Editorial | Valor Econômico
Partidos querem usar dinheiro público até mesmo para se defenderem da acusação de que o utilizaram ilegalmente
As investigações da Operação Lava-Jato foram didáticas ao demonstrar a ampla gama de contravenções que pode desaguar no caixa dois das campanhas eleitorais. O projeto de lei 5029/2019 que foi encaminhado à votação no Senado, depois de passar rapidamente pela Câmara e ser aprovado por 263 a 144, buscava tornar mais difícil o entendimento das prestações de contas dos partidos, abria mais oportunidades para o fluxo de dinheiro mal contabilizado pelos canais consagrados para esta finalidade, entre eles serviços advocatícios e de consultorias. O projeto era uma desfaçatez e um retrocesso. Sob pressão, o Senado ontem aniquilou todos os pontos polêmicos em que se baseava o PL.
O texto do projeto não fazia questão de esconder o que busca. Doações recebidas para gastos com advogados e contabilidade não entrariam mais no cômputo de gasto eleitoral. Pagamento destes gastos feito por terceiros também não seria considerado doação eleitoral. Já o dinheiro dos fundos eleitoral e partidário poderia ser usado para pagá-los até mesmo no caso de defesa contra ações da Justiça Eleitoral movida por irregularidades na campanha ou na prestação de contas. No caso de alguns gastos, como passagens aéreas, o usuário sequer precisaria ser filiado ao partido.
A prestação de contas, por sua parte, se tornaria inescrutável. O PL queria acabar com a padronização das informações enviadas à Justiça Eleitoral, por sistema eletrônico. Uma vez descobertas incorreções, algo que se tornaria mais difícil com o fim da padronização, os partidos poderiam corrigir erros, omissões e atrasos até a data de seu julgamento - tornando provavelmente inócua a ação da Justiça Eleitoral. E, lançando um olhar maroto para seu próprio passado, os partidos simplesmente estabeleceram anistia para todos os erros e maracutaias que ainda não tenham sido objetos de sentenças definitivas.
O projeto abria a possibilidade de criação de um instituto com personalidade jurídica própria para administrar verbas destinadas à política de estímulo à participação feminina. Na mais recente eleição, os partidos não destinaram corretamente dinheiro para cumprir a cota de candidatas nas legendas - o PSL, do presidente Jair Bolsonaro, ainda está perdido em meio a um laranjal, sob denúncia de várias delas que teriam sido convidadas a devolver parte dos recursos a alguns líderes e coordenadores regionais de campanha.
O caixa dois é crime eleitoral e a Lava-Jato bateu em uma dificuldade, em vários casos intransponível, de obter provas de benefícios prestados em troca de recursos para o financiamento das campanhas. Um batalhão de acusados na operação foram remetidos, por ordem do Supremo Tribunal Federal, para investigação da Justiça Eleitoral e, se culpados, punidos com as penas leves da legislação eleitoral. Além disso, os partidos manobraram e mandaram para o espaço o projeto do ministro da Justiça Sergio Moro para tipificar como crime distinto o caixa 2, aumentando penas. A tipificação saiu do projeto e ficou para depois - isto é, talvez nunca.
O fundo partidário para as eleições municipais subirá para R$ 959 milhões, após manobra que obrigou a correção pela inflação no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias. Outra manobra em curso no PL foi a de retirar o teto do fundo eleitoral, criado como compensação pela proibição do financiamento eleitoral por empresas, permitindo valor maior que o R$ 1,7 bilhão atual. O fato é que se pretendia aumentá-lo, mesmo em meio à penúria da União. A decisão no Senado foi manter R$ 1,7 bilhão para 2020 e determinar que seu valor seja estabelecido pela lei orçamentária anual.
Houve vários erros nessa história, e o primeiro deles, irremovível hoje, é tratar os partidos como se fossem parte da máquina de Estado, a serem custeados da mesma forma com que se bancam com recursos públicos a construção de hospitais e escolas. Como agremiações da sociedade civil, e de direito privado, os partidos deveriam ser capazes de se sustentar com apoio de seus filiados e por iniciativas próprias. Não são, o que leva a paradoxos como o que constava do PL: os partidos usarão dinheiro público para pagar advogados que os defendam das acusações de mau uso do dinheiro público.
Novo, Psol, PDT, Rede, Podemos e PMN votaram contra o PL na Câmara - mais 38 deputados do PSL (ante 10 deles a favor). Grandes beneficiários do fundo partidário, como PT, PMDB, DEM, PSDB o aprovaram. O líder do PT, senador Humberto Costa, considerou o PL “fundamental para a consolidação da democracia”.