Ishaan Tharoor, The Washington Post Estadao.com.br 29 de outubro de 2019
O presidente da Argentina, Mauricio Macri, que já foi aclamado como salvador da pátria, acabou se tornando mais um bode espiatório para a crise econômica do país. No domingo, os argentinos elegeram em primeiro turno seu rival de centro-esquerda Alberto Fernández, que fez campanha com uma chapa populista peronista com a ex-presidente Cristina Kirchner.
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A ascensão de Fernández e Cristina refletiu uma rejeição mais ampla da plataforma de centro-direita de Macri e um desespero crescente com as crises econômicas sistêmicas do país.
"Quando Macri assumiu o cargo em dezembro de 2015, ele disse que suas reformas pró-mercado trariam crescimento econômico imediato e sólido por 20 anos", escreveu Sebastián Lacunza para o Post. "Mas no final de seu mandato de quatro anos, a pobreza aumentou cerca de 10 pontos porcentuais, a inflação anual está acima de 50% e a dívida pública é igual a 100% do PIB, à beira da inadimplência."
Macri, um rico empresário, foi aclamado no exterior quando chegou ao poder para acabar com quase uma década do governo protecionista de Cristina, sobre o qual havia denúncias de gastos elevados e corrupção.
A revista The Economist viu com alegria "o fim do populismo" no surpreende sucesso eleitoral de Macri. Um segmento de 2016 no "60 Minutes" da CBS mostrou o presidente argentino com sua filha e sua mulher, Juliana Awada, e observou que "era impossível não pensar nos Kennedys e Camelot".
Em Washington - onde a suspeita contra políticos de esquerda em países ao sul é uma tradição bipartidária e multigeracional - especialistas falaram na época sobre o declínio da esquerda latino-americana e um novo zeitgeist favorável ao mercado que reformularia a região.
E colocaram a ascensão de Macri no início de uma mudança mais ampla para a direita: em 2016, a presidente brasileira de esquerda Dilma Rousseff sofreu um impeachment e, no Peru, o ex-economista do Fundo Monetário Internacional (FMI) Pedro Pablo Kuczynski foi eleito presidente.
Em 2017, o milionário formado em Harvard, Sebastián Piñera voltou ao poder no Chile. Em 2018, o conservador colombiano educado nos EUA Iván Duque conquistou a presidência. No início deste ano, o presidente equatoriano Lenín Moreno iniciou uma grande mudança em relação às políticas intervencionistas de esquerda de seu antecessor Rafael Correa.
O atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, um nacionalista de extrema direita que atacou a esquerda da região durante sua campanha, foi empossado em janeiro, em meio a esperanças dos investidores de que afrouxasse leis e privatizasse partes do setor público brasileiro.
Mas o mapa político parece muito diferente agora, à sombra da derrota de Macri. Um escândalo de suborno forçou a renúncia de Kuczynski em 2018, que foi colocado em prisão preventiva em abril, quando os promotores preparam acusações de corrupção contra ele (e o Peru segue dominado por uma crise constitucional, depois de o atual presidente do país dissolver o Congresso dominado pela oposição, que votou pela suspensão de seu governo).
Bolsonaro teve um primeiro ano tumultuado no cargo e se vê cada vez mais isolado politicamente. O próprio Fernández rotulou o presidente brasileiro de "racista, misógino e violento" e tuitou no domingo seu apoio ao ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
No início deste mês, protestos em massa no Equador contra um pacote impopular de medidas de austeridade fizeram Moreno mudar temporariamente seu governo para longe da capital, Quito. Ele concordou em reverter sua decisão de acabar com bilhões de dólares em subsídios a combustíveis, arriscando um grande empréstimo do FMI.
Os líderes indígenas no centro do levante lançaram seu movimento como uma batalha contra o neoliberalismo, o credo econômico do laissez-faire que muitos no continente ainda associam a anos de ditaduras da época da Guerra Fria e intromissão política americana.
Cerca de um milhão de pessoas se reuniram para grande ato nas ruas de Santiago, no Chile. Protestos aconteceram na última sexta-feira, 25 Foto: Pedro Ugarte/ AFP
No Chile, os maiores protestos de uma geração viram mais de um milhão de pessoas ir às ruas de Santiago na sexta-feira. O estímulo das manifestações foi o aumento dos preços do metrô, que catalisou a raiva generalizada das profundas desigualdades na sociedade.
Os confrontos entre forças de segurança e manifestantes deixaram pelo menos 19 pessoas mortas, alimentaram agitação popular e aprofundaram as demandas dos manifestantes por mudanças no atacado. Em uma tentativa de aliviar as tensões, Piñera promulgou uma ampla remodelação de seu gabinete e prometeu um conjunto de reformas, incluindo aumentos no salário mínimo e nas aposentadorias.
Mas isso não impediu que novas manifestações assolassem as ruas da cidade na segunda-feira, com uma nova rodada de protestos prevista para esta terça-feira, 29.
A agitação do Chile levou a pedidos de um novo contrato social em uma sociedade que observadores externos há muito tempo consideram uma das mais estáveis da América Latina. Até os políticos do governo de Piñera reconhecem a necessidade de um diálogo nacional mais completo.
Alguns manifestantes dizem que a revolta é uma consequência do acerto de contas inacabado sobre o legado ditatorial do general Augusto Pinochet. "Nossa constituição hoje é a herança do neoliberalismo no Chile, que remonta a Pinochet", disse Isidora Cepeda Beccar, ativista política da capital chilena, em entrevista à publicação de esquerda Jacobin, dos EUA. "Para mudar as coisas fundamentalmente, precisamos cortar essas raízes. Precisamos criar novas regras do jogo."
Na Argentina, o levante antineoliberal veio nas urnas. Mas não está claro como Fernández - uma figura menos polarizadora que Cristina - arrastará seu país para fora do pântano. "Os eleitores tiveram que escolher entre duas falhas", disse Federico Finchelstein, historiador argentino da New School for Social Research, em Nova York, apontando o beco sem saída da abordagem de Macri e os erros de seus predecessores populistas.
Alberto Fernández
"Acabou isso de 'nós' e 'eles'", declarou Fernández pouco antes da confirmação de sua vitória no primeiro turno Foto: Ricardo Moraes / Reuters
Ricardo Kirschbaum, editor-chefe do jornal argentino Clarín, sugeriu que o novo presidente talvez precise procurar inspiração no outro lado do Atlântico.
"(Fernández) usa como sua estrela-guia o caso de Portugal: a partir de 2014, os social-democratas que governam uma coalizão com o Partido Comunista retiraram o país de uma profunda recessão, que foi igualmente induzida pelas medidas de austeridade adotadas por um governo conservador que trabalhou em conjunto com o Banco Central Europeu, o FMI e a União Europeia", escreveu Kirschbaum na revista Foreign Affairs.
"Como seu colega português, o primeiro-ministro António Costa, Fernández aconselha um afastamento da austeridade e um retorno ao protecionismo."
Aconteça o que acontecer, a estrela política de Macri parece ter perdido seu brilho. Longe de ser um pioneiro regional, ele se tornou um político radioativo no período final de sua presidência, ampliando os desafios dos governantes de direita em outros lugares.
"Na Bolívia, acredita-se que a saída de Macri fortaleça (o presidente de esquerda) Evo Morales na campanha contra Carlos Mesa, moderado de centro-direita", escreveu o cientista político brasileiro Oliver Stuenkel no Americas Quarterly na semana passada. "No Uruguai, que elege um novo presidente no final deste mês, o candidato de centro-direita Lacalle Pou procurou se distanciar de Macri."
Além disso, políticos de centro-direita moderados, como Macri, não conseguem responder aos desafios que afetam as lentas economias de seus países, marcados por uma sociedade polarizadas. Assim, sugere Stuenkel, podemos ver mais "candidatos economicamente liberais unindo forças com nacionalistas não liberais, como aconteceu no Brasil".
Mas mesmo o experimento político de Bolsonaro é frágil e pode enfrentar uma reação dura nas ruas não cumprir suas promessas econômicas. "Vamos ver até que ponto isso vai durar para Bolsonaro, que parece ser o verdadeiro herdeiro de Pinochet", disse Finchelstein. "Eventualmente, os brasileiros também podem rejeitá-lo." /
TRADUÇÃO DE MURILLO FERRARI