EDITORIAL O ESTADÃO
O ESTADO DE S. PAULO
A última cúpula do Mercosul, em Caracas, prestou somente para reafirmar que o bloco econômico não tem outra utilidade senão a de servir como palanque político. O Mercosul está sendo usado, cada vez mais, para legitimar posições ideológicas que representam o atraso e que estão condenando esta parte da América do Sul à estagnação. Esse melancólico papel ficou claro quando os chefes de Estado ali reunidos deram muito mais importância a tópicos que nada têm a ver com questões comerciais - que deveriam ser, afinal, sua preocupação central.
A presidente Dilma Rousseff até tentou trazer um importante assunto para a pauta - a defesa de um acordo de livre-comércio do Mercosul com a Aliança do Pacífico, o dinâmico bloco formado por México, Peru, Colômbia e Chile. Mas foram palavras ao vento, pronunciadas com o único propósito de caracterizar Dilma, candidata à reeleição, como uma presidente preocupada em realizar bons negócios para o Brasil e em ampliar os horizontes do Mercosul. Mas o discurso da petista caiu no vazio e nem foi mencionado na declaração final da cúpula Assim como Dilma, a maioria dos demais chefes de Estado parecia estar ali apenas para cuidar de seu peixe. Mercosul, cada um por si foi o apropriado título de reportagem do jornal El País sobre os bastidores do encontro.
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, por exemplo, usou a reunião para obter respaldo a seu autoritarismo e a suas desastrosas iniciativas econômicas, que recentemente causaram convulsão no país. Logo no início da declaração oficial do encontro, por exemplo, os chefes de Estado condenaram "todo tipo de violência e intolerância que busque atentar contra a democracia e suas instituições, tais como os lamentáveis acontecimentos que ameaçaram, no início do ano, a ordem democrática legalmente constituída pelo voto popular" na Venezuela. Portanto, para o Mercosul, foi a oposição a Maduro que atentou contra a democracia, e não a resposta truculenta do governo, que causou mais de 30 mortes e resultou na prisão arbitrária de dissidentes.
Na declaração final, raras foram as menções a iniciativas para articular os mercados regionais - e mesmo essas poucas sugestões retratam o viés bolivariano que predomina no bloco. Presidente do Mercosul e anfitrião do encontro, Maduro ficou à vontade para desfiar seu rosário de bobagens sobre integração. Ele defendeu, por exemplo, a união entre o Mercosul e a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), o bloco bolivariano criado pelo falecido caudilho Hugo Chávez. A intenção, disse o venezuelano, é "ir muito além do que se convencionou chamar de livre-comércio". Para ele, é necessário "transcender" esse conceito, "chegando ao comércio justo e integrador". A situação de penúria econômica da Venezuela mostra o que tal discurso significa. Embora a prudência recomendasse a rejeição da proposta de Maduro, o Mercosul, que não consegue deslanchar nem em seu atual formato, aceitou negociar a criação dessa "zona econômica complementar", conforme se lê em um dos documentos da cúpula.
Já a presidente argentina, Cristina Kirchner, aproveitou a cúpula para obter apoio do Mercosul à sua guerra contra os credores apelidados de "abutres" aqueles que não aceitaram os termos da renegociação da dívida do país e ganharam na Justiça americana o direito de receber integralmente o que a Argentina lhes deve. Cristina, que agora preside o Mercosul, foi bem-sucedida: na declaração final, consta uma nota especial que lhe oferece respaldo "irrestrito".
Abastardado, reduzido cada vez mais a um fórum de oportunistas bolivarianos, o Mercosul caminha para a irrelevância, deixando passar excelentes possibilidades de negócios mundo afora. Quem melhor resumiu esse estado de coisas foi o sempre honesto presidente uruguaio, José Mujica, após o encontro de Caracas: "Quando volto ao Uruguai (depois de alguma reunião do Mercosul), as pessoas me perguntam o que decidimos... Eu sei lá o que decidiram. Fizemos uma declaração".
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