RENATO ZUPO
O ESTADO DE S.PAULO
Um empresário de Mato Grosso foi assaltado em casa. Durante o roubo seu celular tocou. Um dos ladrões se assustou e o crivou de balas, ceifando uma vida integralmente dedicada ao trabalho. O espantoso é que o latrocida, ainda jovem adulto, já acumulava 21 prisões pela prática de roubos, homicídio e tráfico de drogas, todos delitos gravíssimos.
Ora, 21 prisões em sequência significam igual número de liberdades concedidas, todas obviamente por força de decisões judiciais. Nessa espécie de crime, o delegado de polícia não pode conceder liberdade mediante o pagamento de fiança. Os motivos dessas solturas não são de meu conhecimento, mas a reiteração com que foram concedidas certamente tem uma origem: o garantismo judicial. Ouso supor que o tal assaltante deve ter sido solto diversas vezes pelos motivos de sempre, que abundam nos Fóruns do País: excesso de prazo, primariedade ou porque sua prisão foi substituída por recolhimento domiciliar, cestas básicas e tornozeleiras eletrônicas. Isso 21 vezes.
É absurdo que um elemento de extrema periculosidade e com tamanha e reconhecida propensão à prática de crimes graves tenha angariado várias vezes a dádiva judicial de sua liberdade. Sou magistrado e sei que nenhuma lei, nenhuma Constituição garante tamanha impunidade. Não há desculpa para um Estado garantista que só garante liberdades para o lado armado e bandido da sociedade. Nossas leis não têm essa culpa. O legislador penal, com todas as suas mazelas e seus defeitos, soube fazer o dever de casa: deixou ao encargo do juiz aquilatar a necessidade e a conveniência da prisão, afirmou que a prisão somente pode ser substituída por outra medida menos gravosa se esta última for suficiente para a contenção do delinquente e determinou expressamente que presos por tráfico de drogas e por outros delitos hediondos a princípio não têm direito à liberdade provisória ou ao cumprimento de penas alternativas.
Desanima as polícias e o Ministério Público que os juízes e tribunais teimem em legislar, fazendo letra morta dos dispositivos legais que procuram conter a criminalidade. É isso que cria a prisão esportiva. Tal como na pesca esportiva, no "pesque e solte", a extrema leniência judiciária com o criminoso gera por aqui o "prenda e solte". Conduzido o suspeito à delegacia, se não é solto imediatamente pelo delegado, acaba libertado horas depois pelo juiz de Direito.
O berço dessa interpretação garantista da lei penal são os tribunais superiores, liderados, obviamente, pelo Supremo Tribunal Federal, que, por exemplo, determinou que o artigo 44 da Lei de Tóxicos - que impede a soltura do suspeito flagrado de crime de tráfico de drogas - é inconstitucional porque fere, dentre outros, os princípios da presunção da inocência e do devido processo legal. Ao contrário, esse entendimento é que conflita com a Constituição federal, porque sobrepõe o direito individual ao coletivo. Os tribunais dos Estados acompanharam esse entendimento talvez porque réus presos signifiquem mais gastos públicos, forçando uma tramitação processual mais célere e prejudicando estatísticas de produtividade. É uma prática alicerçada nas velhas teorias de que o cidadão criminoso é uma vítima da sociedade, que devemos educar, em vez de punir, que o Direito Penal não é a solução para as mazelas sociais que geram o criminoso, e outras velhas cantilenas.
A questão da primariedade, aliás, é outra utopia criada por nossos juízes e tribunais à margem da legislação penal. Em todos os momentos em que faz alusão aos bons antecedentes dos acusados de crimes, o legislador faz questão de enunciar claramente que esses requisitos são dois e, portanto, distintos. Para a jurisprudência em voga, o cidadão só pode ser considerado detentor de maus antecedentes se já foi condenado em sentença da qual não caiba mais recurso. Esse é justamente o conceito de reincidência, porque os maus antecedentes decorrem simplesmente da existência de apontamentos desabonadores pairando sobre o passado do cidadão, registros de inquéritos e ações penais já extintas ou em andamento contra o indivíduo. Dessa anomalia decorre a conclusão grotesca de que, na prática, quase todo réu é primário! Será que a intenção dos intérpretes das normas e das autoridades públicas é esvaziar cadeias a qualquer preço? Por certo é mais econômico, mas tudo será sempre uma questão de dinheiro?
Nos congressos de magistrados e cursos de capacitação judicial ouvimos reiteradas vezes que nossa função é a pacificação social. Só pacifica, porém, quem coíbe a violência, não quem alimenta a impunidade. Há uma forte tendência judicial, infelizmente transformada em realidade, de tornar o processo uma luta para absolver o acusado. O magistrado é doutrinado para analisar o processo sob o ponto de vista da defesa e, de fio a pavio, esquadrinhando tecnicalidades e os indícios que possam tornar a ação penal um caminho sempre propenso à absolvição. Na verdade, o espírito da lei é bem outro: o processo penal é acusatório. O réu é que tem de se desvencilhar da acusação e das provas que a ensejam. O juiz excessivamente garantista torna as vítimas indefesas e dá ao cidadão comum a impressão exata de que o nosso país é uma casa de mãe Joana onde as pessoas de bem são as únicas obrigadas a cumprir leis.
É fato que a lei penal às vezes é falha, mas não é ela que manda soltar criminoso violento. São os magistrados que o fazem, por motivações mais sociológicas e filantrópicas do que jurídicas. Não convence mais o argumento de que cadeia não conserta o criminoso. No cárcere é que delinquentes devem ser corrigidos e para que isso seja possível, basta que o Poder Executivo construa e mantenha estabelecimentos prisionais decentes. Afinal, os impostos altíssimos que pagamos são também para custear o sistema prisional.
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