domingo, 3 de agosto de 2014

Mercosul é mais grupo ideológico que bloco comercial

EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO  


O projeto de integração por meio do comércio foi adiado de uma vez por todas. Até porque a Argentina, em crise cambial, empurrará o comércio para o fundo do poço


Admitamos que o estratégico projeto do Mercosul, a união aduaneira criada entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai houvesse dado minimamente certo. Ainda assim, a crise de dimensões institucionais por que passa a Argentina desse 2001, com a implosão do câmbio fixo, seria um obstáculo muito difícil de transpor pelo mercado comum.

As dificuldades da Argentina, o segundo parceiro mais importante do bloco, já teriam levado a uma revisão do tratado do Mercosul, para reduzir sua abrangência a uma aliança de livre comércio, a fim de que cada país pudesse negociar acordos comerciais sem a camisa de força da união aduaneira. Só não aconteceu por razões político-ideológicas.

Aliás, a união aduaneira foi revogada na prática há muito tempo, desde que a Argentina passou a erguer barreiras protecionistas contra exportações brasileiras. Ali, a união acabou de fato. Sua característica são fronteiras abertas ao comércio entre países do bloco, com tarifas externas comuns para o resto do mundo. É o que não existe há tempos.

O Mercosul é mantido formalmente como está apenas por interesses político-ideológicos comuns aos governo do PT no Brasil, ao kiercherismo na Argentina, bolivarianos e chavistas em Venezuela, Equador e Bolívia. Para a conversão do Mercosul de bloco econômico e comercial em plataforma política foi essencial a coincidência de Lula e Néstor Kirchner chegarem ao poder em Brasília e em Buenos Aires juntos, em 2003. Ambos se uniram para soterrar de vez as negociações em torno da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), vista pelo Planalto e Casa Rosada como instrumento do “Império”. A partir da aliança entre Lula/PT/Dilma e os Kirchner, o resto veio pela força da gravidade.

Um dos piores momentos do período em curso foi a no mínimo temerária inclusão da Venezuela chavista no bloco, por meio de vergonhosa manobra de expulsão temporária do Paraguai, para que a não aprovação da entrada do novo sócio pelo Congresso paraguaio não impedisse a unção dos chavistas.

A última reunião de cúpula do Mercosul, esta semana, em Caracas, foi prova irrefutável da conversão da entidade numa plataforma política: boa parte do tempo foi gasta com declarações de apoio à Argentina de Cristina Kirchner, convertida em vítima de fundos “abutres”, por terem estes ganhado na Justiça americana seus direitos como credores, e críticas a Israel pelos ataques em Gaza.

Para fortalecer o projeto de um Mercosul como trincheira política terceiro-mundista, tratou-se de incorporar também a Bolívia de Evo Morales, outro produto do chavismo.

Pode-se considerar que o projeto original do Mercosul, de integração de economias pelo comércio, foi adiado de uma vez por todas. Até porque a Argentina, em fase de agravamento da sua crise cambial, empurrará ainda mais o comércio no bloco para o fundo do poço. Resta fazer discurso, como em Caracas.
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