Uma ação política bem articulada na opinião pública poderá mitigar o desgaste político
ADRIANO CERQUEIRA*, O Estado de S. Paulo
06 de março de 2019
“Deve-se considerar aqui que não há coisa mais difícil, nem de êxito mais duvidoso, nem mais perigosa, do que o estabelecimento de novas leis. O novo legislador terá por inimigos todos aqueles a quem as leis antigas beneficiavam, e terá tímidos defensores nos que forem beneficiados pelo novo estado de coisas”
Maquiavel, O Príncipe
Nessa passagem o pensador italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527) já alertava para o alto custo político que uma ação reformadora (“novas leis”) tem para um governante. O alto custo refere-se à quebra de uma ordem de benefícios estabelecida em decorrência de uma ação reformadora, que a desestabiliza.
Qual o seu efeito? O efeito é produzir uma onda negativa de reações na sociedade em que será feita a reforma, liderada pelos setores que serão atingidos pela perda dos benefícios que a antiga ordem garantia. A reação, para Maquiavel, é quase instantânea, pois esses setores estarão perdendo benefícios. Não há como o governante evitar o desgaste decorrente da medida implementada e ele terá de estar ciente das consequências.
Por outro lado, lembra Maquiavel, os benefícios causados pela reforma não são imediatos. Os novos beneficiados só os receberão no futuro, o que transforma esse bem numa promessa. Poderá o governante contar com o apoio expressivo dos setores que serão beneficiados pela reforma? Não, responde Maquiavel. Por quê?
A razão está na reconstrução da legitimidade que o governante inevitavelmente terá de fazer em decorrência de sua ação reformadora. Parcela de seus apoiadores poderá deixar de apoiá-lo por se sentir injustamente prejudicada por sua ação reformadora. E a parcela que poderia apoiar ainda não está suficientemente convencida dos benefícios futuros. O resultado é que os protestos tendem a ser mais expressivos que as manifestações de apoio.
Transportando essa reflexão para a situação brasileira com a PEC da Previdência Social enviada ao Congresso pelo presidente Jair Bolsonaro em 20/2, há um complicador a mais na equação de Maquiavel: além do governante, há outro agente de poder relevante, o Congresso Nacional. Assim, não será só o presidente a sofrer com a provável perda de popularidade política por causa da PEC, mas cada um dos deputados e senadores integrantes do Congresso. Logo, é muito grande o desafio para aprovar uma PEC numa democracia representativa, como a brasileira.
Um ponto de convergência de interesses entre a Presidência da República e os parlamentares é a crítica situação financeira da maioria dos Estados, além da situação da própria União. As contas públicas estão no vermelho, muitos Estados não têm conseguido nem pagar os salários de seu funcionalismo, o desinvestimento em obras públicas afeta a qualidade dos serviços públicos, além de causar graves transtornos quando há desastres – como a queda de viadutos ou uma deficiente capacidade de fiscalizar atividades de alto risco, como a das mineradoras, só para citar dois exemplos atuais. Apesar de a PEC da Previdência causar imediato desconforto material aos atuais beneficiados, não é difícil associar o quadro crítico das finanças públicas com a falta de qualidade dos serviços públicos decorrentes, entre outras coisas, do desinvestimento por causa da crise financeira. O fato é que há um contingente expressivo de brasileiros sentindo, hoje, os malefícios da frágil situação financeira da União e da maioria dos Estados.
Logo, uma ação política bem articulada na opinião pública, visando a convencê-la da urgente necessidade de aprovar a PEC da Previdência para que se consiga um alívio financeiro imediato para a União e os Estados, dando-lhes condições de investir na melhoria da qualidade de seus serviços, poderá mitigar o desgaste político de propor uma reforma que atingirá benefícios estabelecidos. Além disso, caberá ao governo resolver em definitivo a crise financeira da União, pois só a reforma da Previdência não resolverá em definitivo a situação. Sabe-se que a grave situação financeira do Estado brasileiro está na sua esclerosada estrutura tributária e fiscal, que é ineficiente, burocratizante, gera alto custo financeiro para as empresas sediadas no Brasil e lhes tira, assim, boa parte de sua capacidade competitiva. A solução de longo prazo da crise financeira do Estado brasileiro está numa reforma ainda mais desgastante e que não foi enfrentada por nenhum presidente eleito desde 1989: a reforma do sistema tributário e fiscal.
Reformando para valer a estrutura fiscal e tributária brasileira – visando a simplificá-la, tornando-a menos custosa para as empresas e para os cidadãos, buscando ainda evitar a canibalesca disputa por incentivos fiscais entre os Estados da Federação e desburocratizando a relação da malha fiscal com o contribuinte –, essa será uma forte garantia de que não haja uma nova crise financeira no Estado brasileiro. O ganho político será elevado, mas, infelizmente, o tempo verbal está no futuro, e não no presente. Por isso são poucos os governantes que encaram para valer esse desafio. Os que encaram e são bem-sucedidos serão sempre lembrados não como ex-presidentes, mas como estadistas.
Finalmente, quando se pede menos Estado e mais sociedade, não se está apelando só para um enxugamento da máquina pública, mas para uma relação menos custosa em termos financeiros e de tempo entre o cidadão e o Estado. Isso porque um Estado enxuto, mas mal administrado, também causa grande dor de cabeça ao contribuinte. Assim, um novo pacto entre o Estado e os cidadãos implica, fundamentalmente, que ele não atrapalhe o dia a dia dos cidadãos. Enfim, um Estado mais enxuto e mais bem organizado que o atual, agigantado e ineficiente. Caso as reformas da Previdência e fiscal-tributária sejam feitas, aumentarão muito as chances de, no futuro, o Brasil finalmente construir uma relação mais saudável e respeitosa entre a estrutura do Estado e o cidadão. Que esse futuro benefício se concretize é o que o brasileiro espera.
*CIENTISTA POLÍTICO, É PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO IBMEC-BH
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