ROBERTO ABDENUR - O GLOBO
A presidente Dilma certamente não fez uma reflexão mais detida sobre o que poderiam ser as consequências do convite ao Corpo Diplomático para o encontro com juristas
Passou algo despercebido, nos últimos dias, o sentido mais amplo de insólita iniciativa tomada pela presidente da República. Refiro-me à convocação do Corpo Diplomático em Brasília para assistir ao evento denominado “Encontro com Juristas pela Legalidade da Democracia”. Na ocasião, a presidente expôs sua visão dos presentes acontecimentos e alinhavou argumentos contra o que considera ser um “golpe” e séria “ameaça à democracia”, capaz de “deixar profundas cicatrizes na vida política brasileira”. Compareceram ao evento, ao que consta, cerca de três dezenas de embaixadores e encarregados de negócios.
Embora em outro nível hierárquico — e certamente agindo à revelia do próprio governo —, dias antes um diplomata tomara a iniciativa de enviar aos postos no exterior reiteradas instruções no sentido de que fizessem ampla divulgação, junto à sociedade civil local, de denúncias sobre a “tentativa de golpe” que supostamente estaria a ocorrer no Brasil. Esse anedótico episódio não mereceria menção se não fosse sintomático do afã do governo e seus simpatizantes em projetar para fora do país a visão conspiratória que armou em sua defesa contra o impeachment.
Ambas as iniciativas vieram evidenciar como a linha de defesa contra o impeachment adotada pela presidente e pelas forças políticas que a apoiam extrapola significativamente os limites do cabível no que diz respeito à preservação da imagem do país aos olhos da comunidade internacional, acarretando prejuízos para nossos interesses tanto em questões de política externa quanto nos campos econômico e financeiro. E isto no momento em que o processo de devastação de nossa economia ora em curso, ao impacto dos erros cometidos pelo governo, já abala fortemente a credibilidade do país.
A presidente Dilma certamente não fez uma reflexão mais detida sobre o que poderiam ser as consequências do convite ao Corpo Diplomático estrangeiro. O evento constituiu espetáculo de autoflagelação. Flagelação da imagem do país, mas também autoflagelação da própria presidente.
Não se tem notícia, na história de nossas numerosas crises políticas, de situação em que o próprio chefe de Estado e de governo tenha recorrido a semelhante iniciativa, em esforço de angariar simpatia e apoio de governos estrangeiros para sua posição política. Uma posição que, deve a presidente saber em seu íntimo, não se coaduna com a realidade dos fatos, como atestam o correto funcionamento das instituições de Estado — Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal — e enfáticas declarações de membros do STF mostrando a completa legalidade do processo de impeachment.
O gesto da presidente valeu-lhe declarações de apoio por parte de três ou quatro governos “bolivarianos”, desde logo profundamente gratos ao ex-presidente Lula por seu denodado apoio aos projetos autoritários e até ditatoriais por eles encetados.
Essas manifestações “bolivarianas” já tiveram o efeito de colocar o Brasil na vexatória posição de estar sujeito a sanções, sob a égide da cláusula democrática do Mercosul. Mesmo o novo governo argentino, que teve a lucidez de não associar- se às declarações “bolivarianas”, veio a público, pela voz de sua chanceler, para expressar preocupação com o que aqui ocorre, e dizer que não exclui a hipótese de alguma manifestação contra o alegado risco de “golpe”. Constituirá inenarrável humilhação para o Brasil eventual manifestação de nossos vizinhos que endosse, explícita ou mesmo implicitamente, os argumentos expostos pela presidente.
No que diz respeito à maioria dos outros governos, contudo, o episódio redundará em desprestígio e perda de credibilidade. Caso, com efeito, sobreviva ao processo de impeachment, a presidente Dilma, ao longo de todo o restante de seu mandato, não será levada maiormente a sério em encontros bilaterais ou em reuniões e conferências multilaterais. Mas o Brasil, de sua parte, perde desde logo por conta do impacto negativo da atitude da presidente sobre o espírito de governantes estrangeiros, empresas, bancos, investidores, agências de rating e outros atores. E, no mesmo compasso, veem-se prejudicadas a seriedade e a confiabilidade de nossa política externa.
Oxalá não passe pela cabeça do governo instruir nossas embaixadas a veicularem no exterior aquilo que foi dito no citado encontro de juristas com a presidente. O Itamaraty não pode ser rebaixado ao ponto de servir de veículo para uma iniciativa em tal sentido.
Roberto Abdenur é embaixador aposentado
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