Delfim Netto
Valor Econômico 27 04 18
Antônio Delfim Netto chega aos 90 anos, no dia 1º de maio, como um dos mais influentes economistas do país. Suas opiniões têm sido uma referência no debate nacional há pelo menos cinco décadas. Durante esse tempo, Delfim andou pelos extremos - foi de bruxo do "milagre econômico" nos anos de chumbo a oráculo da esquerda no governo do PT. Mais recentemente, participou da elaboração do Ponte para o Futuro, programa de reformas do MDB, que é a base do governo de Michel Temer.
Foram tantas idas e vindas na política econômica doméstica dos últimos anos que, mesmo não sendo um pessimista, Delfim, hoje, se rende aos fatos: "Nós estamos perdidos no passado! O Brasil não pode mais continuar da forma que está!", afirma. Até meados dos anos 1980, o país crescia mais do que o mundo, lembra ele. Desde então, cresce menos do que a economia mundial
"Nós estamos nos afastando do mundo. Cometemos erros brutais!", lamenta Delfim, e completa com uma conclusão melancólica: "O que é o Brasil hoje? Vamos falar a verdade, sem rebusco, sem complicação: o Brasil é uma colônia da China".
O nível de judicialização da atividade administrativa, combinado com a politização da Justiça, tornou o Brasil "inadministrável!", adverte. "Se o presidente que assumir em 2019 não for capaz de impor a sua orientação, se não for capaz de reunir o concílio dos cardeais - o presidente do Supremo e o presidente do Congresso - e dizer que cada um tem que voltar para a sua caixinha e seguir o livrinho, a Constituição, não vai funcionar. Vai acabar sendo impichado."
O exemplo de que as coisas não vão bem vem de todos os lados, em pequenas doses. Delfim contou, indignado: "O metrô de São Paulo tinha dois sindicatos, um relativo ao metrô público e o outro, o sindicato das linhas concedidas, dos trabalhadores do setor privado. O do setor privado sempre se recusou a fazer as greves políticas que o outro está acostumado a fazer. Pois bem: em uma decisão agora, o Superior Tribunal do Trabalho incorporou o sindicato do setor privado ao do setor público. Essa decisão é uma violação da Constituição, que no artigo 173 diz [ele pega um exemplar da Carta de 1988 e começa a ler]: '... a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei'".
Os sinais da decadência do país estão, para ele, em questões aparentemente triviais: "Hoje tem mais de 5 milhões de brasileiros de 17 a 24 anos estudando em cursinhos para fazer concurso público! Essa casta que se apropriou do poder, sem controle social, é tão extraordinária que se tornou o objetivo da sociedade!".
Dos 20 anos da ditadura militar, Delfim comandou a economia brasileira por 13 anos. Foram 7 anos à frente do Ministério da Fazenda nos governos dos generais Costa e Silva e Garrastazu Médici (de 1967 a 1974) e 6 anos como titular da pasta do Planejamento, precedido de uma breve passagem pelo Ministério da Agricultura, durante a Presidência do general João Batista Figueiredo (de 1979 a 1985). Com a democratização, foi eleito deputado federal por cinco mandatos (de 1987 a 2007) e teve participação ativa na elaboração da Constituição de 1988.
Em 1975, um ano após a posse do general Ernesto Geisel na Presidência da República (1974-1979), Delfim foi enviado a Paris onde, por três anos, assumiu o comando da embaixada brasileira. O exílio foi a forma de Geisel abortar a pretensão do ex-ministro de candidatar-se ao governo de São Paulo e vir a ser, eventualmente, candidato à Presidência da República.
São dos tempos de Paris as primeiras notícias sobre a existência do Relatório Saraiva, documento no qual o coronel Raimundo Saraiva, então adido militar da embaixada brasileira, fazia denúncias de corrupção, como a cobrança de comissões sobre empréstimos de bancos franceses pela embaixada chefiada por Delfim. Como chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e já escolhido sucessor de Geisel, Figueiredo despachou dois agentes para a capital francesa, para apurar aquelas denúncias. O relatório nunca foi divulgado, as tais denúncias não foram comprovadas e o general, ao assumir a Presidência, o convidou para a pasta da Agricultura em março de 1979.
Após cinco meses, Delfim substituiu Mário Henrique Simonsen no Ministério do Planejamento para pilotar o naufrágio do país que, àquela altura, estava quebrado. O roteiro daquela turbulência é bem conhecido: o México declarou moratória da dívida externa e levou de roldão o mundo subdesenvolvido para a tenebrosa crise da dívida. No Brasil esse período ficou conhecido como "a década perdida".
Os burburinhos sobre o czar da economia eram variados. Uns diziam que ele era sócio de Amador Aguiar no Bradesco, outros que ele era um dos donos do Bordon, o frigorífico de Geraldo Bordon que muitos anos depois passaria para as mãos dos Irmãos Batista (Joesley e Wesley), transformando-se na JBS. Nada foi provado.
Na manhã do último dia 6 de março, Delfim viu os agentes da Polícia Federal entrarem na sua residência com mandato de busca e apreensão. Era mais um desdobramento da Operação Lava-Jato, destinado a apurar se o economista recebeu propina das empreiteiras para montar um consórcio que disputou o leilão da usina de Belo Monte. Os policiais levaram os celulares.
Sobre o episódio, ele explica: "Meu papel foi muito simples. Fui estimulado pelo então líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral [PT- MT], a organizar um outro consórcio, porque só tinha um concorrente [formado pelas grandes empreiteiras]. Meu papel, na verdade, foi simplesmente reunir as pessoas. Esse consórcio tinha as pequenas empresas, que eram subcontratadas pelas grandes empreiteiras em todas as suas obras. E tinha a Mendes Júnior, que havia coordenado Itaipu! Portanto, não é possível dizer que o consórcio, que venceu o leilão de Belo Monte em uma disputa pública, não tinha capacidade para tocar a obra!". O concorrente, que ele chama de "cartel", desistiu do leilão.
Eu devia ser remunerado com honorários por conta de ter estimulado [a formação de um outro consórcio para estabelecer competição no leilão], só isso. Aí acontece o seguinte: o governo decide juntar tudo. Faz uma lambança, juntando vencidos e vencedores numa única coisa. E misturaram a minha remuneração, meus honorários com essa lambança política."
Não ficou clara a razão pela qual a PF considerou o pagamento a Delfim como "propina", já que essa denominação é usada para caracterizar o pagamento feito a um funcionário público em troca de vantagem indevida. Delfim é um consultor privado.
"Há um equívoco mortal nesse troço, que eu espero que seja esclarecido. Espero que o Ministério Público, a Polícia Federal entendam esse fato elementar: que eu não tenho nada que ver com a patifaria que foi feita depois. E o que eu recebi - que é 20% do que eles falam [dos R$ 15 milhões mencionados, ele teria recebido, portanto, uns R$ 3 milhões], se for tanto - são honorários pelos serviços prestados. A demonstração do serviço foi o leilão."
O fato de ter sido envolvido em uma operação da Lava-Jato não o leva a criticar as investigações. "A Lava-Jato é um ponto de inflexão na história do Brasil. Ela pôs a nu um incesto entre um Estado que estava aparelhado e uma parte do setor privado. E nunca mais o Brasil vai ser o mesmo. Isso nunca mais vai se repetir", acredita.
O ex-ministro condena, no entanto, o processo de punição, que não é determinado pela investigação, mas acaba sendo aplicado às empresas e não somente aos seus donos, como pessoas físicas. "Está se desmontando aquilo que foi construído ao longo de mais de 50 anos, que é a formidável expertise do Brasil em obras de infraestrutura!", afirma.
Quando Delfim começou na vida pública, como secretário da Fazenda do governo de São Paulo, o Brasil já contava com uma indústria razoável, mas era um país fortemente dependente do café, produto que respondia por cerca de 60% das exportações.
Ele formou-se em economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), escola que ajudou a se consolidar, onde teve intensa vida acadêmica e hoje é professor emérito. Em 1958, Delfim obteve o grau de doutor com a tese sobre "O Problema do Café no Brasil". O grande problema do Brasil era como se desvencilhar da forte dependência do café sem diminuir a sua produção.
Costa e Silva já havia sido designado como o próximo presidente da República e Delfim foi convidado a fazer uma exposição sobre a economia brasileira para o general. "Fiz a exposição por uma manhã inteira, em um apartamentozinho em Copacabana. Mostrei para ele aquela dependência do café, que representava 60%, 65% das nossas exportações. A demanda de café tinha características próprias, era inelástica, e o café tinha problema de oscilação da produção. Minha ideia era reduzir a dependência do café sem diminuir a sua produção. Era preciso aumentar a participação dos demais setores", conta ele.
Pouco depois desse primeiro e único encontro com Costa e Silva, Delfim foi convidado para ser o seu ministro da Fazenda, cargo que assumiu em março de 1967.
Durante os anos em que ditou a política econômica brasileira, operou o "milagre econômico" no país, com altas taxas de crescimento e inflação de dois dígitos, mas decrescente. Medida pelo IGP-DI, a inflação, que era de 39,1% em 1966, caiu para 15,6% em 1973, ano do primeiro choque de preços do petróleo, que elevou a inflação para 26,9% no ano seguinte.
Entre 1967 e 1974 o país cresceu a uma taxa média de 9,91% e dobrou o Produto Interno Bruto (PIB). Uma façanha que nunca mais se repetiu. Para se ter uma ideia do dinamismo que isso representou, basta notar que nos últimos 30 anos cresceu a uma taxa média de 2,18% ao ano.
Entre 1967 e 1980, o valor das exportações industriais brasileiras, quando comparadas com o valor das exportações do mundo, crescia 15% ao ano. Em 1980, o café representava 15% das receitas de exportação. No início da década de 1980, o Brasil tinha, segundo o ex-ministro, uma das indústrias mais sofisticadas do mundo.
Delfim diz que "o trabalho de salsicharia" foi pôr Roberto Campos, no Planejamento, e pôr Octávio Bulhões, de quem foi assessor, na Fazenda. Quando assumiu a pasta da Fazenda, ele conta que mudou radicalmente o viés da política econômica, antes voltada para o controle da inflação por meio de restrições monetárias em prejuízo do crescimento. Ele implementou a reforma tributária feita por Bulhões/Campos, criou a Zona Franca de Manaus, adotou uma série de incentivos às exportações e uma política cambial bem competitiva. Além disso, regou a economia com o alongamento do prazo de recolhimento de impostos das empresas e fez uma política de rendas baseada no controle de preços e salários. "Era a concepção keynesiana de que sem uma política de rendas não se chegaria ao pleno emprego com uma inflação estável."
Delfim não pertenceu e nem pertence a uma escola do pensamento econômico. "A economia não é uma ciência. É uma religião com várias igrejas [ou seitas]. Nela o átomo grita, xinga, vota", diz, em uma das suas principais críticas aos economistas que se julgam portadores de uma "sabedoria divina".
Foi Roberto Campos quem deu ao crescimento desse período a alcunha de "milagre econômico", segundo Delfim. "O Campos era um gozador e dizia: 'Na Alemanha não teve milagre, milagre tem é no Brasil mesmo!'." Para ele, "não houve milagre algum, porque milagre é efeito sem causa. O que teve foi muito trabalho dos brasileiros!".
Assim como se atribui a Fernando Henrique Cardoso a frase "Esqueçam o que escrevi", que ele sempre negou ter pronunciado um dia, firmou-se a convicção de que é de Delfim - que também nega - a declaração "É preciso primeiro fazer o bolo crescer para depois distribuir", em uma referência ao crescimento com concentração de riqueza do "milagre". Ele contesta a autoria e o mérito da frase, que, argumenta, é a negação do que ocorreu no período em questão.
Sem se lembrar de onde ela surgiu, Delfim alfineta, em tom de blague: "Essa frase provavelmente foi inventada pelo Fernando Henrique quando ele pensava que era socialista. Como é que você desenvolve sem consumir? Só num país socialista, autoritário, é que você poderia investir tudo e deixar o povo esperando o consumo". E defende: "Durante esse período de forte expansão da economia, foram criados 15 milhões de empregos. Quem consumia eram os próprios brasileiros! Tanto que o Lula sempre dizia: 'Eu só consegui comprar o meu Volkswagen em 1973 porque naquele tempo a gente deixava uma fábrica, atravessava a rua e já tinha outro emprego'".
Delfim conheceu Lula em 1983, quando o governo preparava a nova política salarial preconizada no decreto-lei 2045 e buscou apoio do líder sindical. O decreto, porém, foi derrubado no Congresso. Desde então, sempre teve com o ex-presidente uma relação amigável, que foi se estreitando com o tempo de convivência no Congresso.
"O Lula é uma inteligência privilegiada, não adianta discutir. E também não adianta discutir o fato de que ele foi ajudado, externamente, por um período onde houve ganhos nas relações de troca. O fato é que ele distribuiu esses ganhos diretamente para o andar de baixo."
Nos oito anos de governo Lula, Delfim foi uma espécie de conselheiro do então presidente, juntamente com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. Hoje ele sintetiza o prestígio que Lula desfruta de uma parcela significativa dos eleitores: "O estômago do andar de baixo é que sente saudades do Lula".
Da gestão de Dilma Rousseff, o ex-ministro não economiza críticas. "Até 2011 eu acho que a coisa ainda não estava tão desarrumada. Começou a desandar, na verdade, a partir de 2012, quando ela introduziu um voluntarismo profundo ao mexer no setor elétrico e ao tentar controlar os juros sem dar para o [Alexandre] Tombini [presidente do Banco Central] as condições fiscais adequadas." Em 2014, ano da reeleição de Dilma, foi quando "tudo desandou de vez" e, para se reeleger, a então presidente, mesmo sabendo que aquele modelo havia se esgotado, dobrou a aposta. "Ela fez um combate feroz ao programa do adversário e, terminada a eleição, na semana seguinte adotou o programa do adversário." Dilma andou 180 graus sem dar uma explicação aos seus eleitores. "Foi uma desilusão monstruosa!", arremata.
Michel Temer, de quem é amigo, apesar de todo o desgaste, está fazendo um governo reformista, assinalou. Delfim revela uma grande admiração pelo trabalho que está sendo conduzido pelo presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn. "Para se ter liberdade de movimento de capitais, é preciso que o juro externo mais o risco-país sejam muito parecidos com o juro real interno. E estamos nos aproximando dessa situação. Talvez essa seja a maior contribuição... maior não, porque eu acho que o Ilan está fazendo coisas muito interessantes. Eles realmente estão trabalhando em uma mudança da política monetária, um 'aggiornamento' importante para reduzir essa desesperadora diferença entre a taxa de juro que você toma o dinheiro e a taxa de juro que você aplica, o spread."
Delfim expia alguns pecados que seus adversários não perdoam. Um deles foi ter assinado o Ato Institucional nº 5, na noite do dia 13 de dezembro de 1968 - o mais duro golpe que permitiu à ditadura fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos e suspender o direito de habeas corpus para crimes políticos. "Se as condições fossem as mesmas e o futuro não fosse opaco, eu repetiria. Eu não só assinei o Ato Institucional número 5 como assinei a Constituição de 1988", disse o ex-ministro em 2013, à Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog. "Com o AI-5 eu aproveitei para fazer tudo o que precisava ser feito", completou, em outra ocasião.
Um segundo pecado atribuído a Delfim foi a manipulação do índice de inflação em 1973. Em documento que Mário Henrique Simonsen, que o sucedeu na Fazenda durante o governo Geisel, enviou ao Conselho de Desenvolvimento Econômico (CDE), constava que a inflação daquele ano havia sido de 22% e não de 15%, conforme o índice oficial. Ele, por mais de uma vez, explicou: "Nunca mexemos no índice de preços, mas na formação dos preços. Só havia levantamento de preços no Rio, mas trabalhávamos de madrugada com gente em Curitiba, Belo Horizonte. Às 3h30 da manhã, um dizia que estava chovendo no Rio e ia faltar abobrinha. Então, desviávamos um caminhão de abobrinha de São Paulo para o Rio. Imagine se era possível chegar para o dr. Eugênio Gudin [da FGV] e dizer para ele dar 'uma ajeitadinha no índice'". Simonsen acusou Delfim de colocar, no índice de inflação, o preço tabelado da carne. "Eu desafiei o Mário a trazer uma fotografia do 'Jornal do Brasil' mostrando que tinha fila para comprar carne. Se o preço tabelado não fosse o verdadeiro, teria fila." E admitiu: "Você pode dizer que a inflação no país era pouco maior do que a registrada no Rio. Mas, quanto maior a inflação registrada, mais alta será a que você vai ter à frente".
Nos últimos tempos, ele tem se encontrado com alguns pré-candidatos à Presidência da República. Recentemente, esteve com o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, filiado ao PSB, partido pelo qual deve se candidatar ao Palácio do Planalto. Ambos eram palestrantes em um seminário em São Paulo e, encerrada a participação, foram almoçar.
"O Joaquim está fazendo um estrago!", comentou Delfim. Na última pesquisa Datafolha, o nome do ex-ministro do Supremo e relator do mensalão apareceu com 9% das intenções de voto, no cenário sem a candidatura de Lula. Joaquim Barbosa estaria, portanto, em terceiro lugar, empatado com Ciro Gomes, do PDT, e atrás de Jair Bolsonaro (com 17%) e de Marina (15%).
"Acho que o Joaquim pode ir para o segundo turno. Ele é um sujeito muito culto, tem um prestígio danado e é um cara honestíssimo. Outra coisa é que boa parte dos pardos e negros vota nele. É o Obama, né?"
O arquiteto Oscar Niemeyer, que viveu 105 anos, quando completou 90 anos respondeu à insistente pergunta de um jornalista em um programa de televisão, que queria saber como era chegar a essa idade: "É uma merda!". Ao responder a essa mesma pergunta, Delfim, com bom humor, disse: "É uma grande alegria, pena que passe tão depressa. Eu sempre brinco: o ano, hoje, passa mais rápido do que seis meses. A rapidez do tempo é proporcional à idade".
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