sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Crescer ou dividir? A falsa dicotomia da AL

Humberto Saccomandi - Valor Econômico

Desigualdade é um denominador da convulsão na região

A América Latina está em convulsão. Em alguns casos literalmente, como agora no Chile e na Bolívia, ou recentemente no Equador e na Venezuela, com protestos violentos. Em outros casos, o protesto é eleitoral, político, menos violento, mas não menos evidente. A desigualdade certamente é uma das causas principais, mas a falta de crescimento é outro fator importante. Governos da região parecem se concentrar num ou noutro problema. Essa é uma falsa dicotomia.

O caso mais clamoroso é o do Chile, considerado por décadas o país mais estável da região e que há duas semanas é palco dos maiores protestos desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet. As manifestações começaram contra um aumento pequeno na tarifa do metrô de Santiago, mas logo cresceram. Não era só pelos 30 pesos.

Nesta semana, o governo do presidente Sebastián Piñera acabou cancelando dois megaeventos que deveriam ocorrer no país neste fim de ano: a cúpula da Apec (associação de países do Pacífico) e a CoP-25 (a conferência do clima da ONU), numa admissão implícita de que os protestos devem continuar.

Sim, há o efeito de o Chile ser vítima do próprio sucesso, isto é, as demandas da população chilena cresceram à medida que o país enriqueceu mais do que os vizinhos. Mas as recentes manifestações expõem uma insatisfação crescente com um modelo econômico que limita o acesso a serviços públicos essenciais, como educação e saúde. O Chile vai bem, mas muito chilenos acham que não estão se beneficiando disso.

No Equador, um aumento no preço dos combustíveis, devido à retirada do subsídio estatal, detonou os protestos de outubro. O país, que foi recentemente socorrido pelo FMI, passa por um forte ajuste fiscal. De novo, a percepção de que o custo desse ajuste recai desproporcionalmente sobre os mais pobres estimulou as manifestações, que obrigaram o presidente Lenín Moreno a deixar a capital por alguns dias.

Em El Salvador, Guatemala e Honduras, três dos países com os piores indicadores socioeconômicos da região, a população protesta com os pés, tentando migrar rumo aos EUA em escala cada vez maior.

As três maiores economias da América Latina, Brasil, México e Argentina, não tiveram ondas de protestos recentes, mas trocaram clamorosamente de governo no período de um ano. O México tem o seu primeiro presidente esquerdista, Andrés Manuel López Obrador. O Brasil, com Jair Bolsonaro, tem um inédito governo liberal-conservador. A Argentina, com a vitória de Alberto Fernández, volta ao peronismo, o que parecia improvável pouco tempo atrás.

Na Bolívia, um dos países mais pobres da região, os protestos desta semana têm mais ver a percepção de fraude na reeleição do presidente Evo Morales. Ontem, duas pessoas morreram em confrontos, Mas o pior pode estar por vir, com um provável ajuste fiscal nos próximos anos.

Na Venezuela, o colapso econômico e a ditadura chavista geraram um êxodo de milhões de pessoas. Sem uma transição política, as perspectivas do país continuam sombrias.

Um primeiro denominador comum dessa agitação social e política parece ser a vergonhosa desigualdade. Dos 29 países mais desiguais do mundo, segundo o mais recente levantamento do Banco Mundial (de 2017), 16 estão na África (quase todos na área subsaariana) e 13 na América Latina e Caribe.

O coeficiente Gini, usado para medir essa desigualdade, é complexo de calcular e tem deficiências. Mas outras medições, como as séries do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, não retratam um quadro muito melhor. Gostamos de nos espelhar na Europa e nos EUA, mas nos parecemos mais com a África.

A desigualdade não é um fenômeno natural nem uma praga divina. É resultado de processos históricos e de políticas públicas. Como relatou a OCDE no estudo “Under Pressure: the squeezed middle class” (Sob pressão: a espremida classe média, de abril), “no caso do Brasil, os benefícios recebidos [do Estado] por domicílios de renda baixa e média são desproporcionalmente baixos. Com os domicílios de alta renda ocorre o contrário, eles representam 19% da população e 43% dos benefícios sociais”. Ou seja, temos uma taxação regressiva, na qual o Estado tira dos mais pobres para dar aos mais ricos, na forma de salários, aposentadorias e outras prestações sociais. A reforma da Previdência é um passo na direção de reduzir esse efeito Robin Hood ao contrário.

Combater a desigualdade certamente seria menos difícil com crescimento e dinamismo econômicos. Estagnação ou recessão reduzem o bolo econômico a ser dividido, o que gera uma disputa intensa e autofágica na sociedade.

A América Latina, porém, é a região que menos cresce no mundo. Segundo o Panorama Econômico Mundial do FMI, de outubro, a região cresceu 1% em 2018 e crescerá apenas 0,2% neste ano, bem abaixo da média dos emergentes, que é de 4,5% e 3,9%, respectivamente. Mesmo os países que mais crescem na região (Bolívia, Chile e Peru) estão abaixo disso.

À exceção do México, a América Latina está fora das cadeias globais de produção. A dependência da exportação de produtos primários deixa a economia regional à mercê da oscilação dos preços globais das commodities, que vêm caindo. Segundo a Cepal, as exportações da América do Sul vão cair 6,7% neste ano, enquanto o comércio global terá pequeno aumento.

Parte dessa falta de dinamismo depende do arranjo produtivo mundial e está fora de controle dos governos locais. Mas a região também é das piores em termos de facilitação dos negócios, como mostrou o relatório Doing Business, do Banco Mundial.

Governos da região costumam se dividir no enfrentamento dos problemas por trás do mal-estar atual: desigualdade é tema de esquerda e crescimento é prioridade da direita. Essa é uma dicotomia falsa. Sem mais crescimento, não há o que dividir. Sem mais igualdade, com um consumo mais disseminado e mais qualidade em educação e saúde, a economia cresce menos, como já admite o próprio FMI.

Nos países desenvolvidos, partidos de direita defendem políticas sociais e partidos de esquerda apoiam uma moderna economia de mercado. Essas são mais complementares do que excludentes e precisam dialogar mais aqui também. Essa sintonia fina é difícil, mas necessária. As nações bem-sucedidas mostram isso. As ruas demandam isso.

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