A questão principal em meu entender é que esses analistas econômicos ignoram o peso e as dificuldades da elevadíssima dívida de estados e municípios que já contam com cerca de 80% de seus recursos comprometidos com pagamento de pessoal.
Outro ponto não ponderado pelos mesmos é o nosso escorchante déficit de infraestrutura: estradas, energia elétrica, telecomunicações, mobilidade urbana etc que dificultam, sobremaneira, qualquer mínimo desenvolvimento econômico decente.
A crise permanente da economia brasileira
*Monica de Bolle: - Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Economista defende que retomar o crescimento demandará não apenas medidas de efeito de médio ou longo prazo, como a reforma da Previdência, mas também estratégias criativas e ousadas com resultados mais imediatos, que atendam aos desempregados e vitimados pela desigualdade.
Somos peritos em crises, nossa experiência é vasta. Já passamos por hiperinflações, moratória de dívida externa, crises bancárias, crises cambiais —à exceção da moratória, o resto merece o tratamento no plural, pois as vivemos em diversos momentos, às vezes até simultaneamente. Contudo, mesmo com nossa vasta experiência em matéria de crises econômicas, jamais passamos pelo que testemunhamos hoje, espécie de crise sem crise.
Temos uma crise, pois a economia brasileira não cresce, ou cresce pouco. Não temos uma crise tradicional, pois a armadilha de crescimento baixo não é acompanhada ou mesmo causada por uma crise financeira, como no passado. O freio brasileiro está engatado há muito tempo e não resulta somente da grande recessão de 2015-2016.
Como analisei em meu livro, “Como Matar a Borboleta-Azul: Uma Crônica da Era Dilma” (Intrínseca, 2016), a tragédia do crescimento baixo reflete anos de descaso com os efeitos de contas públicas desarranjadas, de políticas insustentáveis de crédito para aumentar o consumo, do protagonismo indevido do BNDES, responsável por grandes distorções financeiras, da ausência de medidas para aumentar a competitividade do país.
Tais erros na condução da economia começaram no segundo mandato de Lula e continuaram com Dilma. Para resolver o acúmulo de entraves ao crescimento, não bastará a reforma da Previdência. Ela abrirá um importante espaço fiscal no médio prazo, é claro, mas isso é insuficiente. No ritmo atual de crescimento, não conseguiremos reduzir o desemprego e a desigualdade e flertaremos com o risco crescente de uma grave crise social.
Penso que, como ocorre em vários países avançados, o Brasil padece da chamada estagnação secular. O termo foi originalmente concebido em 1938 pelo economista e ex-professor da Universidade Harvard Alvin Hansen, para descrever o que ele acreditava ser o destino da economia norte-americana após a grande recessão dos anos 1930: um freio sustentado do crescimento econômico causado por uma demanda agregada deprimida e tendências demográficas adversas.
Em versão atualizada pelo economista Larry Summers, outro ex-professor de Harvard, a estagnação secular ocorre quando a produtividade para de crescer, a demografia passa a ser um ônus e a demanda agregada perde fôlego de forma sustentada.
No Brasil, a produtividade —seja a que conhecemos por produtividade total dos fatores ou a produtividade dos trabalhadores— está estagnada há décadas. Nossa taxa de crescimento populacional é hoje menor que a dos EUA e a da França, igualando-se à da Bélgica. Todos esses países estão sob risco de contrair a estagnação secular.
O crescimento da população é importante para as tendências de longo prazo das economias, pois garante que, no futuro, haverá gente suficiente para formar a força de trabalho sem a qual os países não crescem, por mais que existam robôs. Os robôs, afinal, não só são confeccionados por alguém, como também são operados por gente.
Por fim, a demanda no Brasil está inequivocamente deprimida. Basta observar o ritmo médio de expansão do consumo nos últimos anos —pouco mais de 1%— e a trajetória periclitante do investimento. A taxa de investimento brasileira fixou-se há tempos em pouco mais de 15%, patamar bem mais baixo do que o observado em nossos pares latino-americanos. A urgente reforma da Previdência não irá alterar esse quadro.
Se o Brasil preenche as condições para a estagnação secular nos quesitos acima, outro critério também é atendido: a taxa de juros real está em nível historicamente baixo e não dá sinais de que irá subir. Hoje, tomando a inflação 12 meses à frente projetada pelo mercado, ela está em cerca de 2,5%.
Diante do quadro econômico decepcionante e da ausência de pressões inflacionárias no horizonte, há quem defenda a redução da Selic pelo Banco Central, o que parece razoável, sobretudo após a aprovação das novas regras da Previdência. Nesse caso, e supondo que a inflação se mantenha ao redor dos 4% projetados pelo mercado, a taxa de juros real poderia ser ainda mais baixa.
Por que é possível projetar uma taxa de juros real permanentemente baixa à frente, sobretudo em comparação com a média de cerca de 3,5% nos últimos dois anos do primeiro mandato de Dilma?
Antes de responder, eis uma digressão: embora a taxa de juros real neste período estivesse em nível baixo comparado ao passado, era claro que tal patamar fora alcançado permitindo que a inflação ficasse, recorrentemente, bem acima da meta de 4,5% e que, por esse e outros motivos, aquele nível do juro real não seria sustentável, como de fato se viu posteriormente. Abordei esse tema em detalhe no meu livro.
Voltando à pergunta sobre os motivos de a taxa de juros real permanecer baixa agora, remeto os leitores aos resultados de artigo que escrevi em 2015 para o Peterson Institute for International Economics, sobre o papel do BNDES e o impacto de seus empréstimos.
Na ocasião, apresentei exercício empírico no qual mostrava que a farra do crédito subsidiado durante o segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma havia distorcido as taxas de empréstimos no mercado de crédito, além de ter exercido pressão considerável sobre os juros reais.
Calculei que, se os empréstimos do BNDES deixassem de ser feitos a taxas subsidiadas e retornassem aos patamares observados no início dos anos 2000, isto é, caindo de uns 4% do PIB para algo em torno de 1% do PIB, a taxa de juros real poderia cair em até 1,3 ponto percentual.
A introdução da TLP (taxa de longo prazo) durante o governo Temer removeu o componente subsidiado dos empréstimos do BNDES. Além disso, os desembolsos do banco foram reduzidos de R$ 190 bilhões em 2013 para R$ 69 bilhões em 2018, ou, precisamente, para 1% do PIB. Nesse mesmo período, a taxa de juros real caiu da média de 3,5% observada em 2013-2014 para 2,5% hoje, em linha com os cálculos que havia feito em 2015.
A taxa de juros real reflete o custo do capital para as empresas. Portanto, uma taxa permanentemente mais baixa proveniente das mudanças na atuação do BNDES deveria incentivar a alta dos investimentos privados. Contudo, não é isso o que se vê. Observa-se precisamente o que ocorreria em situação de estagnação secular: a taxa de juros real menor já não é capaz de estimular a economia.
E o consumo, componente mais importante da demanda privada e motor dos gastos que incentivam as empresas a produzir? Para falar sobre ele, é preciso não só reconhecer a alta taxa de desemprego, mas destrinchar o que vem ocorrendo com a desigualdade.
Em análise recente, o especialista no tema Marcelo Medeiros mostra que a retomada lenta da economia brasileira tem sido profundamente desigual, que a desigualdade de renda voltou a crescer em 2016, após longo período de queda e posterior estabilidade.
De um lado, o aumento da desigualdade não surpreende: resulta diretamente da grande recessão de 2015-2016, ela própria decorrente dos desmandos macroeconômicos que analisei em meu livro sobre a era Dilma. De outro, há sinais de que a alta da desigualdade total esteja em processo de aceleração.
Segundo Medeiros, dados do Imposto de Renda mostram que há migração dos investimentos daqueles que têm renda mais alta para aplicações financeiras. Isso significa que recursos são transferidos das áreas de produção, que naturalmente criam empregos, para títulos públicos e outros ativos financeiros sem impacto direto na geração de vagas.
Portanto, à frente, a desigualdade poderá aumentar mais em razão de altas no desemprego ou da criação de empregos precários, que não dão a segurança devida ao trabalhador para que ele volte a consumir.
Outro fator importante é a mudança metodológica de 2016 na Pnad Contínua, a pesquisa nacional por amostras de domicílios do IBGE. Naquele ano, a pesquisa passou a incorporar rendas que antes não estavam refletidas nos dados de rendimentos do trabalho —a saber, o 13º salário e o pagamento de comissões. Há quem tenha visto aumento na renda do trabalho e o tenha atrelado à recuperação econômica sem se dar conta da alteração na metodologia.
Ainda mais importante é a constatação de que a parte da renda do trabalho que aumenta é proveniente das comissões e do 13º. Esses rendimentos são, evidentemente, frágeis para o consumidor, pois comissões são variáveis e o 13º é sazonal.
Por essas razões, rendas provenientes dessas fontes não têm o mesmo poder de aumentar o consumo como teria a elevação do salário para aqueles com empregos seguros. E a economia brasileira hoje está sem fôlego para criar empregos que deem segurança aos consumidores.
Diante do diagnóstico apresentado, isto é, de que a economia brasileira não tem dinamismo para crescer acima das taxas observadas no médio e longo prazo e de que as tendências de curto prazo contribuem para agravar as tensões sociais, é possível elaborar algumas soluções.
Para devolver o dinamismo econômico ao país, a atual agenda de reformas é correta: precisamos de uma reforma da Previdência, precisamos de uma reforma tributária, precisamos de privatizações. Precisamos, também, abrir a economia brasileira ao comércio e ao investimento externos, o que passa não apenas por medidas de redução de tarifas de importação mas por atuações nas diversas áreas regulatórias em que o Brasil está severamente atrasado em relação a outros países latino-americanos.
A convergência regulatória para equiparar o país às boas práticas internacionais não só abriria espaço para negociar acordos de facilitação de comércio ou de livre-comércio como também reduziria o protecionismo que torna o Brasil um dos países mais isolados do mundo. Transferências tecnológicas por meio da abertura comercial ajudariam a aumentar a produtividade, junto com outras reformas, como a tributária.
A estratégia para tirar o Brasil da estagnação secular passa, portanto, pelas reformas que Paulo Guedes tem defendido e por uma agressiva abertura comercial. É claro que o desenho das reformas deve ser cuidadoso para que elas não tenham consequências indesejáveis, como o esgarçamento da rede de proteção social. Contudo, a estratégia de médio e longo prazo parece clara.
Menos clara e menos debatida é a estratégia de curto prazo para a economia brasileira. A esse respeito, o atual governo não tem plano. Tudo se resume, no curto prazo, à aprovação da reforma da Previdência. Embora a agenda Guedes não se limite a ela, todos os efeitos das reformas propostas estão circunscritos ao médio ou longo prazo.
Eis, portanto, o manifesto: para atender aos milhões de desempregados e de consumidores afogados em incertezas e vitimados pela desigualdade, é preciso desenhar políticas de curto prazo para retirar a demanda do Estado catatônico. Tais políticas não podem se resumir ao recente flerte de Paulo Guedes com a liberação do FGTS —como vimos no governo Temer, essa medida tem fôlego curto e não ameniza a aceleração da desigualdade de renda em curso. É preciso pensar de forma mais criativa e ousada.
Há tempos venho propondo o uso das reservas internacionais brasileiras para dar um alívio à economia. Antes de prosseguir, advirto: a ideia seria usá-las após a aprovação da reforma da Previdência, quando parte da incerteza fiscal de médio prazo terá sido resolvida.
Vender reservas é ideia que encontra muitas resistências, pois há quem argumente, não sem razão, que o nosso amplo estoque de US$ 380 bilhões é o que mantém o Brasil distante de crises mais agudas.
No entanto, hoje não temos mais vulnerabilidades externas relevantes. Conseguimos reduzir nosso déficit externo para pouco mais de 1% do PIB, não temos dívida externa em montante relevante e nossa dívida pública está praticamente toda denominada em moeda local. Isso significa que não temos riscos no balanço de pagamentos, o que nos abre um espaço importante.
De acordo com os cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil dispõe hoje de cerca de US$ 140 bilhões de reservas excedentes, isto é, de recursos acima do necessário para lidar com pressões externas. Ou seja, temos uma poupança que não está sendo utilizada. Neste momento de extrema fragilidade interna, deveria ser empregada para reduzir a insegurança econômica que impede o consumidor de consumir e a empresa de investir.
Uma ideia seria usar as reservas excedentes para abater a dívida pública, o que diminuiria os juros pagos pelo governo e o déficit nominal, abrindo espaço para algum aumento de gastos —por exemplo, com programas sociais para enfrentar a aceleração da desigualdade.
Vejam: esse uso das reservas possibilitaria o aumento de gastos, porém de maneira bastante indireta. Precisa-se de cautela para não desestabilizar o mercado de câmbio: a rápida conversão de dólares em reais tenderia a apreciar a moeda brasileira , prejudicando as exportações.
As reservas excedentes poderiam também ser usadas, como alguns economistas já haviam sugerido, para constituir fundo cujo objetivo seria o de financiar investimentos em áreas como infraestrutura. Josué Pellegrini, economista da Instituição Fiscal Independente (IFI), analisou essa possibilidade, além do emprego das reservas excedentes para abater a dívida pública, em nota técnica publicada pela IFI em agosto do ano passado.
Para além das dificuldades apresentadas por Pellegrini, tenho menos simpatia por esse uso das reservas, pois não atenderia às necessidades imediatas das famílias e dos consumidores aqui expostas, além de não ajudar a solucionar o drama do aumento da desigualdade.
A terceira possibilidade, bem mais controvertida e próxima de um flerte com a heterodoxia, seria a transferência das reservas excedentes, ou de parte delas, para o Tesouro Nacional, atendendo às restrições abordadas na nota de Pellegrini. Uma vez em poder do Tesouro, os recursos seriam destinados a aumentar diretamente a capacidade de elevar os gastos com programas sociais para reduzir a desigualdade e a insegurança econômica dos mais atingidos pela lenta recuperação.
Essa ideia difere do uso das reservas para abater dívida, pois os recursos transferidos para o Tesouro não seriam gastos primeiro para esse fim, mas diretamente em programas sociais. Mais uma vez, insisto: tal medida seria feita apenas após a aprovação da reforma da Previdência, sem a qual essa ideia provavelmente seria tiro pela culatra.
O uso direto de parte das reservas excedentes para turbinar programas sociais sem a âncora da mudança na Previdência seria visto por muitos economistas como espécie de populismo econômico, criando turbulência nos preços de ativos e prejudicando a atividade. Contudo, uma vez aprovada a reforma, penso que usos menos ortodoxos, como o sugerido, deveriam ao menos ser contemplados. O país não está em situação de poder se dar ao luxo de nada fazer no curto prazo.
Reafirmo esse ponto relembrando aos leitores as experiências de alguns países que tentaram fazer ajustes em suas economias sem qualquer base de apoio para o curto prazo. Os casos mais recentes não foram em países emergentes como o Brasil, mas em alguns europeus após a crise de 2008. Todos passaram por intensas turbulências políticas e sociais em razão das políticas de arrocho a que foram submetidos, o que possivelmente prolongou a saída da crise que sobre eles se havia abatido.
O caso mais emblemático é o da Grécia, mas Portugal e Espanha também viveram seus próprios infernos particulares, ainda que pudessem desfrutar do apoio financeiro das instituições europeias criadas para resolver a crise, do Banco Central Europeu e do FMI.
Para além desses exemplos, o próprio Brasil já demonstrou para si que a viabilidade das reformas só pode ser garantida com redes de proteção que evitem o caos social. O Plano Real, que completa 25 anos neste mês, e as reformas que o sucederam só foram possíveis porque a abrupta redução inflacionária removeu o ônus que impossibilitava o bom funcionamento da economia e recaía brutalmente sobre as camadas mais vulneráveis da população.
Basta olhar indicadores de pobreza e de desigualdade de renda para constatar que o Plano Real foi um grande equalizador, impedindo que uma situação de caos social e político ainda mais grave.
Volto, portanto, ao parágrafo inicial deste artigo. Por razões diversas, descuidos e desprezos de longa data, o Brasil está hoje preso numa armadilha de crescimento baixo que tende a agravar os problemas políticos, econômicos e sociais. Para sair dessa armadilha, é premente fazer reformas econômicas na linha das propostas pelo governo, ainda que alterações sejam necessárias para evitar danos às redes de proteção social.
Também é preciso ter o foco correto nas áreas de educação —sem um plano para tal não haverá aumento de produtividade—, de treinamento dos trabalhadores —principalmente com as mudanças tecnológicas em curso—, do meio ambiente. O descaso ambiental pode piorar ainda mais os rumos da economia brasileira no longo prazo, como revelam os diversos estudos acerca dos impactos econômicos perversos da negação da realidade.
Ao prevalecer a guerra ideológica nessas áreas, o governo presta um desserviço para si e para o país. Afinal, as reformas econômicas terão impacto diminuído caso se insista em ignorar a importância desses temas ou seguir na contramão do que revelam as evidências científicas. Mas mesmo isso já não basta.
Para que o Brasil tenha alguma chance de recuperar a segurança econômica, os gestores precisam reconhecer a importância de criar uma rede de sustentação no curto prazo. Para isso, será necessário resgatar o espírito criativo e inovador sem o qual estaríamos hoje ainda presos à hiperinflação.
Nossa crise atual é inédita. Esse ineditismo requer que tanto os que gerem a economia quanto os que dela entendem e sobre ela debatem saiam das suas zonas de conforto e parem de rotular à revelia. Há ideias ortodoxas que não funcionam, como as contrações fiscais sem sustentação social. Do mesmo modo, há ideias heterodoxas que resultaram em sucessos espantosos, como o Plano Real.
Fica o manifesto por um debate sem as amarras ideológicas que impedem a criatividade em momento tão crítico.
*Monica de Bolle, economista, é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University (EUA) e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics.
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