XICO GRAZIANO
O ESTADO DE S.PAULO
O teatro separatista, mais uma vez, repetiu-se no campo. Na primeira cena, o governo anuncia o Plano Agrícola e Pecuário para a "agricultura empresarial". Passado alguns dias, divulga o Plano Safra da "agricultura familiar". Belos discursos, amoldados para cada evento, animam uma trama típica do maniqueísmo político. Um país, duas agriculturas.
O Brasil é a única nação importante do mundo que separa a sua agropecuária em dois lados: o do "agronegócio" e o "familiar". Uma política que deveria reforçar a ação pública em favor dos pequenos produtores no campo, desgraçadamente, serve ao modo de governar que distingue a sociedade entre "nós" e "eles". Ou, pior, entre os "bons" e os "maus". Dividir para reinar, ensinava Maquiavel.
Quem, em 1996, criou o programa de apoio e fortalecimento da agricultura familiar (Pronaf) foi o então presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia inicial era, na prática, resguardar uma fatia dos recursos do crédito rural - sempre abocanhado pelos poderosos do agro -, obrigando sua alocação compulsória aos pequenos produtores rurais. Estes foram definidos como os de área máxima com até quatro módulos fiscais. Havia ainda a destinação de recursos públicos, a fundo perdido, para investimentos na infraestrutura de produção e comercialização de núcleos associativos e cooperativados. Funcionou muito bem.
Essa estratégia de desenvolvimento rural considerava que, pequenos ou grandes, todos os agricultores, independentemente das características da produção, precisam e merecem progredir na vida, incorporando as modernas tecnologias para elevar a produtividade, conquistar qualidade, conseguindo, assim, competir na economia de mercado. Sob esse prisma, qualquer política voltada para o meio rural deve ser integradora. Jamais divisionista.
Ao mudar o governo, de Fernando Henrique Cardoso para Lula, a gestão da agricultura brasileira acabou separada em dois ministérios. A partir de então, o conceito de "agricultura familiar" começou a ser totalmente deformado, passando a significar os "pobres" no campo, em oposição aos "ricos", aglutinados no "agronegócio". Jamais, em tempo algum, se produziu tamanha bobagem no pensamento agrário. Mera, e retrógrada, ideologia.
Sabem os estudiosos da economia e da administração, mesmo os iniciantes, que por "familiar" se considera a gestão de um negócio, independentemente do tamanho do empreendimento. Ao contrário das corporações, uma empresa familiar se rege pelas decisões de seus próprios donos. Na agricultura significa que os proprietários tocam com seu trabalho a fazenda, havendo apenas auxílio eventual de mão de obra assalariada. Familiar, sempre, refere-se ao comando da atividade produtiva.
Nos EUA, as estatísticas mostram que cerca de 90% dos agricultores se classificam como familiares. Graças ao avanço da mecanização, um pai com dois filhos, por exemplo, mostra-se capaz de conduzir áreas de terra cada vez maiores, submetidas à elevada tecnologia. Essa tendência da agricultura norte-americana se assemelha aqui, no Brasil, especialmente à das fronteiras do Centro-Oeste. Grandes fazendas, com soja ou milho, exploram-se espetacularmente com mão de obra familiar, não raro a mulher participando dos trabalhos de campo, sentada no banco do trator, ao lado do marido e dos filhos. Agronegócio familiar.
Inexiste contradição nos termos. Mas, por aquelas razões difíceis de explicar, talvez por causa da histórica ojeriza ao sistema latifundiário, aqui somente se considera familiar quem é pequeno produtor rural. Passou a ser o tamanho, e não a gestão, o critério fundamental. Remetido ao jogo da política, o conceito de agricultor familiar desvirtuou-se completamente, acabando associado à pobreza rural, ao atraso, à subsistência na terra. Nele se incluíram os assentamentos da reforma agrária.
A esguelha ideológica cresce quando se limita o agricultor familiar à produção de comida popular. O discurso enviesado diz assim: "O agronegócio serve à exportação, quem alimenta o povo é a agricultura familiar". Besteira pura. No Paraná, por exemplo, que é grande produtor nacional de soja, quem domina o campo são os sitiantes enquadrados no Pronaf. Seu sucesso depende do cooperativismo. Na famosa Cocamar, situada em Maringá, entre 12 mil associados, 80% cultivam até 50 hectares. Conduzem suas lavouras familiarmente, participam diretamente do agronegócio, remuneram-se pela receita da exportação dos grãos. Modestos, mas capitalistas, numa boa.
Sim, é verdade que a maioria dos alimentos básicos (arroz, feijão, mandioca, leite, batata) advém de pequenas propriedades. Fato estatístico. Quando, porém, se analisam as condições da produção e o fluxo de comércio, verifica-se que, majoritariamente, o abastecimento nas grandes cidades se garante pelo trabalho de agricultores que, embora pequenos, utilizam elevada tecnologia, ligados no mercado. Pequenos, e bons, empresários rurais.
Essa complexidade da economia agrária submerge no palco da encenação política. Quando a presidente Dilma Rousseff anunciou, primeiramente, um crédito de R$ 156,1 bilhões para o agronegócio e, depois, de R$ 24,1 bilhões para a agricultura familiar, cavou artificialmente um fosso que, na realidade, inexiste na roça. As cerimônias turvam a realidade agrária.
A agricultura sustentável de que o Brasil carece não se construirá apartando os agricultores entre patronais e familiares, como se existissem os de primeira e os de segunda classe. Ao contrário. Ao favorecer os mais fracos, incluindo os assentados da reforma agrária, uma política agrícola inteligente buscará integrá-los, juntos, ao ciclo do progresso tecnológico no campo.
Sem segregação.
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