Roberto Campos
01/02/98
Democracia, já se sabe, não é um assunto fácil de esgotar. Senão, não teríamos essa interminável discussão sobre ela. Todo mundo tem alguma opinião a respeito. E não é para menos. Mas, só para esquentar um pouco o motor, é bom lembrar que há mesmo uma vasta disputa teórica sobre a idéia. Entre algumas posições atualmente representativas, teríamos, por exemplo, a de J. Habermas, que a entende como "processo": o ponto de partida legitimador (pós-metafísico, como diz ele) estaria nas eleições e na prática das instituições democráticas.
Já R. Dworkin a vê como "substância". É o conteúdo concreto, não os procedimentos eleitorais e outros típicos das formas representativas parlamentares, que conta. Na realidade, estão se multiplicando no Terceiro Mundo as "illiberal democracies" (democracias não liberais), em que se praticam os ritos eleitorais formais, mas os eleitos mutilam subsequentemente as liberdades políticas e econômicas. Não escapamos, como se vê, do paradoxo do ovo e da galinha. Quem veio primeiro? A "substancia democrática", que legitima o processo político subsequente, ou o "processo democrático" que gera em seguida a substância correspondente?
Para complicar um pouco mais, segundo o estudioso da ética John Rawls, é preciso um conteúdo de valor _uma sociedade em que certo mínimo de valores não seja partilhado pela grande maioria não só não é democrática, como não é uma sociedade. É uma aglomeração.
O paradoxo é que a democracia, tal como a entendemos, pressupõe que cada qual possa pensar e determinar suas ações como queira. Mas, para que funcione, é preciso que todos concordem em alguns princípios comuns básicos. Os gregos de Atenas, inventores do termo, tentaram uma famosa experiência de democracia direta. Diferente das idéias atuais, pois as mulheres, por exemplo, ficavam presas dentro de casa, sem direito a palpite... Na realidade, um populismo desenfreado, em que a maioria dos cargos era preenchida por sorteio.
Não durou muito: 30 anos. E fez uma senhora salada. Condenou à morte Sócrates, por causa das suas idéias filosóficas, e também o filho do seu grande líder político Péricles, porque aquele, general vencedor, não pudera socorrer um barco que afundara durante a batalha. Pressionou arrogantemente os vizinhos e arranjou guerras para todos os lados. Mas, como eram muito inteligentes, os atenienses legaram ao nosso tempo uma idéia extremamente interessante e racional, a "isonomia", a igualdade de todos perante a lei _que era o que mais ou menos corresponderia à nossa noção de "democracia".
A idéia da norma clara e válida para todos realmente tem de estar no fundamento de qualquer sociedade que pretenda considerar-se democrática. Tudo o que obscurece a compreensão das regras do jogo é a negação disso, a negação da isonomia. Se ninguém sabe qual é a norma que se aplica, se vai depender da interpretação de alguém depois do fato, onde ficará o princípio da universalidade e igualdade do tratamento de todos os cidadãos?
Mas a norma não pode ser um enfeite, um objeto de retórica, para advogados ou políticos falarem bonito. Só tem sentido quando é um comportamento que a sociedade se empenha em fazer cumprir por todos. E como ano novo é tempo de dar uma geral nas idéias, talvez seria útil refletirmos sobre esse tema. Somos um país de um espantoso excesso de normas, dezenas de milhares, entre leis, decretos, portarias e toda a parafernália. E de muitas no papel, não na prática real. Ora, a suposição básica do Estado de Direito (em verdade, desde Roma) é que o cidadão não pode ignorar a lei. A multiplicação normativa não é menos séria do que a cancerosa.
O problema não é só nosso, é claro, porque o mundo está ficando cada vez mais complicado. Mas nós temos uma firme tradição de complicar o que puder ser complicado. A propósito, pouco antes da virada do século passado fez-se, nos Estados Unidos, uma pesquisa de opinião entre 73 pessoas proeminentes sobre como seria o futuro, cem anos depois. Previsões divertidas. E erradas. Uma delas foi de que as leis seriam tão simples que haveria pouca necessidade de advogados e de que o crime seria raro, porque os criminosos seriam impedidos de se reproduzir!...
Continuamos a não saber bem como surgem os criminosos. Uma proporção de sociopatas, de tipos anti-sociais, existe em todas as partes, sem que se tenha idéia de por que isso acontece. Fatores contributivos podem ser muitos. Certamente a urbanização maciça tem a sua parte, da mesma forma que a erosão dos valores e pontos de referência tradicionais, a marginalização econômica, a droga, não sabemos se fatores genéticos. O fato é que não há soluções simples.
O brasileiro nunca teve lá, que se diga, uma grande convicção de respeito pela lei e pela autoridade. Quem sabe, algum atavismo colonial.
Nossa esperteza, a preferência pelo "jeitinho", não é bem uma característica do cidadão pleno. Na ex-URSS, havia algo equivalente, sem a nossa habilidade tropical: tratava-se de sair da regra sem chamar demasiada atenção. Ainda ficamos meio espantados com o europeu tranquilamente acostumado a reclamar os seus direitos e a cobrar desempenho dos seus políticos. Acreditamos na mágica do papel escrito. Se passou pelo ''Diário Oficial'', tudo resolvido. Ledo engano!
Não há muito, Dominic Tarantino, presidente de uma das maiores empresas de auditoria do mundo, resumiu em uma frase modelar o que os investidores esperam: "estabeleçam o império da lei ('rule of law') nos mercados emergentes''. Muitos deles têm leis e regulamentos. Não muitos têm o império da lei. Importa o que vale mesmo, não o que está no papel, que aceita qualquer coisa. Nós, com a nossa reconhecida originalidade, invertemos, tornando os menores de 18 anos inimputáveis _para alegria geral dos traficantes. Não se poderia pensar nenhum método melhor para perverter as "crianças". Ainda há os que vêem no indivíduo desajustado e ''associal'' apenas um revolucionário de esquerda em embrião...
Nossa criminalidade assusta muito, sujando ainda mais nossa imagem, que, por justas e injustas razões, está mais pra lá do que pau de galinheiro. É óbvio que o governo não tem mágica para endireitar tudo o que está torto. Mesmo porque criminalidade, injustiça, pobreza estão por toda a parte. Mas dose é dose, e há uma questão básica de atitude. E subdesenvolvido demora décadas para descartar idéias obsoletas vindas de fora.
Há dez anos, um deputado trabalhista inglês, que todos por aqui conhecem de nome, Tony Blair, fez a seguinte afirmação: "Esta nova falta de respeito pela lei não pode ser atribuída às privações materiais". Devia saber do que estava falando, porque outro inglês, J. Young, em 1989, escreveu, no respeitado "Time Higher Educational Supplement", que "no imediato pós-guerra houve um consenso, numa larga faixa da opinião informada, que a principal causa do crime eram as condições sociais de empobrecimento''... Mas na Grã-Bretanha, por exemplo, entre 1951 e 1972, a renda real disponível por pessoa aumentou 64%, enquanto a criminalidade mais do que dobrou, com um aumento de 172%. Num período predominantemente trabalhista...
O sensacionalismo da mídia pode induzir algumas pessoas a procurarem representar um papel criminoso. Mas, sobretudo, o que é preciso é bom senso e mudança de atitudes. A lei é para ser cumprida, ponto. A tolerância _tipificada pela passividade diante das ocupações do MST, por exemplo_ estimula a imitação, fechamento de estradas, distúrbios nos presídios (que custam caríssimo ao contribuinte, para não falar no resto) e o que mais ocorra a qualquer grupo insatisfeito e combativo. Parece até que há uma pastoral dos presos (ou dos bandidos, sei lá), mas ninguém se lembrou de fazer uma pastoral das vítimas, infelizmente muito mais numerosas do que os próprios malfeitores. Não é a violência policial (exacerbada pelo ambiente geral de "compreensão" do criminoso) que dará resultados. Ela deve ser coibida implacavelmente. Não por implicância ideológica contra toda autoridade, mas pela preferência pelo estado de Direito.
Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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