sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Soltar pipas para baixo

Considerações sobre a memória coletiva.

Quando estava na vida ativa organizacional lembro que meu chefe, nas reuniões semanais, comentava os problemas que nós, da Força Aérea, enfrentávamos na relação gerencial, institucional e orçamentária com os demais ministérios e instituições civis. Via de regra tínhamos problemas que nos custavam caro ao já combalido orçamento sem falar no TCU e Ministério Público com o bafo na nossa nuca.

Relembro que ele  sempre comentava: “Estamos amadurencendo, estamos aprendendo com as experiências.” Um dia não resisti e lhe perguntei ao fim de sua preleção para a platéia lotada: “Comandante, eu poderia chegar para uma senhora de 65 anos (chamamos a Aeronáutica carinhosamente de “viúva”) e dizer para ele não se angustiar com seus erros porque ela está em processo de amadurecimento e aprendizado? Uma senhora que já participou de uma guerra mundial, guerrilhas na selva e está para lançar um satélite no espaço (foi antes do acidente em Alcântara, no Maranhão)?  Bem, o silêncio seguido de uma observação amigavelmente jocosa foi seu retorno.

Com o tempo descobri a resposta: Nossa força de trabalho sempre foi predominantemente jovem, por causa das aposentadorias precoces, concursos públicos etc,  e nunca tivemos o bom hábito de debatermos, como o europeu e americano, as “lições aprendidas”, daí não registrarmos os passos, acertos e erros de um processo ou projeto. Via de regra um responsável por projeto importante “passava para a reserva” ou era aprovado em concurso público e não passava bem “a história” de seu setor nem todo o conhecimento adquirido, não escrito, dos meandros não constantes de manuais, estatutos e regulamentos.

Ampliando a projeção para nossa sociedade vejo que, de fato, somos uma sociedade jovem. Os professores, Phd, do mestrado que cursei sempre falavam: “Os países da AL são sociedades muito jovens, ainda estão amadurecendo.” Entendi, com as aulas e palestras de outros professores, embaixadores e demais autoridades, oriundos da Europa, Ásia e África, que comparávamos às deles, milenares e fruto de muito sofrimento, guerra e invernos rigorosos. Observei que todos os países do antigo G8 sofreram duas guerras e invernos rigorosos. Esses eventos históricos e sociais têm a virtude de aglutinar os cidadãos em torno de objetivos comuns de bem-estar coletivo. Nossa Constituição Federal jamais passaria no crivo de um vilarejo da Europa Setentrional, notadamente onde o inverno é mais impiedoso.
Aprendi, fruto de leituras e aulas com experts, que muitos cidadãos europeus morreram em casa, durante as duas guerras mundiais sem serem atingidos por uma bala ou estilhaço de bombas ou de material explodido como projétil. Morreram em casa de frio ou de doenças causadas por infecções, epidemias, vírus etc etc. Guerra e Inverno educavam na marra os cidadãos a pensarem no vizinho, na rua e no bairro. Galerias entupidas de lixo quando no inverno ou nas guerras impediam o fornecimento de gás e proliferavam insetos, roedores, pragas etc.

Com o passar dos anos os europeus se habituaram a se antecipar aos problemas acompanhando e cobrando nas pautas de campanhas políticas. Viram que apoiar insanamente projetos megalômanos (i. e. nazista e facista – sem se esquecer que foram eleitos em segundo turno em processo de votação democrático) causavam irremediáveis problemas em longo prazo.

Outro exemplo é que guerra e inverno produz líderes engajados, com experiência vivida, prontos para defender projetos de Estado, com a sociedade cobrando a fatura caso se desviassem do comprometido. Vários exemplos de Estadistas europeus viveram os percalços das guerras e invernos rigorosos.

O que vemos hoje nos movimentos sociais de contestação na Europa são fruto de memória coletiva registrada acerca da perda de confiança da sociedade nos representantes do Estado. Eles sabem, por experiência passada e registrada, que o que os salva da calamidade é um 
Estado bem estruturado e gerenciado. Quando o Estado falha as greves e conflitos surgem de imediato, não precisam de caras-pintadas nem de petês articulando (ontem na oposição, hoje na situação).

Tive um professor, Phd especialista em Rússia, por trinta anos estudando aquele país. Quando ele deu aula para minha turma eu comentei com ele que de acordo com o site da revista Economist, que eu assinava, as notícias falando acerca do crescimento da China tiveram muito menos acesso do que aquelas que comentavam a repressão de Putin que exterminou os terroristas chechenos em um teatro, ele me respondeu que a Europa tem uma atenção constante com a Rússia.

No ano seguinte o professor voltou para dar aulas no momento em que havia uma publicação da mesma revista com uma charge de Putin estendendo a mão direita de forma suave e a mão esquerda, feita de ferro, batendo firme em uma mesa. A mensagem era que ele cedia a presidência democraticamente e concorria para ser primeiro-ministro, o que é até hoje controlando o presidente, apagado. Novamente a edição daquela revista teve um número recorde na Europa. Perguntei ao professor e ele me respondeu assim: “Se mais de sessenta por cento do gás de sua cidade viesse da Rússia você também não compraria essa revista?”. Respondeu e matou a charada. E completou: “Isso é a memória coletiva das privações das guerras e do inverno.”...Memória...coletiva...palavras-chave.

Trazendo esse conceito para os dias de hoje, em nossa sociedade, tenho mais um exemplo do porque temos comportamento de sociedade jovem. Enquanto ainda temos sérios problemas de saúde, saneamento, cidades alagadas, pessoas há mais de um ano morando em alojamentos improvisados, epidemias de dengue, problemas de energia elétrica, infra-estrutura, evasão escolar, apagão de mão-de-obra, vota da inflação, nossos representantes no Congresso estão presos, diariamente, a questiúnculas: Palocci, kit anti-hemofibia, discriminação lingüística, etc etc...Sim, de fato, somos jovens e muito imaturos. Nosso processo de crescimento ainda nos dará muita dor desnecessária por focarmos nossas energias e recursos em direções erradas.

Lendo o belo livro “A menina que roubava livros” e também já tendo lido o belo livro “O caçador de pipas”, cada um retratando a vivência coletiva de sociedades de idiossincrasia milenares, remeto minha lembrança a minha infância, quando empinava pipas, papagaios, nas ruas. Lembro dos “filhinhos de papai” tentando empinar as suas das varandas ou janelas dos apartamentos, longe do contato dos meninos de rua....nossa sociedade seriam os meninos de apartamento, que viviam sem sair para as ruas, amadurecer como crianças normais e que se contentavam e soltar (empinar)  pipas para baixo, da janela de seu quarto, protegido das traumáticas experiências da rua. Nós nas ruas calejados em estratégias de nos divertir fugindo dos garotos mais velhos e dos “rapas” que nos levavam pipas, linhas, rabiolas e tudo. Enquanto isso, os garotos das janelas, protegidos, tentavam teorizar sobre a arte de colocar uma pipa no ar. De certa forma, nós vivíamos as dores do crescimento real, o contato com a globalização e o desafio de viver em diferentes culturas e circunstâncias, já os meninos das janelas seriam os que tenderiam a normatizar a atividade das pipas da mesma forma que tentam impor na sociedade suas visões obtusas.
Enfim, dores do crescimento...
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Um comentário:

  1. Nota mil grande guerreiro pela brilhante e fundamentada escrita e pelo paralelismo feito.

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