Flavio Gordon 09/06/2021
“Quem deseja saber por que tanta gente se mostra tão hostil para com as falas de autoridades de saúde pública e jornalistas de ciência deveria extrair a conclusão apropriada dessa história. Ao alertar o público sobre os perigos da desinformação, é recomendável que você mesmo não o desinforme.” (Bret Stephens, “Media Groupthink and the Lab-Leak Theory”, The New York Times, 31 de maio de 2021)
Ao longo de 2020, e até há poucas semanas, qualquer manifestação sobre uma possível origem laboratorial do Sars-CoV-2 era fulminada na grande imprensa com a pecha de “teoria da conspiração”. Embora não pudessem ter certeza alguma sobre o que diziam, jornalistas cujas formação intelectual e cultura geral são abaixo da média não hesitaram em fabricar matérias arrogantes e, com base na opinião de um ou dois “especialistas” selecionados a dedo, decretar a origem natural do novo coronavírus. A razão? Muito simples: a hipótese alternativa fora aventada por adversários políticos da militância midiática, notadamente Donald Trump e Jair Bolsonaro. A verdade não importava. A missão do coletivo das redações era clara: estigmatizar como radical, extremista e louco quem quer que sugerisse uma origem não natural do vírus. Vejamos alguns exemplos de autoproclamadas reportagens dedicadas ao cumprimento dessa missão.
Na Folha de S.Paulo, em 18 de março de 2020, a repórter Ana Carolina Amaral publicou a matéria “Coronavírus tem origem natural e não foi feito em laboratório, mostra estudo”, em cujo subtítulo se lia: “Teorias da conspiração falavam em manipulação do vírus pela China por vantagens econômicas”. O “estudo” referido na manchete, publicado na revista Nature Medicine no dia anterior, já foi abordado aqui na coluna. Tratava-se, na verdade, de uma carta redigida por um coletivo de virologistas liderados por Kristian G. Andersen, do Scripps Research Institute, e cujos erros factuais e conclusões não fundamentadas foram extensamente demonstrados pelo jornalista de ciência Nicholas Wade. Vale notar que é esse mesmo Andersen – um dos dois “especialistas” sobre cujas opiniões a imprensa construiu sua convicção quanto à origem do vírus – quem, contrariamente à sua opinião posterior, aparece num dos e-mails divulgados de Anthony Fauci dizendo, em janeiro de 2020, que o genoma do vírus apresentava sinais de manipulação.
A missão do coletivo das redações era clara: estigmatizar como radical, extremista e louco quem quer que sugerisse uma origem não natural do vírus
Em 22 de março de 2020, a revista Galileu, do grupo Globo, incluiu a hipótese de origem laboratorial numa lista das “5 teorias da conspiração mais bizarras sobre o novo coronavírus”. De modo a refutá-la, os autores da matéria faziam referência ao mesmo “estudo” da Nature Medicine.
Em 17 de abril de 2020, o El País Brasil publicou matéria intitulada “O coronavírus saiu de um laboratório? A ciência responde às teorias da conspiração”, cujo subtítulo ligava a dita teoria da conspiração ao nome do então presidente americano Donald Trump. A “ciência”, no caso, era também o “estudo” comandado por Kristian Andersen. A matéria trazia, ainda, a opinião de um personagem conhecido dos leitores desta coluna: Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma ONG dedicada à pesquisa sobre métodos de prevenção a doenças infecciosas.
A origem laboratorial do coronavírus: uma hipótese tanto mais robusta quanto mais proibida
Daszak foi o organizador e redator de uma carta publicada na The Lancet em fevereiro de 2020, e assinada por mais 26 cientistas, na qual a hipótese de origem laboratorial era tratada como teoria da conspiração. Junto com o tal “estudo” da Nature Medicine, o documento tornou-se a principal fonte a pautar de maneira hegemônica a imprensa mundial sobre o assunto. O que essa imprensa não informou ao público foi o potencial conflito de interesse envolvido, uma vez que o principal destinatário dos fundos captados pela EcoHealth Alliance – via Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid), agência dirigida por Anthony Fauci – era justamente o Instituto de Virologia de Wuhan, no qual se realizam pesquisas com “ganho de função” em coronavírus. Se o Sars-CoV-2 de fato escapou do laboratório por ele financiado, Daszak seria considerado culpado.
Em 21 de abril de 2020, o Estadão estampou na manchete a afirmação inequívoca: “OMS desmente teoria da conspiração de que o coronavírus saiu de laboratório”. No texto da matéria, lia-se: “A Organização Mundial da Saúde (OMS) negou nesta terça-feira, 21, uma das informações falsas mais amplamente divulgadas nos últimos dias sobre a pandemia do novo coronavírus, esclarecendo que o patógeno é de origem animal e não vem de nenhum laboratório”. A reportagem foi reproduzida por outros portais, como, por exemplo, o Terra.
Também em abril de 2020, o jornal Extra publicou matéria caçoando de um terço dos americanos, para os quais, segundo pesquisas, o coronavírus fora criado em laboratório. “O avanço da Covid-19 nos Estados Unidos faz crescer não só o medo entre a população, mas também as teorias da conspiração. Um terço dos americanos acredita que o coronavírus é uma criação de laboratório” – diziam, com um misto de desprezo e condescendência, os autores da reportagem. E quase podíamos ouvir as gargalhadas na redação.
Em julho de 2020, o jornalista Pedro Prata publicou no Estadão uma matéria ensinando como identificar e rebater uma teoria da conspiração. Segundo o texto, as “acusações à China de ter criado a Covid-19 em laboratório” não passavam de boato, uma teoria da conspiração já verificada e refutada pela agência de “checagem de fatos” do jornal, Estadão Verifica. O autor elencava certos padrões supostamente recorrentes das “teorias da conspiração” e incitava o leitor a “nunca mais acreditar em uma”.
Ao citar Shi Zhang-li como autoridade científica imparcial, o jornalismo omitia que era do interesse dela que a hipótese de origem laboratorial continuasse sendo ignorada pela opinião pública mundial
Já em fevereiro deste ano, o jornal O Globo reproduziu reportagem da Reuters intitulada “Equipe da OMS visita laboratório de Wuhan que deu origem a teorias da conspiração sobre vírus criado artificialmente”, com o seguinte subtítulo: “pesquisadores se encontraram com uma das primeiras virologistas a identificar vírus que causa a Covid-19; hipótese de que pandemia começou com vazamento no centro de pesquisa é rejeitada por cientistas”. No corpo da matéria, havia a informação de que a tal primeira virologista a identificar o Sars-CoV-2 era Shi Zhang-li, a “Mulher Morcego”, líder das pesquisas com coronavírus de morcegos no Instituto de Virologia de Wuhan (IVW), e também conhecida dos leitores desta coluna. O jornal apresentava Shi simplesmente como “uma renomada pesquisadora de vírus que há muito se concentra em coronavírus de morcegos”.
Graças a essa descrição eufemística, os leitores do jornal não ficavam sabendo que a principal atividade da “renomada pesquisadora” era justamente realizar experimentos em “ganho de função”, que consistem na manipulação laboratorial de coronavírus de morcegos a fim de torná-los aptos a infectar células humanas. Portanto, ao citá-la como autoridade científica imparcial, o jornal omitia que, por estar diretamente implicada no caso, na condição de possível responsável por abrir a caixa de pandora da Covid-19, era de interesse de Shi Zhang-li que a hipótese de origem laboratorial continuasse sendo ignorada pela opinião pública mundial.
Pior ainda: para chancelar a opinião da virologista chinesa descartando a origem laboratorial do vírus, a reportagem citava ninguém menos que o onipresente Peter Daszak, sujeito cuja ONG, como já vimos, financiava os perigosos experimentos comandados pela “Mulher Morcego” no IVW. “Reunião extremamente importante hoje com a equipe do IVW, incluindo a dra. Shi Zhengli. Discussão aberta e franca. Perguntas-chave feitas e respondidas” – foram as palavras de Daszak reproduzidas na matéria, que revelavam um claro intuito de encerrar logo o assunto. Ou seja, àquela altura, o jornal O Globo tomava ainda como verdade científica inquestionável (“cientistas mostram”, “a ciência prova” etc.) a opinião de dois personagens cujos conflitos de interesse eram evidentes, já que, se a hipótese de o Sars-CoV-2 ter escapado de um laboratório começasse a ser seriamente considerada, ambos estariam diretamente implicados.
Mas assim é, segundo a imprensa, o mundo encantado da “ciência, ciência, ciência”. Um mundo deveras tão maravilhoso que até a revista de fofocas Capricho nele resolveu se aventurar: “Coronavírus não foi criado em laboratório e cientistas mostram mais provas” é a manchete de uma reportagem da blogueira Isabella Otto, que trazia o seguinte subtítulo: “Apesar de alguns ainda acreditarem na teoria da conspiração, estudo comprova que vírus em humanos está ligado ao consumo inapropriado de animais selvagens”. No corpo da matéria, lia-se ainda esta sentença definitiva, redigida em português rudimentar, e que hoje soa como um esquete de stand-up comedy: “Para os negacionistas que ainda acreditam que o coronavírus foi criado em laboratório pela China, na tentativa de uma dominação mundial, uma nova evidência com relação ao vírus chega para acabar de vez com essa teoria da conspiração”.
Notem que, em todas essa supostas “reportagens”, expressões como “teoria da conspiração” e “informações falsas” nunca aparecem entre aspas, como citação de opiniões de terceiros. Tampouco são graduadas pelo já tradicional suposto (“supostas teorias da conspiração”, “informações supostamente falsas”, “supostos boatos” etc.). Em vez disso, os militantes das redações, de maneira precipitada e desonesta, para não dizer tacanha, trataram essa opinião parcial (e, ora já sabemos, suspeita) como verdade absoluta, consensual e consagrada – como se fora “a voz da ciência”. Mas a verdade não é filha da ciência, e muito menos de uma imprensa madrasta. A verdade, como diz o provérbio latino, é filha do tempo.
E o fato é que o tempo passou e cumpriu o seu papel. Hoje, com o Congresso americano investigando seriamente a hipótese de origem laboratorial, com o novo presidente americano – queridinho (e não mais inimigo) dos jornalistas – cobrando investigações sobre ela, com relatórios americanos de inteligência dando conta do adoecimento de pesquisadores do IVW em novembro de 2019, com vários cientistas se posicionando a favor de sua robustez em revistas científicas de destaque, com o próprio presidente da sino-afetiva OMS admitindo sua plausibilidade, com as Big Techs revendo sua política de censura sobre o tema, e até com a grande imprensa estrangeira mudando sua linha editorial e ensaiando um mea culpa, a grande imprensa brasileira foi forçada a mudar de atitude. Mas, para a surpresa de ninguém, o fez com a desonestidade que tem sido a sua marca registrada ao longo dos últimos anos, sem reconhecer os erros e sem se desculpar com aqueles a quem estigmatizou de “teóricos da conspiração”.
E o pior: agindo como se sempre tivesse tratado normalmente do assunto. Reproduzindo o noticiário internacional, nossos jornalistas hoje falam da outrora chamada “teoria da conspiração” (só agora recorrendo às aspas) na terceira pessoa, com um distanciamento de quem constatasse a simples presença de um fenômeno natural, e não como parte diretamente envolvida na fabricação desse estigma, como colaboradores ativos numa vasta campanha de ocultação e censura da informação. Sem assumir a culpa pela má conduta, redobram a carga, dessa vez para apagar as pistas da desinformação anterior.
Peguemos como exemplo a mudança de tom na redação do Estadão. Em abril de 2020, como vimos acima, o jornal paulista tratava inequivocamente a hipótese de origem laboratorial como “teoria da conspiração” e “informação falsa”. Pouco mais de um ano depois, o mesmo jornal escreve: “Cientistas em todo o mundo estão revisitando um mistério central da pandemia de Covid-19: onde, quando e como o vírus que causa a doença se originou? Há duas principais teorias: uma diz que o vírus saltou de animais, possivelmente morcegos, para humanos; a segunda defende que ele escapou acidentalmente um laboratório de virologia de Wuhan”.
Curiosamente, a hipótese de origem laboratorial já não é tratada como teoria da conspiração, mas como teoria e ponto, tão legítima quanto a hipótese alternativa de origem natural. “Há duas principais teorias” – dizem hoje os redatores. Mas, se é assim, por que diabos, então, o jornal passou o ano passado inteiro chamando quem afirmava justamente isso de “teóricos da conspiração”? Cadê a admissão de que essas pessoas estavam certas e o Estadão, errado? E o pedido de desculpas por conta de seu negacionismo? Teremos um mea culpa em forma de editorial?
Essas são perguntas retóricas, evidentemente. Creio que, no ponto em que estamos, ninguém mais espera um comportamento intelectualmente honesto e profissionalmente ético da maioria dos grandes jornais e revistas brasileiros. Ninguém espera, por exemplo, que Pedro Prata, jornalista do Estadão autor do já mencionado guia antiteorias da conspiração, resolva agora publicar um guia para prevenir os leitores contra a manipulação midiática, notadamente aquela que censurou informações sobre a possível origem laboratorial da Covid-19. De resto, um tal guia seria desnecessário a esta altura. Para que os leitores aprendam a identificar e confrontar a manipulação midiática, basta olhar para a atuação da imprensa no caso em tela, um exemplo paradigmático de antijornalismo, que marca um colapso midiático quiçá definitivo.
Mas nem tudo são más notícias (ou notícias falsas). Do fato de que, tendo mudado de metiê, a imprensa dita “profissional” não o pratique mais não se depreende que o jornalismo investigativo esteja morto e enterrado. Ao contrário, o próprio debacle intelectual e moral da velha mídia fez com que essa modalidade de jornalismo ressurgisse sobre novas bases, na internet, de uma maneira mais autônoma e descentralizada.
No próximo artigo, veremos um claro sinal desse ressurgimento, no modo como um grupo de jornalistas investigativos e pesquisadores amadores autodenominado Drastic (Decentralized Radical Autonomous Search Team Investigating Covid-19) conseguiu romper a espiral de silêncio midiática, driblar a censura das Big Techs e, por meio de um mutirão virtual para a coleta de dados e evidências, forçar o ingresso da hipótese de origem laboratorial do Sars-CoV-2 no debate público mundial. De início restritas a intermináveis threads no Twitter, suas descobertas tornaram-se cada vez mais consistentes e difundidas, despertando a atenção de cientistas, jornalistas e autoridades. Trata-se verdadeiramente de uma história de cinema, que os leitores da Gazeta merecem conhecer em detalhes.
Flavio Gordon
Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017). **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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