Roberto DaMatta - O Estado de S. Paulo / O Globo
Hoje, nessas minhas cinzas, só posso ousar sugerir a criação dos Ladrões Anônimos
Todos voltamos à dura realidade da vida e esta quarta-feira, que há décadas, inexoravelmente, pauta minha crônica, é de cinzas. A partir de hoje, entramos, pelo calendário litúrgico católico romano, nos 40 dias de regeneração e exame de consciência afins à disciplina do corpo e da carne, essa quarentena que precede a Paixão de Cristo, aval da nova aliança de Deus Pai com a nossa pobre e carnavalesca humanidade. Hoje abrimos a esquecida Quaresma das penitências e arrependimentos reveladores de quanto o tal “Brasil laico” como estado nacional é, como sociedade, estruturado pelo Natal, pela Semana Santa e pelo Sábado de Aleluia, quando todos carnavalescamente – e à brasileira – ressuscitavam com Cristo Nosso Senhor.
Parece piedoso demais para o seu gosto moderno e também para o meu, mas esse é um lado esquecido do significado do carnaval que faz demandas financeiras absurdas quando lidas pelo código burguês do equilíbrio fiscal, mas que são parte de uma cosmologia formada pelo catolicismo ibérico que permeia o nosso perfil espiritual e transborda inclusive nos nossos impulsos ideológicos político-revolucionários.
Somos marxistas, mas não somos materialistas. Marx e Engels arregalariam os olhos com essa combinação que, na Europa, trouxe à história humana um progresso material extraordinário e uma visão de mundo que dispensava a transcendência religiosa do (e no) outro mundo.
Mas eis que todo ano celebramos o carnaval no qual todos viram foliões (malucos proto-transgressores) e usam fantasias, abandonando seus uniformes rotineiros. Eu uma vez escrevi sobre desfiles, paradas militares e procissões como três modos de revelação ou leitura esteticamente enquadradas do Brasil por si mesmo.
Nos desfiles, você provavelmente tomou parte fantasiado disso ou daquilo – certamente investindo de uma mensagem contra as classificações rotineiras, preconceituosas e em geral dicotômicas (homem ou mulher, rico ou pobre, sério ou galhofeiro) –, mas inconsciente de seu próprio lado, o qual necessariamente exclui um outro, pois não se pode ser nem a favor nem contra tudo todo o tempo. E pode agora refletir sobre o significado profundo das cinzas.
Sim, porque o seu desfile carnavalesco, misto de irreverência e manifestação, foi apenas um lado da nossa “democracia convulsiva”, como diz Anibal Machado numa brilhante análise do nosso carnaval no seu pouco lido João Ternura. Um livro que tanto me deu certeza de que o carnaval é a celebrização de nossa permanente e latente malandragem – uma ambiguidade ou indecisão histórica de raiz que nos impede de fechar e abrir novas etapas porque tudo se carnavaliza e mistura e, no moinho satânico da política, dos privilégios, dos direitos, das cláusulas pétreas, tudo muda para voltar ao que era antes.
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Creio que Freud explicaria por que o ex-governador e hoje penitenciário Sergio Cabral resolveu carnavalizar-se, tachando sua triste nudez moral e sua patológica ambição no uso do político como um instrumento de enriquecimento pessoal e familístico, de vício. Só num país do carnaval, rótulo, aliás, significativo do primeiro livro de um Jorge Amado igualmente olvidado, um condenado por corrupção é um personagem que trocou o uniforme de governador (e de “caxias” – de zelador e seguidor das leis e da moralidade) pela fantasia de um malandro radical.
Aquele que sai do fio da navalha, entre a lei e o crime, e abraça a corrupção. Um malandro que, como ele próprio confessa, hoje se sente aliviado de ter reavaliado essa transmutação cinzenta de crime em vício. Hoje, nessas minhas cinzas de assistir ao Brasil canibalizar-se a si mesmo por meio de todo tipo de má-fé e procrastinação, só posso ousar sugerir a criação, entre nós, com ajuda da grande mídia, dos Ladrões Anônimos.
Nele, na roda dramática de pessoas que perderam o controle sobre suas vidas devido ao abuso de alguma droga que passou a controlá-las, ele poderia começar assim: “Meu nome é Serginho e eu sou um ladrão do erário!”.
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