EDITORIAL O GLOBO
A reminiscência dos amargos tempos da ditadura e o valor da democracia deveriam estar presentes em cada ato como uma reafirmação da liberdade
Entre as amargas recordações que a imprensa brasileira resgatou do ciclo ditatorial nos últimos dias, por ocasião dos 50 anos do golpe de 64, os seguidos agravos ao Legislativo (fechamento do Congresso, cassação de mandatos, pressão sobre o exercício da representação política etc) configuram-se como alguns dos mais tenebrosos registros da longa noite em que as instituições do país estiveram sob o efeito de alguma anomalia, por pressão direta ou velada do regime. São lembranças importantes para atestar que o resgate da autonomia dos Poderes, aí incluída a da Câmara dos Deputados e do Senado, e da sua liberdade de ação foi uma sofrida conquista da sociedade.
A reminiscência desses amargos tempos deveria estar presente em cada ato de deputados e senadores como uma reafirmação da liberdade. Agir, acima de interesses pessoais ou de partidos, em consonância com essa responsabilidade histórica é um princípio do exercício da representação. Mas, infelizmente, nem sempre ações em plenário ou acordos de gabinete são feitos à luz desse compromisso. Não têm sido poucos os episódios em que os mandatos parecem obedecer à dinâmica própria de um balcão de negócios. Nos últimos dias, representantes no Congresso voltaram a dar demonstrações desse tipo de desapreço com a opinião pública.
As relações perigosas do vice-presidente da Câmara André Vargas (PT-PR) com o doleiro Alberto Youssef, que já ultrapassaram o limite das simples evidências, reclamam uma investigação séria, profunda. Suas explicações confusas sobre o uso de um jatinho de Youssef, hoje recolhido a um presídio, acusado de crimes fiscais, e as revelações deste fim de semana sobre transações suspeitas da dupla em contratos com o Ministério da Saúde, caíram mal até mesmo entre integrantes da base governista, da qual Vargas é uma das eminências. Mas o encaminhamento proposto pelos representantes no Legislativo para o caso — o licenciamento do vice-presidente — é tão óbvio quanto deverá ser inócuo. A bancada governista afirma que o afastamento do deputado é necessário para que a análise das acusações não seja contaminada por pressões, o que é correto, mas teme-se que, por trás dessa providência, esteja uma manobra para transformá-la numa punição em si, esvaziando a apuração do escândalo.
Em outra ponta, também a indicação do senador Gim Argello (PTB-DF) como candidato do Planalto para um cargo no Tribunal de Contas da União (TCU) joga contra a credibilidade do Legislativo, no caso o Senado. Apadrinhado pelo governo Dilma Rousseff, Argello responde a seis inquéritos no STF, por acusações de lavagem de dinheiro, corrupção, falsidade ideológica e outros “malfeitos”. Não é, por certo, o currículo adequado para um cargo no qual se tem a responsabilidade de julgar as contas do governo e de autoridades que, eventualmente, venham a ser acusadas de crimes semelhantes.
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