terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A economia de Petra

Pedro Fernando Nery* - O Estado de S.Paulo

'Democracia em Vertigem' analisa a polarização no País, sem esconder que tem um lado

Democracia em vertigem de Petra Costa foi ontem indicado ao Oscar de melhor documentário. Petra é a 1.ª diretora brasileira indicada à premiação. Se vencer em 9 de fevereiro será a 1.ª vez que o Oscar será recebido por um brasileiro. Mas desta vez haverá muita torcida contra.

Tom Jobim famosamente afirmou que no Brasil sucesso é ofensa pessoal, mas a grita contra Democracia em vertigem é de outro tipo. E é também natural: o filme se propõe a analisar a polarização no País a partir de 2013, sem esconder que tem um lado. No Twitter, a conta oficial do PSDB já ironizou o feito do filme, parabenizando Petra pela indicação na categoria “melhor ficção e fantasia”. O proeminente crítico Kenneth Turan, do Los Angeles Times, já concebera que o filme é “mais um ensaio do que um documentário clássico” (o que não impediu de tecer elogio à obra).

Esse é um filme sobre a crise política, mas é também sobre a nossa crise econômica: e essa coluna é sobre o confuso olhar de Petra na economia. Assim, não vamos discutir outras controvérsias já debatidas nos últimos meses (elas incluem dúvidas sobre o passado clandestino de seus pais; alterações deliberadas das imagens usadas; e a total omissão quanto a tentativa de assassinato do líder da corrida eleitoral, estranha em um filme sobre polarização e enfraquecimento da democracia).

De início, já há um problema factual quanto ao desemprego, consoante com a narrativa de Petra de que o governo inclusivo de Lula e, depois o de Dilma, teriam levado a um golpe (após a presidente ter enfrentado as elites econômicas). Segundo Petra “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história” na Era Lula.

Com boa vontade, pode-se dizer que a diretora se confundiu: nos governos do PT o desemprego alcança o menor índice da série histórica. Falamos em série histórica quanto à série feita com a mesma metodologia que a pesquisa corrente, o que no caso da atual começa em 2012 (a Pnad Contínua). Antes dela, a mais usada regredia só aos anos 90.

Mas tanto nos anos 80 quanto na ditadura militar se identificaram taxas de desemprego menores que as do período de Lula ou Dilma. O IBGE chegou a registrar menos de 3% no governo Sarney em outra versão da Pnad. Outras fontes registraram ainda menos na ocasião do milagre dos anos 70. O economista Rafael Baccioti fez exercícios de retropolação da Pnad Contínua e estimou resultados no mesmo sentido. Já o Censo chegou a registrar menos de 2% diversas vezes desde os anos 50. Em suma, Petra poderia ter dito “a taxa de desemprego atinge o menor índice da história desde o governo Fernando Henrique”.

O que são mesmo marcas incontestes do áureo período petista são as mínimas históricas nas taxas de pobreza e a queda na desigualdade de consumo.

Já o argumento de que o “golpe” teria sido causado porque Dilma, contrariamente a Lula, enfrentou as elites, envelheceu mal. De outro prêmio, o Jabuti, o livro do ano mostra como o 1% mais rico manteve sua altíssima participação na renda nacional durante os governos do partido.

Particularmente fora de lugar é a tese de que o impeachment seria decorrência da tentativa de Dilma de reduzir os juros. A Selic bateu sucessivas mínimas históricas desde Temer, e os bancos projetam juro real próximo de zero neste ano. Os juros transferidos pelo governo por conta da dívida pública caíram de mais de 8% do PIB no último ano de Dilma, para menos de 5% no ano passado. No caso das famílias, o governo Bolsonaro acaba de impor um teto aos juros do cheque especial.

Mas mesmo Petra não parece botar fé no argumento, e é por isso que sua visão é confusa: a crise ora foi causada pela queda nas commodities e “erros econômicos”, ora por ações conspiratórias das elites (com direito a fala de Jean Wyllys). Ora os donos do dinheiro desligaram a economia para estimular o impeachment, ora precisam do impeachment para transferir a conta da crise para os pobres.

A trama pelos juros altos também não faz sentido diante daquele que para Petra seria um dos vencedores do golpe: a Bolsa de Valores (a relação é tipicamente a contrária). O leilão recente de Libra, sem interessados, vai de encontro à versão de entrega do petróleo às multinacionais. E o fígado fala mais alto no argumento nonsense de que o mercado financeiro celebrara uma suposta flexibilização do trabalho escravo.

Mas ficamos por aqui: ninguém merece economista falando de cinema. Um documentário ainda é um filme, que provoca emoção pelas suas qualidades artísticas e não por ser um trabalho acadêmico. Petra deixa claro sua parcialidade. Reações semelhantes às do Brasil devem ter sido observadas em outros documentários políticos que o Netflix emplacou no Oscar recentemente, como Winter on Fire (Ucrânia) e The Square (Egito). Econosplaining à parte, boa sorte Petra.

* Doutor em economia

#Petra Costa; #Vertigem; #PT; #Dilma; #Impeachment;

Um Oscar para Eduardo Cunha

Ranier Bragon - Folha de S. Paulo

Subestimado em 'Democracia em Vertigem', ele merecia salvo-conduto para ir a Los Angeles

Habita Bangu 8 a nossa grande aposta para, enfim, faturar um Oscar. Personagem algo lateral em "Democracia em Vertigem" —concorrente a melhor documentário longa-metragem—, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB) está a merecer o devido crédito.

Com total domínio de cena, ele não só deu aval ao pedido de impeachment de Dilma Rousseff, como pode parecer ao gringo que assista ao documentário, mas conduziu de forma obsessiva todos os preparativos que culminaram na autorização da abertura do processo, em 17 de abril de 2016. Sim, a célebre sessão em que o até então inexpressivo Jair Bolsonaro exaltou um torturador e em que Cunha clamou aos céus por misericórdia à nação.

Daí em diante, não havia como retroceder. Foi jogo jogado. Dilma foi destituída, e Deus não teve misericórdia de ninguém, muito menos de Cunha, que foi parar na prisão, onde está há há mais de três anos.

Além do imerecido papel dado ao ex-deputado, o documentário também tem ingenuidades e alguns delírios esquerdistas, como o de sempre culpar a imprensa pelos males do mundo —quando convém, claro. Ao usar a gravação em que Romero Jucá fala em "estancar a sangria" provocada pela Lava Jato, por exemplo, a diretora Petra Costa narra ter sido "vazado um áudio" que lançou "luz" sobre o que ocorria nas sombras da República. Esqueceu-se apenas de dizer que o áudio foi revelado, olhe só, pela maldita imprensa golpista —no caso, em reportagem de Rubens Valente, nesta Folha.

Apesar disso, "Democracia em Vertigem" tem muita qualidade técnica, registros históricos de bastidor e, talvez o maior mérito, foge da comum armadilha de forjar equilíbrio onde há tudo, menos equilíbrio. A vida não é assim. O filme tem lado, e pode ser o mais condizente com a história toda. Seja como for, a Cunha deveria ser dado um salvo-conduto para ir a Los Angeles, onde poderia repetir as súplicas por misericórdia, agora em prol do mundo. Quem sabe Deus ouvisse dessa vez.


#Petra Costa; #Vertigem; #PT; #Dilma; #Impeachment;

E o Oscar vai para... o PT


Joel Pinheiro da Fonseca* - - Folha de S. Paulo

'Democracia em Vertigem' reproduz narrativa petista da história recente

Será que o primeiro Oscar brasileiro irá justamente para o PT? Confesso —como aliás já escrevi por aqui na época do lançamento— que não sou grande fã de “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, documentário que está entre os indicados para o Oscar deste ano.

É uma ilusão acreditar que um documentário seja, por sua própria natureza, uma descrição minimamente objetiva da realidade. A única diferença para com a ficção é que ele cria sua narrativa selecionando documentos (imagens, depoimentos) reais, e não construídos.

O documentário engajado, gênero consagrado por Michael Moore, não esconde sua parcialidade e seleção enviesada dos documentos que apresentará ao público. É o que temos aqui, e é uma pena.

O filme reproduz a narrativa petista da história recente: Lula e o PT chegaram ao poder e melhoraram a vida dos brasileiros mais pobres ao mesmo tempo que enfrentaram os interesses das elites. Infelizmente, no exercício do poder o PT se aliou à velha política brasileira, serva das elites, e acabou sendo derrubado por ela.

Em nenhum momento o documentário encara de frente dois problemas fatais para sua narrativa: o primeiro é a política econômica dos anos Dilma, que produziram a recessão da qual ainda não nos recuperamos.

A década de 2010-2019 foi a de pior crescimento desde 1900. Esse desastre legou ao país 13 milhões de desempregados, ao mesmo tempo em que a política econômica enchia os bolsos de grandes empresários, como os donos da construtora Andrade Gutierrez, família de Petra.

O segundo é uma discussão do mérito dos crimes de responsabilidade dos quais Dilma foi acusada, que revelaria pedaladas fiscais e liberação de créditos sem aval do Congresso bilionárias.

Mais do que uma grande conspiração envolvendo mídia e elites —o mesmo discurso usado por Bolsonaro hoje em dia—, esses dois fatores explicam o porquê da força política do impeachment (não só junto à classe política, mas também à opinião pública) e sua legitimidade formal.

A narração do documentário é feita pela própria diretora num tom de voz lamurioso, que reforça o vitimismo da histórica contada: o PT como pobre vítima de um sistema corrupto dirigido pelas elites.

Um documentário mais imparcial contaria uma história diferente: o PT, que ascendeu ao poder já com escândalos de corrupção às costas, implementou sim programas sociais importantes, ao mesmo tempo em que beneficiou aliados políticos e empresariais escolhidos politicamente para sustentá-lo no poder.

Na medida em que sacrificou as conquistas econômicas que recebeu do governo FHC (responsabilidade fiscal, metas de inflação) e apostou no crescimento via consumo e gasto do governo, minou as bases de um crescimento sustentável no país. O aparelhamento institucional e os esquemas de corrupção para financiar a máquina partidária, quando descobertos, selaram seu destino.

Tendo feito o que fez, e ainda assim se apresentar como vítima inocente do sistema, o PT sem dúvida merece Oscar de atuação.

Seja como for, o filme tem seus méritos também. O ritmo da narrativa mantém o espectador interessado na história, há imagens bonitas e muito bem escolhidas, e ainda conta com um material de arquivo inédito.

Enquanto filme —à parte a narração chorosa—, funciona. É o bastante para vencer o Oscar? Difícil saber. Mas já que a regra agora é Brasil acima de tudo, aos detratores do filme resta torcer: vai Petra!

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


#Petra Costa; #Vertigem; #PT; #Dilma; #Impeachment

Vertigem

Luiz Carlos Azedo – Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Houve intenso trabalho de projeção da imagem de Lula no plano internacional, seguido da construção de uma narrativa própria a destituição de Dilma, comparando-a ao golpe de 1964”

Indicado para o Oscar de melhor documentário, Democracia em vertigem, de Petra Costa, é um bom filme, tanto que está selecionado. Isso não significa que o conteúdo do filme seja neutro em relação aos fatos narrados nem que discordar ou concordar politicamente com a narrativa da diretora seja o ponto de referência para sua avaliação como produto cinematográfico pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. O filme tem uma excelente fotografia, cenas inéditas do impeachment de Dilma Rousseff e proporciona um olhar retrospectivo sobre a política brasileira, que anda muito conturbada.

O filme mostra o dia a dia da presidente Dilma Rousseff, que foi apeada do poder por causa dos seus erros e não em razão de uma suposta conspiração imperialista. Não tivesse lançado o país numa recessão profunda e se relacionado tão mal com o Congresso, o impeachment não teria ocorrido. O filme não esconde seu olhar particular sobre a política brasileira: a protagonista cresceu numa família de esquerda, que sofreu as consequências de sua opção política e ideológica durante a ditadura militar. Quando se torna adulta, a jovem acompanha o processo político da transição à democracia ao governo Lula, um ex-líder operário que chega ao poder.

Petra Costa é crítica em relação a Lula, que somente teria chegado à Presidência depois de ajustar seu discurso aos interesses das elites econômicas do país. Mostra o envolvimento do PT com a corrupção, a pretexto de se manter no poder e garantir maioria no Congresso. Com a chegada da crise econômica internacional ao Brasil, porém, o pacto perverso do PT para conciliar o apoio popular com os interesses das elites acaba se rompendo. Lula se sustentava num tripé: banqueiros e rentistas, a elite política protegida pelos grandes empresários fornecedores do Estado, e projetos sociais de natureza populista.

A partir desse diagnóstico, o filme construiu a narrativa da derrubada de Dilma Rousseff. Petra Costa injeta no documentário a paixão política que tece a trama histórica. De certa forma, entre discursos inflamados, humaniza o processo político ao se colocar como testemunha ocular da história: “Eu e a democracia brasileira temos quase a mesma idade. Eu achava que, nos nossos trinta e poucos anos, estaríamos pisando em terra firme”. O filme é muito contestado porque toma partido de Dilma Rousseff e trata seu impeachment como um golpe de Estado, o que não é verdade. Os setores que foram às ruas pedir o afastamento da petista criticam o filme desde o lançamento, com o argumento de que se trata de uma obra de ficção.

Cenário favorável
Isso é chorar o leite derramado. Nos governos petistas, houve um intenso trabalho de projeção da imagem de Lula no plano internacional, seguido da construção de uma narrativa própria sobre a destituição de Dilma, comparando-a ao golpe de 1964, que implantou o regime militar, e não ao afastamento do ex-presidente Collor de Melo, do qual o PT foi protagonista, o que inclui Lula e a própria Dilma, o que seria historicamente mais correto. Essa narrativa é hegemônica na opinião pública internacional, embora não o seja em nível diplomático. Qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que o governo de Michel Temer respeitou o Congresso, a liberdade de imprensa, o direito de opinião e as minorias. Foi um governo democrático.

Ocorre que o cenário de escolha dos filmes do Oscar, no caso específico de Democracia em vertigem, tem por parâmetros a situação política dos Estados Unidos e a imagem do governo Bolsonaro no exterior, que não é em nada positiva, principalmente na ótica dos direitos humanos, das minorias, do meio ambiente e da paz. O contexto influencia as escolhas da Academia. Democracia em vertigem foi selecionado ao lado dos documentários American Factory, The cave, For Sama e Honeyland. O fato de ser uma produção da Netflix, lançado em 2019, também pesou na balança, porque foi distribuído para mais de 150 países e teve campanha publicitária nos Estados Unidos.

Com 96% de aprovação entre os críticos mais influentes, o filme é aclamado desde a estreia no Festival de Sundance, em janeiro de 2019. Chamou a atenção da crítica e da imprensa especializada pelo circuito de festivais em que foi exibido. Isso significa que o troféu está garantido? Longe disso, há fortes concorrentes, entre os quais American Factory, produzido pelo casal Barack e Michele Obama. Além disso, outro filme brasileiro concorre ao Oscar em outras duas categorias, melhor ator e melhor roteiro adaptado: Dois Papas, de Fernando Meirelles, também produzido pela Netflix.


#Petra Costa; #Vertigem; #PT; #Dilma; #Impeachment;


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Uma coisa chamada Civilização



"O último discurso: “Uma coisa chamada Civilização
Por Sir Roger Scruton


Scruton: “Nossa Civilização Ocidental não é uma obsessãozinha específica de gente que vive em certa região geográfica do mundo. É uma herança em expansão constante”.| Foto: Pixabay
Em 19 de setembro de 2019, no 14º Encontro Anual de Gala pela Civilização Ocidental, o Intercollegiate Studies Institute deu a Sir Roger Scruton o prêmio de Defensor da Civilização Ocidental. Sir Roger disse essas palavras ao receber o prêmio. Ele tinha sido recentemente diagnosticado com câncer, doença que o levou à morte em 12 de janeiro de 2020.

É uma honra ser premiado como Defensor da Civilização Ocidental em 2019 pelo ISI, organização com a qual mantenho conexão há muito tempo e cujo trabalho parece mais importante e necessário do que nunca, não só para os jovens, mas também para nós da geração mais velha, que estamos tentando transmitir o que sabemos.

A Civilização Ocidental tem sofrido muitos ataques por ser ocidental. A palavra Ocidental assumiu um caráter abusivo por muitas pessoas no mundo de hoje, sobretudo por pessoas que não têm a menor ideia do que ela significa histórica, metafísica e poeticamente. Nossa Civilização Ocidental não é uma obsessãozinha específica de gente que por acaso vive em certa região geográfica do mundo. É uma herança em expansão constante, sempre incluindo coisas novas. É algo que nos dá o conhecimento da alma humana, que nos permite criarmos não apenas maravilhosos sistemas econômicos e formas de viver no nosso mundo, mas também as grandes obras de arte, as religiões, os sistemas jurídicos e o governo, todas as outras coisas que fazem com que reconheçamos que vivemos nesse mundo, enquanto for possível, de uma forma bem-sucedida.


O que é a Civilização?
Deixemos de lado a ideia de Civilização Ocidental. Afinal, ela depende de como você vê o mundo, do Ocidente ou Oriente. Em vez disso, vamos analisar a ideia de civilização. O que é isso? É uma forma de conexão entre as pessoas, não apenas uma forma por meio da qual as pessoas compreendem seus idiomas, costumes, comportamentos, mas também a forma como elas se conectam umas às outras, olho a olho, cara a cara, no cotidiano que compartilham.

É algo que tem uma dimensão comum no ambiente de trabalho e na comunidade, no nosso dia a dia. Mas também é algo sobre o qual foi erguida a alta cultura, obras de arte, literatura, música, arquitetura e assim por diante. São formas de mudar o mundo de modo a nos sentirmos mais à vontade nele.

Acho que essa é a característica marcante da Civilização Ocidental, que é uma civilização abrangente que está sempre criando novas formas de nos sentirmos em casa, formas de nos relacionarmos uns com os outros, o que gera paz e interesses mútuos como os principais laços entre vizinhos.

Mentes estreitas
Ora, eu mesmo obviamente já me meti em muitos problemas por defender a Civilização Ocidental. Uma marca estranha do nosso tempo parecer ser o fato de que, quanto mais você se dispõe a defendê-la, mais você é considerado um fanático de mente estreita. Mas as pessoas que fazem essa acusação é que têm mentes estreitas. São elas que não enxergam quão grande e abrangente foi e é nossa civilização.

Fomos criados, por exemplo, com base na Bíblia hebraica, um documento antigo que perpetua a civilização do Oriente Médio pré-clássico. Ela nos passa a sensação de como as pessoas viviam em comunidades tribais que perambulavam pelo deserto e assim por diante.


Aprendemos e estudamos os grandes épicos romanos e gregos, que nos ensinaram idiomas diferentes – línguas mortas, mas línguas que retrataram o mundo sob uma luz diferente do mundo criado por nossos idiomas contemporâneos.

Somos criados com base na literatura da Idade Média, boa parte dela influenciada pela literatura árabe, claro. Na verdade, todos nós já dormimos ouvindo histórias tiradas das 1001 Noites.

Quanto mais você analisa, mais você percebe quão abrangente e universal é a herança da nossa civilização. E isso é algo que tendemos a esquecer hoje em dia. Não é um legado restrito. É algo que está realmente aberto a todos os tipos de inovações, que aceita a totalidade do ser humano como seu tema.

É assim que a vejo. Sempre gostei de ser professor de humanidades porque sei do que as humanidades tratam. Tratam do ser humano e de como o ser é diverso e amplo no mundo em que vivemos hoje.

Intolerância de quem?
O que quer que façamos, devemos reagir contra a acusação de que a nossa civilização é de alguma forma estreita, dogmática, intolerante e excludente. Não é. Comparado com o quê, afinal? Comparado com os chineses? Somos estreitos, intolerantes e excludentes quando deixamos de lado a grande tradição confucionista? De jeito nenhum. Fui criado, como muitos outros, com um interesse pela civilização chinesa. Lemos o Livro das Odes na tradução de Ezra Pound. Todos nós nos apaixonamos por Das Lied von der Erde, de Mahler, um dos maiores usos da poesia chinesa em toda a história da música, e certamente maior do que tudo o que ouvi na música chinesa. E olha só! Aí está a afirmação preconceituosa.


Mas reconheçamos que isso não é preconceito algum. O fato de um compositor como Mahler poder direcionar seus sentimentos vienenses na direção daqueles poemas de solidão que o levaram a compor uma música tão bela mostra um aspecto tolerante e generoso da nossa cultura. Deixando-nos, ao fim do último movimento, com aquele coro incrível que, como escreveu Benjamin Britten, permanece impresso no ar.

Por que somos obrigados agora a assumir uma posição de defesa quando qualquer pessoa que saiba um pouco sobre o assunto sabe que o que chamamos de Civilização Ocidental é apenas outro nome para civilização e para todas as realizações que os jovens precisam conhecer e, se possível, adquirir. O problema, parece, está na invasão da academia e do mundo intelectual por grupos ativistas que não se dão ao trabalho de perceber contra o que estão se posicionando e que, mesmo assim, definem sua posição em termos de pautas políticas. Essas pautas políticas tratam todas de pertencer a um grupo de salvacionistas: nós estamos salvos porque acreditamos nas coisas certas e procuramos em todos os lugares por seres peçonhentos que tentam nos impedir de tomarmos posse de nossa herança por direito.

E todas as novas causas são escolhidas com base nisso. São causas de pessoas que querem sentir que a ordem atual das coisas as exclui e que, portanto, elas têm uma justificativa para destruir essa ordem a fim de ocupar um lugar no topo dela. Uma vez no topo, elas reorganizarão as coisas de modo a purificar todas as influências antigas e corrompidas vistas como um problema.

Acho que essa invasão do ativismo político nas universidades e nas humanidades e em todos os canais de civilização é um dos maiores desastres da nossa época.

Mas isso não tinha de ocorrer. Não temos de ouvir o que essas pessoas dizem. Não somos obrigados a nos envolvermos nos julgamentos públicos, nas denúncias, em todas as formas como as pessoas são caçadas e excluídas da comunidade. Esses ativistas só têm sucesso porque nós participamos dessas atividades. Não temos de participar. É possível dar um passo para trás e até rir de algumas das coisas que estão sendo ditas.


Se você parar e pensar em todo o furor quanto ao ativismo transgênero, boa parte dele é pura confusão, e uma confusão da qual as pessoas querem ser resgatadas. Boa parte da raiva é um pedido de socorro. Fiquem calmos e digam: há outras opiniões que não a sua. Você pode ter um bom argumento, mas não é o único argumento. Vamos nos acalmar e discutir isso. Vamos analisar isso no contexto da civilização como um todo e do caminho para onde ela está rumando.

Fazer isso deve ser o bastante para eliminar boa parte da tensão que nos aflige.

Um tempo para coragem
E sinto que agora é a hora, por meio de instituições como o Intercollegiate Studies Institute, de levar novamente coragem e convicções aos jovens que sabem que há algo de errado com essa caçada às bruxas dos ativistas contra a tradição. Chegou a hora, me parece, de pessoas como eu e a geração mais antiga de professores darmos coragem aos jovens, de dizermos: olha, você tem uma civilização e uma herança que o ajuda a compreender essas coisas. Ceder a esse tipo de ativismo excludente, que ignora porções inteiras do conhecimento humano, não faz bem. Isso não está lhe dando as coisas das quais você realmente precisa no mundo onde vai viver.

Vocês precisam é de diálogo, e é disso que trata nossa civilização. Tentar entender a condição humana em toda a sua complexidade. E, quando as pessoas tentarem radicalizar e politizar o currículo acadêmico e o que é ensinado e pensado nas universidades, vocês não precisam participar disso. Vocês podem até rir delas. Na verdade, ainda é permitido rir das pessoas no nosso país e civilização. Afinal, a comédia é uma das grandes dádivas da civilização. E cabe a vocês, acho, usá-la.

Então minha mensagem final é a de que não devemos nos desesperar com a Civilização Ocidental. Só temos de tomar cuidado para reconhecermos que não estamos falando de uma coisa de mentalidade pequena e estreita chamada Ocidente. Estamos falando de uma coisa aberta, generosa e criativa chamada Civilização.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Análise: Morte de Soleimani é um evento sísmico no Oriente Médio


Resultado de imagem para Suleimani



JANUARY 03, 2020

Mais do que qualquer outra operação militar americana desde a invasão do Iraque, o assassinato do general e comandante da Guarda Revolucionária do Irã, Qassem Soleimani, é um evento sísmico. As mortes de Osama bin Laden e Abu Bakr al-Baghdadi, os líderes da Al-Qaeda e do Estado Islâmico, foram certamente significativos e também foram em grande parte simbólicas, porque suas organizações foram destruídas. No entanto, o extermínio do arquiteto da campanha ativa de décadas da República Islâmica da violência contra os Estados Unidos e seus aliados, especialmente Israel, representa uma mudança tectônica na política do Oriente Médio.

Para ver o quão realmente significativa é a morte de Suleimani, ela ajuda a entender o jogo geopolítico ao qual ele se dedicou durante sua vida. No Líbano, Soleimani transformou o Hezbollah em um poderoso estado dentro de um estado. Uma organização terrorista que recebe fundos, armas e ordens de Teerã, o Hezbollah possui hoje um arsenal de mísseis maior que o da maioria dos países da região. O surpreendente "sucesso" do grupo tem ajudado a consolidar a influência do Irã não apenas no Líbano, mas também em todo o mundo árabe.

Com base nessa experiência bem-sucedida, Suleimani passou a última década replicando o modelo do Hezbollah no Iraque, na Síria e no Iêmen, sustentando as milícias locais com armas de precisão e conhecimento tático de guerra. Na Síria, suas forças se aliaram à Rússia para sustentar o regime de Bashar al-Assad, em um projeto que, na prática, significou expulsar mais de 10 milhões de pessoas de suas casas e matar mais de meio milhão. No Iraque, como vimos nos últimos dias, as milícias de Suleimani passaram por cima das instituições estatais legítimas. Eles chegaram ao poder depois de participar de uma insurgência, da qual ele era o arquiteto, contra as forças americanas e da coalizão. Centenas de soldados americanos perderam a vida com as armas que de Suleimani forneceu aos seus "procuradores" iraquianos.

O chefe da Guarda Revolucionária do Irã construiu esse império de milícias, apostando que os EUA evitariam um confronto direto. Essa aposta certamente valeu a pena sob o presidente Barack Obama e até parecia ser uma aposta segura sob o presidente Trump, apesar de sua política declarada de "pressão máxima".

Em setembro, Suleimani ornenou o ataque a um campo de petróleo da Arábia Saudita, um verdadeiro ato de guerra, que ficou sem resposta. Ele seguiu orquestrando ofensivas contra os americanos usando suas milícias. O governo Trump, por sua vez, já havia dito claramente que atacar americanos era uma "linha vermelha". No entanto, Soleimani havia recebido ameaças de líderes americanos no passado. De novo, ele pensou que poderia "apagar" a linha vermelha de Trump.

Sua partida tornará o Irã muito mais fraco. Isso encorajará os rivais regionais do país - principalmente Israel e Arábia Saudita - a perseguir seus interesses estratégicos com mais veemência. Também vai instigar os manifestantes no Irã, Líbano e, principalmente, no Iraque, na esperança de que um dia eles tirem o controle de seus governos das garras da República Islâmica.

Em Washington, a decisão de matar Suleimani representa o final de uma estratégia de Obama para o Oriente Médio, que procurou realinhar os interesses americanos com os do Irã. A busca de Obama por um convivência pacífica com Teerã nunca se ajustou à realidade do caráter fundamental da República Islâmica e às ambições regionais. O presidente Trump, por outro lado, percebeu que o objetivo de Teerã era substituir a América como o principal ator no Oriente Médio.

Os Estados Unidos não têm escolha. Se o país quiser permanecer no Oriente Médio, terá de ter controle sobre o poder militar do Irã. Para um presidente eleito em uma plataforma de paz e prosperidade, enfrentar o Irã não foi uma decisão fácil de tomar. Sem dúvida, Trump prefere negociar com o Irã seu programa nuclear do que ordenar o assassinato de seu general mais famoso. Entretanto, o presidente percebeu que garantir a posição regional dos EUA exigia uma resposta forte e visível às escaladas cada vez mais comuns de Suleimani.

Contudo, essa resposta veio atrasada. Soube por meio de um ex-alto funcionário da Casa Branca e do Departamento de Defesa, que os Estados Unidos tiveram várias oportunidades passadas de matar Suleimani, mas sempre relutaram. Ficou provado que a indecisão não tornou o mundo mais seguro e só deu a Soleimani mais tempo para construir seu império.

Os críticos de Trump imediatamente o acusaram de provocar o Irã desnecessariamente, argumentando que o assassinato de Suleimani poderia levar o país à guerra. Esta é uma análise que ignora o fato de general iraniano já travar guerra contra os EUA e seus aliados há anos e estar diretamente envolvido no planejamento de ataques a aliados.

O mundo em que acordamos hoje, livre de seu terrorista mais bem-sucedido e mortal, é um lugar melhor. Em nenhum local esse pensamento é mais evidente do que em todo o Oriente Médio, onde cidadãos comuns têm postado vídeos em mídias sociais comemorando a morte do autor de tanta miséria. Todos devemos - mesmo aqueles entre nós que não se importam particularmente com o Sr. Trump - se juntar a eles e continuar a negar o legado do assassino anti-americano Suleimani.

Michael Doran é membro sênior do Instituto Hudson e autor de "Ike's Gamble: America's Rise to Dominace in the Middle East" 
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,analise-morte-de-suleimani-e-um-evento-sismico-no-oriente-medio,70003142451

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