrentes na prática da tirania e do genocídio.

Nas democracias, qualquer político vulgar flagrado em delito menor perde a pose, entra em crise depressiva e faz deplorável figura ante o olhar da multidão. É que não se imunizou previamente, por imersão nas águas lustrais da autobeatificação ideológica, contra o sentimento de culpa. Acossado pelas denúncias, ouve brotar desde dentro o clamor da sua própria consciência moral que, longamente reprimida, retorna das sombras para condená-lo, justamente no momento em que ele mais precisaria reunir suas forças para defender-se dos adversários externos. Então ele vacila e cai. Foi assim que caiu Nixon. Foi assim que caiu Collor.

Já o revolucionário, o militante, o malfeitor ideológico, quando exposto às provas inumeráveis de seus crimes sangrentos e inumanos, se sente revigorado, fortalecido, enaltecido. Pois esses crimes, para ele, não são crimes: são sinais da bondade futura. Só assim se explica que homens que, por onde quer que tenham subido ao poder, só espalharam morte, miséria e sofrimentos incomparáveis, como fizeram no Leste Europeu, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte, no Camboja e em Cuba, ainda se sintam com autoridade bastante para verberar os pecados das democracias capitalistas, como se estas não tivessem provado mil e uma vezes sua capacidade de corrigir-se a si mesmas e se encontrassem urgentemente necessitadas dos conselhos morais de revolucionários, narcoguerrilheiros e genocidas.

Não é necessário dizer que essa autodivinização, que preserva da consciência dos próprios pecados o apóstolo do "mundo melhor", corresponde literalmente à total rendição da alma ao pior dos pecados: a soberba demoníaca. "Todos os pecados se apegam ao mal, para que se realize", dizia Sto Agostinho: "Só a soberba se apega ao bem, para que pereça."

A destruição do bem por parasitagem interna é mais eficiente do que a simples acumulação de males. Reduzido a pretexto legitimador da violência, da crueldade e da desordem revolucionárias, o bem acaba por se identificar com elas, e qualquer tentativa de lhes opor resistência é que se torna um pecado nefando. Quando o encargo de julgar moralmente a sociedade recai precisamente sobre aqueles indivíduos que se tornaram os mais incapazes de julgar-se a si mesmos, o resultado é esse: uma moral invertida, uma antimoral de perversos e celerados afirma-se com a intransigência de um neomoralismo mais rígido e intolerante do que todos os moralismos conhecidos. Hoje em dia, em círculos letrados, já ninguém pode falar contra o consumo de drogas, contra a libertinagem, contra o aborto em massa ou contra certas formas de banditismo sem ver-se cercado de olhares de reprovação, como se tivesse dito algo de indecente.

Confundindo, rebaixando e prostituindo os padrões de julgamento, a simples presença, na vida intelectual e política, de um número suficiente de homens imbuídos dessa religiosidade às avessas já é um poderoso fator de deterioração moral da sociedade, inibindo a ação repressiva e infundindo nos delinqüentes uma autoconfiança ilimitada.

No fim, nada mais haverá a alegar contra um assalto, um homicídio, um estupro, exceto que, eventualmente, lhe faltou o devido "nihil obstat" ideológico. Tal é, por exemplo, o raciocínio do deputado Walter Pinheiro, líder do PT na Câmara Federal, ao pronunciar-se contra os seqüestradores de Washington Olivetto: "Eles seqüestram, torturam por dinheiro, não têm ética. Não são guerrilheiros, são bandidos." Que é que isso significa, senão que seqüestrar, torturar e matar em nome das crenças do deputado, à maneira de um Fidel Castro ou de um Pol-Pot, faria, dos delinqüentes, lindos exemplos de moral superior? E notem não há aí a simples diferença do "crime comum" para o "crime político". Pinochet também não matou por dinheiro. Matou por política, mas isto não basta para beatificá-lo aos olhos do deputado. Não é qualquer motivo político que serve. A esquerda tem, hoje como nos tempos de Stálin, não apenas o monopólio da licença para delinqüir, mas o monopólio do crime bondoso. Seqüestros, torturas, homicídios não são maus nem bons em si mesmos. São relativos. O único crime, o único pecado, o único mal absoluto, é estar contra o partido de S. Excia. Daí que sua correligionária, Heloísa Helena, se mostre menos indignada com a maré montante da criminalidade do que com a simples tentativa de investigar as ligações, mais que prováveis, entre seqüestros, narcotráfico e revolução continental. Crimes podem ser condenáveis ou louváveis, conforme a gradação de pureza de seus pretextos ideológicos. A investigação é má em absoluto, porque é coisa "da direita".

*Publicado originalmente em O Globo, 9 de fevereiro de 2002
** Publicado, também em http://www.olavodecarvalho.org/o-unico-mal-absoluto/
***Leia-o, também, em “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” Ed. Record.

A realidade e os mitos das contas externas

AFFONSO CELSO PASTORE
ESTADÃO - 04/03

É pena que ideias erradas continuem sendo debatidas como se fossem verdades

Apesar das dificuldades na aprovação das reformas fiscais impopulares, como a da Previdência, o País entrou em uma recuperação cíclica que, na minha interpretação, é a consequência da execução competente da política monetária e do sucesso na aprovação de algumas reformas, como o teto de gastos e a trabalhista.

Entretanto, discordo da interpretação de que o segredo da continuidade da recuperação está nos elevados superávits comerciais, que em 2017 atingiram US$ 67 bilhões. Em parte, apenas, isto se deve a um crescimento das exportações, induzido pela aceleração do crescimento mundial e pelo bom comportamento dos preços de commodities. O grosso daquela elevação se deve ao desabamento das importações, que caíram perto de 40% entre o pico, no biênio 2013/14, e o vale, no biênio 2016/17. 

Por que as importações desabaram? Há muito que venho chamando a atenção para a extrema dependência, no Brasil, dos investimentos em capital fixo com relação às importações totais, e não apenas às importações de máquinas e equipamentos. Quem tiver dúvidas é convidado a comparar as séries de importações e da formação bruta de capital fixo publicadas nas contas nacionais, e descobrirá que ambas caminham muito próximas. Com o auxílio de técnicas econométricas simples descobrirá, também, que os movimentos da formação bruta de capital fixo precedem no tempo os movimentos das importações.

A primeira conclusão é que, a menos que os efeitos ocorressem antes das causas, o desabamento das importações é uma consequência da forte queda da formação bruta de capital fixo. A segunda é que os elevados superávits comerciais são uma manifestação da doença que nos levou a uma profunda recessão, seguida de uma recuperação que é firme, mas ainda é lenta. 

Quando o ciclo de reformas tiver levado à queda de riscos e à sustentação da taxa real de juros em níveis baixos, assistiremos a uma recuperação da formação bruta de capital fixo e a um aumento de importações, com menores superávits ou mesmo déficits na balança comercial, e o aumento dos déficits nas contas correntes. Porém, tal comportamento não é reflexo de uma doença, e sim uma manifestação da saúde da economia, que voltou a crescer. Ao contrário de países nos quais as poupanças domésticas excedem os investimentos, gerando superávits nas contas correntes (como na China), tornando-se exportadores de capitais, o crescimento brasileiro ocorre ao lado de déficits que o obrigam a ser um importador de capitais. 

Neste ponto vale a pena uma incursão no campo do balanço de pagamentos. Contrariando um comportamento que se manteve desde o início do regime de metas de inflação até o início de 2012, nestes últimos anos o Banco Central saiu totalmente do mercado à vista de câmbio, restringindo suas intervenções apenas ao mercado futuro. Tal procedimento também interfere com a taxa cambial, mas ao sair do mercado à vista gera uma situação na qual o balanço de pagamentos tem, forçosamente, que oscilar em torno do equilíbrio. 

Quem duvidar desta proposição é convidado a tomar os dados publicados pelo Banco Central e comparar duas séries: os saldos nas contas correntes e os saldos nas contas financeira e de capitais (que incluem os investimentos diretos e os investimentos em carteira). Ficará evidente que as saídas líquidas (os déficits nas contas correntes) são quase que integralmente compensados pelas entradas líquidas (os superávits nas contas financeira e de capital), com o balanço de pagamentos gravitando em torno do equilíbrio.

Se no futuro uma escalada nos investimentos em capital fixo levar a um forte aumento no déficit nas contas correntes, ocorrendo ao lado de uma baixa entrada de capitais, o real tenderá a se depreciar, ocorrendo o inverso se os ingressos de capitais superarem o déficit nas contas correntes. O argumento que nunca foi entendido pelos proponentes dos controles de capitais é que são estes ingressos que permitem financiar déficits elevados nas contas correntes, sem os quais a taxa de investimentos não poderia se elevar, acelerando o crescimento. 

É pena que ideias erradas continuem sendo debatidas como se fossem verdades. 

É EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE NO PRIMEIRO DOMINGO DO MÊS

Afinal, juro baixo para o cidadão?

JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
ESTADÃO - 04/03

Estamos diante de um movimento de ruptura que não deve ser subestimado

A inflação continua surpreendendo positivamente. Projetamos agora 3,6% para o IPCA deste ano e 6,5% para a taxa Selic, do Banco Central. Isso resulta da ausência de choques de oferta no horizonte (energia, preços agrícolas e petróleo), bem como da constatação de que os mecanismos de realimentação da inflação estão muito enfraquecidos. A inércia da inflação também pode ser positiva. Corremos mesmo o risco de três anos consecutivos com inflação inferior a 4%. 

Isso é algo que jamais aconteceu na história moderna do Brasil, o que não é pouco. Especialmente porque será um resultado obtido com preços livres, sem congelamentos, controles de câmbio nem outras intervenções. 

O mais relevante dessa situação é a oportunidade de baixarmos muito as taxas de juro, desde que um reformista ganhe a eleição presidencial. Com a realização de reformas fiscais no início do próximo governo e com a herança da inflação baixa será possível reduzir a taxa de equilíbrio, permitindo que o crédito cresça de forma significativa. 

Entretanto, temos a oportunidade de começar a ver reduções importantes nos “spreads” bancários e nas taxas de empréstimo ainda neste ano, devido a duas razões adicionais. Primeira: o Banco Central tem uma importante agenda de revisão regulatória, que passa por diminuição de compulsórios, regulação da operação de cartões de crédito e o estímulo à ampliação da concorrência no mercado. 

Segunda razão: assistimos a um crescimento vertiginoso das empresas financeiras de base tecnológica, o que vai pressionar bastante o “spread” bancário no crédito de pessoas físicas, elevando a competição com os grandes bancos. Um levantamento de novembro do ano passado, feito pelo FintechLab, encontrou 332 instituições, das quais 58 se dedicavam a créditos e empréstimos, e esse número continua a crescer. 

Consideremos, além disso, os seguintes pontos:

– As grandes plataformas digitais, em várias partes do mundo, começaram a realizar empréstimos a pessoas e empresas. Um exemplo é a Amazon no mercado americano. No Brasil, o site Mercado Livre começa a financiar vendedores. 

– As cooperativas de crédito vêm crescendo enormemente. Se as consolidarmos como se fossem uma única instituição, já seriam o sétimo banco no País. Quando a regulamentação de empréstimos de pessoa para pessoa (“peer-to-peer”) vier a público, essas instituições poderão dar um salto enorme, dada a sua estrutura associativa. Nesse caso, as taxas de aplicação serão muito mais baixas do que as do mercado atual, sem detrimento de uma boa remuneração para o poupador. 

– Conselho Monetário Nacional (CMN) aprovou uma resolução que facilita a transferência automática da conta salário para contas digitais de serviços financeiros que não são oferecidos por instituições bancárias, permitindo o pagamento de contas e de outras operações sem custos ou com tarifas muito baixas. 

– Um exemplo recente dessa movimentação está no acordo realizado entre a BV Financeira e o GuiaBolso, uma bem-sucedida plataforma que nasceu para auxiliar as pessoas a organizar a vida financeira, mas que passou a incluir, mais recentemente, assessoramento de investimentos. A grande vantagem é que os milhões de usuários do GuiaBolso têm suas informações corretas (afinal, são da própria pessoa) e permitem algoritmos de avaliação de risco muito mais precisos.

– A permissão de pessoas e empresas para que seus dados possam ser partilhados e utilizados é uma enorme novidade, que certamente trará grande repercussão no mercado de crédito. 

Alguém poderá dizer que esses movimentos ainda são muito pequenos para afetar o mercado de empréstimos bancários. Entretanto, não tenho dúvida de que estamos diante de um movimento de ruptura que não deve ser subestimado. A velocidade do avanço tem sido notável. 

* É ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS.

Fugir do caos

LYA LUFT
ZERO HORA - RS - 04/03

Lendo um livro que me emociona, do pensador canadense professor Jordan Peterson: 12 Rules for Life, An Antidote for Chaos. Parece que está por ser publicado no Brasil. Corram e leiam! Não é autoajuda, apesar do título, que talvez nos induza ao erro. É um ensaio muito agradável de se ler, misturando filosofia, mitologia, psicologia, antropologia, política: revoluciona um pouco o conceito de democracia e liberdade, quando beiram a bagunça e o caos.

Naturalmente, não o resumirei aqui, mas comento algumas de suas ideias de que compartilho inteiramente. Uma delas, o conceito ilusório de liberdade como aquela cenoura na frente do jumento para que ele ande. Liberdade como penso que deve ser, que nos faz crescer, conviver, eventualmente progredir, construir e atingir certo grau disso que chamamos "felicidade", num meio-termo entre o caos e a rigidez.

Rigidez, jamais. Nem mesmo a rígida ideia de liberdade como ausência de regras, de disciplina, de concessões, de limitações. O ser humano, como os outros animais, necessita de regras e ordem. Não para se punir ou mutilar, mas para que veja alguma luz, enxergue algum caminho, e se sinta bem progredindo enquanto ser humano.

No começo de minha carreira, traduzi um livro de uma psicóloga americana (esqueci, nesse longo tempo, nome e título) sobre crianças criadas praticamente sem limites. Um menininho tanto atormentou a mãe, que certa vez ela lhe deu uma palmada no traseiro. Para horror de certos educadores ultramodernos, o menino suspirou aliviado, abraçou a mãe e disse algo como "até que enfim você prestou atenção em mim". Sem limites, sem regras, seremos piores do que os animais selvagens, que se guiam pelo instinto. 

Nós, que tanto falamos em natureza, andamos bem longe dela, nossos instintos se embotaram, e nem todos servem para conviver no mundo moderno: matar, devorar o outro que nos incomoda, não são atividades que se prezem. No fundo de cada um de nós, sobrevive um predador atávico, que precisa de algumas regras para poder criar sua personalidade, sua vida, seu mundo. Este mundo, em que se possa viver em paz. O caos conduz ao caos, provoca profunda angústia, causa destruição e morte, e eventualmente loucura. E não me refiro a um mítico caos total, mas a um nível preocupante de desordem, violência, agressividade, zero empatia.

Então, como tantas vezes nesses anos todos escrevendo em revista ou jornal, ou falando nas palestras, que hoje raramente aceito, repito aqui, incansável e convicta: tudo começa em casa. A educação, a formação, as bases de uma vida feliz, conforme o sonho ou a possibilidade de cada um. 

Viver decentemente, conquistar algumas coisas positivas, sentir-se bem na própria pele exige que se fuja do caos, que pode parecer interessante para alguns visionários ou ideólogos obstinados, mas é feio, burro, e pobre. E se não recebermos desde pequenos algum senso de ordem, regras, conceitos de vida, passaremos o resto da nossa lutando talvez de maneira inglória para não sermos selvagens detestados ou temidos.

Assim que o livro do doutor Peterson sair no Brasil (ou pela Amazon para quem lê no idioma original), procurem por ele: faz bem à alma, abre a cabeça, e de certa forma conforta saber que nós, que apreciamos alguma ordem, não estamos sozinhos.

Estado e segurança

DENIS LERRER ROSENFIELD
ESTADÃO - 05/03

O Rio de Janeiro está se esfacelando. Em face de situação de emergência, solução emergencial

Algumas obviedades costumam escapar do senso comum brasileiro, sobretudo quando enviesadas ideologicamente. A segurança, tão cara a qualquer pessoa, é vista – melhor dizendo, encoberta – do prisma de uma oposição entre direita e esquerda, como se se tratasse de assunto da primeira. Imaginem uma pessoa acossada por um criminoso diante de uma opção ideológica quando se debate entre a vida e a morte. Não faz nenhum sentido.

Convém, preliminarmente, relembrar o óbvio. É função primordial do Estado assegurar a integridade física dos cidadãos e de sua família, assim como de seus bens. Se renunciam à autodefesa no uso indiscriminado da violência, é para que dela sejam resguardados. Não deveriam viver sob o medo, como hoje é na maioria das cidades, onde as pessoas nem mais podem caminhar livremente pela rua. Sair de casa, quando não nela permanecer, sem nenhuma arma tornou-se, para o cidadão indefeso, atividade de risco. Uma situação desse tipo é inaceitável, mas é a expressão da anormalidade atual.

E quando falamos de Estado devemos ter presente que não se trata apenas da União, mas do conjunto do aparelho estatal, com seus Estados e municípios, assim como os diferentes ramos do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo. O País não pode mais viver esquartejado em diferentes competências isoladas, como se cada uma constituísse um território à parte, desvinculado dos demais. Observa-se nas últimas décadas uma transferência de responsabilidades, abandonando o cidadão à própria sorte.

O Rio de Janeiro é um caso emblemático, embora não seja o único, nem talvez o mais importante do ponto de vista das estatísticas. O que o caracteriza é ser a antiga capital do País, ainda funcionando como uma caixa de ressonância nacional. Mais particularmente, a atividade criminosa lá não se fez apenas fora do aparelho estatal, mas terminou por impregná-lo diretamente. Políticos estaduais estão presos, seu maior símbolo é o ex-governador que tornou sistemática a corrupção, sem sequer se preocupar com as aparências.

Territórios completos foram deixados à criminalidade e ao narcotráfico, atestando a existência de uma espécie de sem-Estado dentro do Estado, enquanto este apenas mantinha a aparência de normalidade institucional. Em tal contexto surgiu uma completa anomalia, embora, ressalte-se, seja ela fruto da soberania popular, isto é, os governantes corruptos foram eleitos em processo de livre escolha. Isso significa que cariocas e fluminenses são responsáveis pela situação que atualmente vivem.

Nesse sentido, deveriam arcar, com impostos próprios, com os gastos da uma intervenção federal, pois se pode considerar inapropriado que contribuintes de outros Estados paguem os custos de uma escolha eleitoral feita à sua revelia. O caixa nacional não é do governo federal, é abastecido com impostos e contribuições pagos por todos os brasileiros.

O governo Temer, ao decidir pela intervenção, chamou a si uma responsabilidade que, em termos de distribuição de competências federativas, não era dele, mas dos Estados. Pode-se discutir a oportunidade da intervenção, pois deixou para trás uma reforma vital para o País como é a da Previdência, dando ensejo à percepção de que haveria propósito eleitoral nessa iniciativa. O fundamental, no entanto, reside em que a situação do Rio foi percebida como crucial, na medida em que a violência apareceu midiaticamente como insuportável, apesar de vicejar há muito tempo. O presidente, responsavelmente, visou o restabelecimento da autoridade, pilar de sustentação do Estado. Outros presidentes se omitiram.

As Forças Armadas foram chamadas a cumprir essa missão, com o protagonismo sendo atribuído ao Exército. Nada mais natural, considerando o fato de as polícias do Rio não estarem mais cumprindo essa função. O Estado estava – e está – se esfacelando. Os militares gozam de alto prestígio entre a população e são reconhecidos por sua moralidade, honestidade e dedicação à Pátria. Em situações de emergência, soluções emergenciais.

O viés ideológico esquerdizante, porém, começou novamente a funcionar. Fala-se de intervenção militar, quando ela é federal, seguindo os preceitos constitucionais. Fala-se – incrivelmente, diria – da necessidade de acompanhamento das atividades das Forças Armadas pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público, por diferentes comissões, e assim por diante. Disparate total. É como se potenciais criminosos uniformizados estivessem à solta, sob a máscara da captura de criminosos; como se os militares fossem o problema, e não uma parte essencial da solução. O que preferem? A continuidade da anarquia e a perpetuação da violência sob a demagogia de defesa dos favelados, quando estes são, na verdade, reféns do crime?

Alguns casos são emblemáticos. Foi amplamente divulgada uma série de fotos retratando soldados averiguando a identidade de moradores dos morros. Toda uma celeuma se criou, como se estivessem fichando inocentes tidos por criminosos. Tratou-se de mera identificação digitalizada, online, para averiguar a existência ou não de problemas com essas pessoas.

Nada muito diferente da identificação em prédios públicos ou empresas privadas. Em qualquer repartição do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Púbico há processos de identificação, com documentos e fotos. É corriqueiro e não se torna notícia. Ou deveríamos indignar-nos com tais procedimentos?

É inaceitável que se pretenda desqualificar o restabelecimento da autoridade estatal, atribuindo-lhe violações dos “direitos humanos” e da “democracia”. São estes que estão sendo diariamente pisoteados pelos crimes dos traficantes, dos contrabandistas e de uma parte da elite política.

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS

Tirar governadores não resolve

 RAUL VELLOSO
O GLOBO - 05/03
A eles resta orçamento residual mínimo para bancar conta, mais as importantes áreas de infraestrutura e segurança, pela qual são os únicos responsáveis


Se compararmos os resultados fiscais estaduais acumulados em 2015-17 com os relativos aos mandatos precedentes (2011-14), conforme balanços recém-divulgados, os números chocam. Um superávit total de R$ 11 bilhões, na fase precedente, se transformou num déficit de não menos que R$ 35 bilhões, ou seja, uma virada, para pior, de R$ 46 bilhões, cerca de 5,3% da receita estadual de 2011. Assim, ao esconderem seguidos e expressivos atrasos de pagamento não capturados como despesa, os sucessivos superávits divulgados pelo Banco Central para os governos estaduais não espelham o drama vivido por aqueles entes.

Nesses, apenas dez estados viraram para melhor. O maior destaque foi de Alagoas, com uma virada positiva de não menos que 14,7% da receita de 2017. Os demais estados em boa situação de virada foram Espírito Santo (12%); Rondônia (10,7%); Maranhão (8,2%); Mato Grosso do Sul (4,4%); Ceará (4,3%); Piauí (3,3%); Paraná (2%); Amapá (1,7%); e São Paulo (0,4%).

Já nos demais 17 estados as cinco piores viradas foram as de Roraima, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia.

Ou seja, a crise estadual se generalizou e teve grande impacto. Além disso, muitos problemas — tais como despesas engavetadas e caixas “negativos” — vieram transferidos dos mandatos precedentes.

Chamo a atenção dos leitores que boa parte dessa crise se deve à mais longa e profunda recessão de nossa história, cuja duração, para azar dos titulares estaduais, deverá coincidir majoritariamente com os respectivos mandatos. Há não só a queda de receita, como a assunção de serviços que antes eram prestados pelo setor privado e se tornaram impossíveis de serem bancados por pessoas agora desempregadas.

No caso mais dramático do Rio, houve ainda o efeito devastador da desabada do preço externo do petróleo. Primeiro, porque praticamente zerou sua super-relevante receita de royalties; segundo, por ter sofrido mais com a recessão, em decorrência de sua atividade econômica altamente concentrada na cadeia de óleo e gás.

Para os que não herdaram caixas relevantes das administrações anteriores, fica a gigantesca e praticamente impossível tarefa de compensar os déficits acumulados até agora, apenas em 2018, último ano dos atuais mandatos, com superávits equivalentes. Quem não fizer isso será punido fortemente pelas leis em vigor.

Se precisar compensar os déficits acumulados em 2015-17, o plano de recuperação que o governador do Rio conseguiu a duras penas aprovar no Congresso — com quórum de mudança constitucional e contra a vontade da maioria de sua bancada estadual e das autoridades fazendárias — terá de ser capaz de gerar um excedente de R$ 20 bilhões este ano, num país abalado por brutal recessão e outras mazelas. No caso de Minas, que não assinou o mesmo acordo, a conta equivalente mostra que o superávit de 2018 teria de ser ao redor de R$ 13 bilhões, tarefas essas de muito difícil realização. E qualquer frustração das políticas listadas no plano do Rio exige compensação por outras medidas, onde quase não há margem de manobra.

E isso sem falar que, por trás do quadro aqui descrito, está o crescente e hoje muito elevado déficit das previdências estaduais, que sufocam os dirigentes estaduais além do que seria imaginável, pois judiciários, legislativos, ministérios públicos, defensorias públicas, e as áreas de educação e saúde resistem a pagar qualquer parcela dessa despesa. Assim, aos governadores resta um orçamento residual mínimo para bancar essa conta, mais as importantes áreas de infraestrutura e segurança pública (pela qual são os únicos responsáveis). Não é à toa o estado crítico dessas duas.

A propósito, acabo de apurar com Leonardo Rolim que o custo das previdências estaduais para o total dos entes passou de 17% para 22% de suas receitas correntes líquidas de 2015 a 2017. Os casos mais dramáticos, no ano passado, foram os do Rio Grande do Sul, com 43%; de Minas e Rio Grande do Norte, com 38%; Pernambuco, 29%; e Rio, 28%.

Para ser mais realista, essa comparação deveria adicionar aos gastos com previdência as parcelas abocanhadas pelas áreas privilegiadas no Orçamento anteriormente indicadas. Nesse caso, com base em dados de 2016 para o Rio, a marca de 28% passaria para nada menos que 71% da mesma receita.

Em síntese, não se trata de escolher bodes expiatórios, mas adotar a solução correta. Trata-se da criação dos fundos de pensão, que venho propondo há mais de um ano, e que atende simultaneamente ao problema de curtíssimo prazo (compensar déficits acumulados em 2018) e o buraco de prazo mais longo, obviamente com a ajuda de uma reforma das regras da Previdência focada no segmento público.

Raul Velloso é economista

O curso do “golpe” e a função da universidade


GAZETA DO POVO-PR - 05/03

Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado

Doutrinação político-partidária de esquerda não é novidade na universidade brasileira (e nem nos ensinos fundamental e médio) há muito tempo. Mas nos últimos dias alguns professores perderam todo e qualquer pudor. Os alunos do curso de graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) terão à disposição, neste primeiro semestre de 2018, a disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” – o “golpe”, no caso, não poderia ser referência a outra coisa que não o impeachment de Dilma Rousseff.

A ementa é explícita, citando como objetivos do curso “entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio e agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff; Analisar o governo presidido por Michel Temer e investigar o que sua agenda de retrocesso nos direitos e restrição às liberdades diz sobre a relação entre as desigualdades sociais e o sistema político no Brasil; Perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da resistência popular e de restabelecimento do Estado de Direito e da democracia política no Brasil”. A bibliografia é praticamente toda formada por autores de esquerda, e a avaliação será feita por meio de quatro trabalhos que “deverão incorporar as leituras indicadas para cada unidade”.

A disciplina oferecida na UnB não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes

Ainda que se argumente que a disciplina é optativa – ou seja, não é necessário cursá-la para conseguir concluir o curso –, ela é a pura e simples difusão de um viés político-partidário. Não há preocupação em entender quais são as bases legais do impeachment, a legislação envolvida, os atos cometidos por Dilma Rousseff e considerados crime de responsabilidade; parte-se do pressuposto de que houve um “golpe”, uma “ruptura democrática” seguida pela instalação de um “governo ilegítimo”, e as visões divergentes nem sequer são apresentadas. Ora, isso não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes, até porque o curso se propõe a avaliar as “possibilidades de reforço da resistência popular”. É a negação do verdadeiro papel da universidade, de promover o embate de ideias em busca da verdade. É necessário questionar que nota um aluno receberá se, nos trabalhos, “incorporar as leituras indicadas” e for capaz de rebater os argumentos ali apresentados, com conclusões que batam de frente com as premissas do curso. Por mais que o programa afirme que “a avaliação dos trabalhos vai levar em conta (...) a visão crítica, a capacidade de realizar conexões com a realidade, o desenvolvimento de ideias próprias”, é fundado acreditar que nem toda “visão crítica” ou “ideia própria” será bem recebida no curso.

Que isso ocorra em uma universidade pública, bancada pelo contribuinte – e não apenas na UnB, pois outras universidades já anunciaram cursos semelhantes; na Universidade Federal da Bahia, a disciplina integrará o curso de História e tem a mesma ementa daquela oferecida na UnB –, é ainda mais triste. Não à toa a divulgação do curso chamou a atenção do ministro da Educação, Mendonça Filho. E ele tem toda a razão quando afirma, em nota divulgada pelo MEC, que “a ementa da disciplina traz indicativos claros de uso de toda uma estrutura acadêmica, custeada por todos os brasileiros com recursos públicos, para benefício político e ideológico de determinado segmento partidário, citando, inclusive, nominalmente o PT”, e que a universidade adota “uma prática de apropriação do bem público para promoção de pensamentos político-partidários”. Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado.

No entanto, se a indignação do ministro é humanamente compreensível, as medidas que adotou, acionando vários órgãos, incluindo a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal, para apurar se houve improbidade administrativa, são claramente incompatíveis com o princípio da autonomia universitária, consagrado no artigo 207 da Carta Magna. Pedir – e, eventualmente, obter – o fechamento de cursos única e exclusivamente por seu conteúdo choca-se com a liberdade que deve caracterizar o ambiente universitário. É bem verdade, e isso não pode ser ignorado, que, na hipótese contrária, a de um curso que defendesse explicitamente ideias mais à direita do espectro econômico-político, como, por exemplo, “a agenda reformista de Temer e seu papel crucial para a modernização do Brasil”, certamente toda a comunidade acadêmica e setores da imprensa estariam clamando, indignados, pelo seu cancelamento, no típico duplipensar que endossaria a atitude que agora condenam. E estariam da mesma forma equivocados, contrariando o mesmo princípio da autonomia universitária, se esse pedido se desse através dos meios que supõem o uso do poder coativo do Estado.

Isso nos remete a um ponto crucial nesse enfrentamento cultural (algo válido para muitas outras situações que guardam com ela alguma analogia): sua solução não pode estar entregue às instâncias estatais; são os próprios indivíduos e comunidades que, dentro de suas prerrogativas e liberdades, devem “combatê-las”, sempre com o máximo respeito pelas prerrogativas e liberdades dos demais. A comunidade acadêmica tem diante de si a tarefa de zelar para que a universidade mantenha seu caráter de centro formador de conhecimento, em vez de decair a ponto de se tornar um ambiente tomado pela militância político-partidária que ignora ou despreza o contraditório e o embate de ideias. E esse cuidado para que a universidade não se desvirtue pede que professores e alunos exerçam a liberdade de repudiar tudo aquilo que destoe do objetivo da instituição. Isso exige romper a “espiral de silêncio” que se formou, ao longo de décadas, em muitos departamentos de universidades brasileiras em relação a tudo que não seja de esquerda. Sabemos que não é fácil, dado o nível do aparelhamento do ambiente universitário por uma militância que teme e rejeita essa mesma liberdade – uma mentalidade que leva até à perseguição de docentes que não se curvam ao pensamento esquerdista, como foi o caso recente de Gabriel Giannattasio, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, denunciado por colegas por ter criticado, em e-mail, uma carta aberta (a Procuradoria Jurídica da UEL decidiu que a denúncia era improcedente). As disciplinas do “golpe” mostram que ainda há um longo caminho para que a escola e a universidade voltem a ser um ambiente de autêntica liberdade intelectual, mas é uma luta que, com as armas certas, precisa ser travada.

Vedação maculada

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
ESTADÃO - 06/03

Inconstitucionalidade da investigação presidencial por atos anteriores ao mandado


Durante os trabalhos para a elaboração da Constituição de 1988, participei de audiências públicas e fui consultado, repetidas vezes, por constituintes, pelo presidente e pelo relator daquela assembleia – presidida pelo ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal (STF), na abertura –, a saber: o deputado Ulysses Guimarães e o senador Bernardo Cabral.

Saíra o País de um regime de exceção e a EC 26/86, proposta pelo presidente Sarney, objetivava permitir que a Nação voltasse a viver a plena democracia, com harmonia e independência de Poderes, enunciadas no artigo 2.º do texto resultante de quase dois anos de amplo debate entre os representantes do povo e a sociedade. Tão relevante se tornou a temática democrática que decidiram os constituintes ofertar a cada Poder ampla autonomia, sem direito à invasão de competências, e atribuindo às Forças Armadas o dever de repor a lei e a ordem – jamais rompê-las – se os Poderes em conflito solicitassem sua ação.

Pelo artigo 103, § 2.º, o Supremo Tribunal nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Congresso pode legislar. Pelo artigo 49, inciso XI, o Congresso Nacional tem a obrigação de zelar por sua competência normativa se outro Poder a invadir, e a advocacia e o Ministério Público são funções essenciais à administração da justiça, mas não são Poderes.

Por outro lado, a representação popular não existe no Poder técnico, que é o Judiciário – os ministros do STF são escolhidos por um homem só –, mas sim nos Poderes Executivo e Legislativo. Por isso os constituintes conformaram o direito da sociedade de eleger os seus membros, que são os seus verdadeiros mandatários.

Apesar de ser parlamentarista desde os bancos acadêmicos, isto é, desde a distante década de 1950, e apesar de a Constituinte ter procurado adotar tal sistema, alterado na undécima hora para o presidencial de governo, o certo é que o regime plasmado na Lei Suprema foi o de dar ao presidente da República a função maior, o topo da pirâmide governamental, com preservação de responsabilidade funcional durante o período para o qual foi conduzido. Essa é a razão pela qual o afastamento de um presidente (artigos 85 e 86 da Carta Magna) se reveste de todo um rito composto de freios e contrafreios e de garantia de defesa não extensível a todos os outros cargos da administração federal.

É que, devendo a vontade popular ser respeitada, só como exceção das exceções pode ser o presidente responsabilizado e afastado. Foi essa a origem do § 4.º do artigo 86 da Constituição federal, cuja dicção é a seguinte: “ O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.

Por nenhum ato anterior ao seu mandato um presidente da República que chegar ao cargo pelos meios permitidos pela Constituição pode ser responsabilizado, visto que o que pretendeu o constituinte preservar foi a vontade popular, pressupondo que atos anteriores deveriam ter sido examinados previamente à eleição ou ser examinados após o fim do mandato.

A não responsabilização do presidente transcende a figura do próprio presidente, pois objetiva não permitir que a condução do governo – sempre presumivelmente a favor da sociedade – seja prejudicada por atos isolados, mesmo que graves, que pudessem vir a ser, pelos reflexos na cidadania, prejudiciais à própria cidadania.

Assim é que exatamente no artigo mais grave, que diz respeito ao afastamento do presidente da República, houve por bem o constituinte afastar a hipótese de atos fora do exercício do mandato como tema de responsabilização. Nesse particular, bem agiu o ex-procurador-geral Rodrigo Janot ao não permitir que houvesse investigação do presidente no concernente à contribuição da Odebrecht a campanha eleitoral do presidente da Fiesp em São Paulo.

A reabertura, pela atual procuradora-geral da República, de tal investigação, sob a justificativa de que “investigar” não é “responsabilizar”, com aval de eminente ministro da Suprema Corte, a meu ver, representa nítida violação do Texto Supremo. Uma investigação com claro intuito de responsabilização já macula a vedação constitucional. 

Embora não tenha visto fato delituoso no episódio de contribuição à mencionada campanha – na época não era proibida a contribuição de empresas –, não entro no mérito de se ela corresponderia ou não a qualquer espécie de contrapartida (o atual presidente à época não comandava o País), visto que a questão é apenas jurídica e constitucional. Quem investiga quer responsabilizar e a responsabilização é vedada pela Lei Suprema, no § 4.º do artigo 86 da Constituição Federal. A Carta Magna não fala em ser denunciado, mas em ser responsabilizado, razão pela qual o preclaro ministro Edson Fachin não deveria ter aceitado o pedido da chefe do “parquet”.

Graças a denúncias mal elaboradas pelo antigo procurador-geral da República, rejeitadas pela Câmara dos Deputados duas vezes, o Brasil foi rebaixado três vezes pelas agências internacionais de rating, no momento em que estava o Congresso preparado para discutir algumas das mais essenciais reformas de que o nosso país necessita (a da Previdência e a tributária), pois ficou parado durante todo aquele período na expectativa da atuação congressual.

Com todo o respeito que sempre tenho pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, tenho a impressão de que o combate à corrupção – que apoio, naturalmente – não pode sobrepor-se aos textos da Lei Suprema. O excessivo protagonismo de algumas autoridades, que ultrapassam os limites permitidos pela Carta da República, está se constituindo no grande obstáculo ao desenvolvimento do Brasil, apesar de algumas sinalizações de melhoria. E, o que é pior, causando profunda insegurança jurídica, visto que de há muito os três Poderes deixaram de ser harmônicos e independentes, desde que um Poder técnico assumiu funções políticas, que a Constituição não lhe outorgou.

*PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DE DIREITO DA FECOMÉRCIO-SP

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