terça-feira, 30 de outubro de 2018

Pequenez na derrota

 Editorial | Folha de S. Paulo

Haddad esteve longe de mostrar a capacidade de liderar uma oxigenação do discurso do PT

Treze anos no poder não fizeram do PT uma oposição mais madura. Desde a deposição de Dilma Rousseff, em 2016, o partido retrocedeu ao esquerdismo panfletário, acrescido de fantasias persecutórias, em busca de preservar seus nichos mais fiéis —e à custa de intensificar sua rejeição no restante majoritário do eleitorado nacional.

Derrotado na disputa presidencial deste domingo (28), Fernando Haddad esteve longe de mostrar a capacidade de liderar uma oxigenação do discurso e das práticas da sigla. Dificilmente poderia ser promissor, nesse contexto, o pronunciamento que fez quando já se conhecia o veredito das urnas.

Voltaram, previsivelmente, os queixumes contra o impeachment de Dilma e a “prisão injusta” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

A “tarefa enorme” que disse ver pela frente seria “defender o pensamento e as liberdades desses 45 milhões de brasileiros [foram 47 milhões ao final da apuração]” que nele votaram. A despeito do adjetivo empregado, a missão não abarca a maioria que fez outra escolha.

Haddad também não seguiu o rito democrático de cumprimentar de pronto o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), pela vitória. Só veio a fazê-lo nesta segunda-feira (29), por meio de uma rede social. Menos mal, mas ainda assim sintomático da propensão petista a negar legitimidade aos adversários.

O PT recebeu um respeitável mandato oposicionista no pleito, no qual elegeu 56 deputados federais e quatro governadores. Ainda mais eloquente, entretanto, foi a ampla e aguda rejeição ao partido —maior entre os votantes mais ricos e escolarizados dos grandes centros urbanos, mas elevada em quase todos os estratos e regiões.

Mais que tolice, soa a ofensa a insistência em atribuir tal sentimento a elitismos ou preconceitos. O autoengano servido à militância contribui para envenenar o ambiente político, enquanto a sigla mantém o culto a líderes flagrados em desmandos e se esquiva de reconhecer seus erros econômicos.

Talvez aposte que, fazendo oposição agressiva, intransigente e dogmática, venha a colher os dividendos de um desgaste futuro, nada implausível, do governo Bolsonaro.

Bastaria, assim, oferecer ao público a tradicional receita de soluções fáceis, que desconhecem as limitações orçamentárias, e a mitologia dos anos de bonança sob Lula.

A ser esse o caso, cumpre recordar que nem a impopularidade devastadora de Michel Temer (MDB) —para nem mencionar os temores despertados pela candidatura do capitão reformado— bastou para reconduzir os petistas ao Planalto.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O povo é o eterno culpado


O eleitor não determina o resultado da eleição, só reage a um cenário que lhe é imposto
         
JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE, O Estado de S.Paulo 27 Outubro 2018

O previsível resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2018 tem sido atribuído, no Brasil e no exterior, a um crescimento avassalador do conservadorismo do eleitor brasileiro. Esse diagnóstico implica acusar o povo brasileiro de ser incapaz de votar racionalmente, e só se explica como efeito do que chamarei de vitimologia eleitoral.

Criada para traçar um perfil das vítimas como instrumento para explicar a motivação de um crime e o comportamento de criminosos, a técnica da vitimologia tem sido empregada na análise do comportamento político, quando se trata de explicar um resultado eleitoral inesperado: prendam-se os suspeitos de sempre. 

Ora, não é razoável acusar o eleitorado pelo resultado das eleições, porque o voto não é uma escolha de livre-arbítrio do eleitor, mas, sim, uma opção limitada por uma agenda que lhe é imposta pelo sistema eleitoral, pelo sistema partidário que dele decorre e pelas cúpulas partidárias, pressionadas mais pelos interesses da classe dirigente do que pelo clamor popular. A liberdade política do cidadão brasileiro pode ser considerada uma liberdade condicionada. 

O voto popular limita-se a responder a uma agenda compulsória, construída de cima para baixo, não é uma livre escolha. A pesquisa sobre comportamento eleitoral tem foco na descrição estatística, ou na interpretação “qualitativa” de variáveis presentes nas respostas dos eleitores, mas nada ensina sobre o processo político que criou o leque de escolhas que lhe são impostas. É como um experimento em que se consideram as respostas, ignorando inteiramente os estímulos que lhes deram origem.

Parte-se sempre do perfil do eleitor, pressupondo que o povo é o único fator que determina o resultado das urnas. O processo eleitoral envolve, porém, uma interação complexa entre dimensões mais ou menos independentes entre si. Entre outras, elas incluem variáveis relativas à história política, à percepção desse contexto político pelos atores envolvidos e atitudes, expectativas e reações que daí resultam, diante das candidaturas em jogo. 

Minha hipótese é que o comportamento dos eleitores é determinado pela maneira como o povo percebe a evolução do processo político, isto é, para onde caminham as ameaças ao bem-estar e à liberdade do povo, em face da ganância e da paixão de poder dos Grandes (tal como as define Maquiavel). O eleitor comum escolhe entre quais candidatos, partidos, novas políticas adotadas ou revogadas são percebidos como ameaça ao bem-estar e à liberdade do cidadão – isto é, mantêm e ampliam os privilégios e a corrupção dos poderosos – e quais, ao contrário, são percebidos como barreiras contra a opressão e a exploração do cidadão comum pela classe dirigente. No presente caso, desde as revelação dos escândalos do mensalão a classe política como um todo tem encarnado, na percepção popular, toda a malignidade dessa ameaça à vida, à honra e aos parcos bens que garantem a sobrevivência da imensa maioria.

Essa percepção não é cristalina. É mediada pelos partidos e movimentos de opinião, e raramente se expressa numa imagem única – como, por exemplo, a percepção da inflação, do desemprego, do empobrecimento, da corrupção da máquina pública, da insegurança, da degradação moral. Essas “preferências” populares são tudo menos nítidas e unívocas. São, ao contrário, difusas e equívocas. 

Com isso, as análises do processo eleitoral não captam o caráter único do caso presente. Não lhes vem à mente que há cinco longos e sofridos anos o povo brasileiro tem manifestado, reiteradamente, sua indignação quanto à maneira como tem sido governado.

Diante do desprezo cego, surdo e mudo dos governantes, e do silêncio envergonhado das candidaturas, continuam prometendo creches, hospitais, metrôs, que todos sabem que não serão construídos, se o forem, não vão funcionar, se funcionarem, não vão atender decentemente ao povo. Uma garantia de mudança da política e dos políticos, desde que minimamente crível, seria o único caminho para disputar a maioria do eleitorado indignado com tudo e com todos. 

Defender a continuidade, embora com mais eficiência, experiência, ou vinho novo em velhas barricas foi, contudo, o caminho do suicídio dos partidos tradicionais. Nesse caminho, o PT foi mais longe, porque encarnou, como os demais, a continuidade da velha política, mas defendeu também o retrocesso, ressuscitando o velho programa radical, de 30 anos atrás, com que Lula perdeu três eleições seguidas. Seu fraco desempenho no primeiro turno não foi pior porque se beneficiou da polarização contra Bolsonaro.

Como o PT, Bolsonaro também se beneficiou da polarização e, como os políticos tradicionais, tampouco deu qualquer resposta concreta, mas foi o único a vociferar contra tudo e contra todos. Com isso, sua falta de rumo e de propostas permitiu que encarnasse a mudança a todo custo. Tornou-se um candidato-ônibus: oferece lugar para todos e vai em todas as direções. Sua candidatura pode, assim, acolher uma multidão de eleitores motivados por ameaças diversas, ignoradas ou desprezadas pelas lideranças tradicionais. Note-se, entre as ameaças percebidas por eleitores de Bolsonaro, o temor do patrulhamento que acompanhou políticas discriminatórias adotadas por governos petistas. Assim, parcela não desprezível de seus eleitores não se identifica necessariamente com ideologias extremas nem com a retórica de ódio dominante em sua campanha.

Em suma, o resultado da eleição não é determinado pelo eleitor, que apenas reage a um cenário que lhe é imposto. Tampouco o voto em um ou outro candidato cancela a indignação generalizada contra a política e os políticos e, portanto, não oferece um cheque em branco. O presidente a ser empossado no dia 1.° de janeiro não gozará uma lua de mel, mas um sursis, com curtíssimo prazo para cumprir, de mãos atadas, uma agenda tão extensa e multifacetada como suas promessas.

*PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP

domingo, 28 de outubro de 2018

O Brasil velho está unido

FREITAS SOLICH - O BLOG DO MURILO - 27/10

A grande mídia que vive de verba do governo está unida aos artistas que vivem de fazer filme ruim financiado por estatais através da lei Rouanet.

Estes estão unidos aos movimentos sociais que ganham boas verbas governamentais para manter sua estrutura de arregimentar pessoas.

Esses últimos estão unidos com categorias de funcionários que trabalham em estatais, com benefícios especiais.

Juntam se a esses, os políticos com algum risco de serem alcançados pela Lavajato.

Tem também os bandidos ja condenados em primeira instância que esperam reverter o entendimento de prisão em segunda instância.

Tem os jornalistas, que faturam com blogs e emissoras de TV financiados com empresas públicas , ou indiretamente através de grandes empresas prestadoras de serviço para estatais e governo.

Tem também uma multidão de cientistas que viajam pelo mundo apresentando trabalhos científicos inúteis, financiados por agências científicas públicas , que se preocupam mais em números de publicações , do que com resultados efetivos das suas pesquisas para a sociedade.

Ia me esquecendo de professores de universidades públicas que arrumam qualquer projeto científico, como pretexto, para reduzir a carga horária em sala de aula.

Tem aquele empresário que consegue financiamentos baratos com bancos de fomento publico.

Um grupo forte que também faz parte dessa grande união, são aposentados, que ganham mega aposentadorias ou que esperam ganhar uma num futuro próximo.

Faltou alguém ?

Falta você , que é empregado na iniciativa privada, que tem que entregar parte do seu dinheiro para o FGTS, impostos e um INSS que sustenta os super bem aposentados, mas que só vai lhe pagar no máximo o teto de 5.645,61 Reais.

Falta você que pegou suas economias, e investe num pequeno negócio, e trabalha duro pelo seu sonho, até ter o pesadelo , de cruzar com o governo e ele fazer o possível para lhe multar, ou cobrar alguma taxa de licença, meramente burocrática.

Falta você que abre seu pequeno comércio todo dia , e fica rezando que algum cliente apareça, para no final do mês, conseguir honrar seus pagamentos com fornecedores e funcionários.

Falta você que não tem emprego, e quando alguém pensa em lhe contratar, desiste porque tem medo que a complexa legislação torne a contratação muito perigosa para o seu pequeno negocio. 

Freitas Solich

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Desorientado, PT subestima sua rejeição e a atração de Bolsonaro


Editorial | Valor Econômico

É mais que previsível que um partido que, no governo, participou do maior escândalo de corrupção da história do país e causou, com políticas desastradas, a mais profunda recessão em um século, seja derrotado nas eleições presidenciais. Desde que retirado do poder por um impeachment, o PT sequer fez qualquer esforço honesto e público de autocrítica sobre seus erros ou sequer cogitou punir corruptos em suas fileiras. Com uma rejeição brutal e crescente, colaborou, com uma sucessão de maus passos, para que um partido de direita inexistente, o PSL, e um político obscuro, Jair Bolsonaro, ganhassem o favoritismo na corrida ao Planalto. Uma virada agora, pelas pesquisas, é façanha pouco provável.

Ao não rever métodos, ideias, programas e comportamentos, o PT se enredou em contradições que nem seu mais experiente líder, Luiz Inácio Lula da Silva, preso por corrupção em Curitiba, foi capaz de livrá-lo. Ao primeiro sinal de que Haddad se tornara um candidato competitivo a adesão a um mutirão antipetista, capitaneado por Bolsonaro, consolidou-se.

Como líderes populares como Lula não criam sucessores naturais em sua sombra, a escolha da chapa foi uma epopeia desconjuntada. O PT denunciou o golpe do impeachment e bradou que "eleição sem Lula é fraude", insinuando até boicote ao pleito. Insistindo na tese da conspiração para destruir o PT apostavam, sem motivo, que Lula poderia ser o candidato. E, não sendo candidato, que seu escolhido carregaria consigo sua capacidade de angariar votos.

Com arrogância, o PT e Lula agiram para dinamitar qualquer possibilidade de uma frente que, agora, ao final do segundo turno, tentaram reeditar, sem sucesso. Isolaram o pedetista Ciro Gomes, convencendo raposas do velho centrão e o PSB a não apoiá-lo. Desprezou a necessidade de ampliar seu arco de votos e, por autoconfiança, formou uma chapa puro-sangue dando a vice a Manuela D'Ávila, do PCdoB, uma escolha inábil - e vacilante. O PT não hesitou depois em abraçar "golpistas", como Renan Calheiros e Eunício Oliveira, por conveniência eleitoreira, demonstrando que suas alianças com o que há de pior na política brasileira, que lhe cobraram a fatura de vários escândalos, nunca o incomodou de fato.

Lula só sagrou seu substituto, Fernando Haddad, a pouco mais de um mês antes do primeiro turno, perdendo um tempo precioso. Outros cobiçaram o posto do ex-prefeito paulistano, derrotado em primeiro turno quando tentou a reeleição e hostilizado por alas do partido. A estratégia de manter-se na mídia mesmo atrás das grades deu a Lula dianteira inútil nas pesquisas, mas relevou-se uma presença forte e inabalável nas pesquisas, a do capitão reformado Jair Bolsonaro.

A estratégia de Lula foi reagrupar a militância em torno de um programa de esquerda. A parte econômica não faz jus sequer à prática de Lula em seu primeiro governo e repete políticas desastrosas que, executadas por Dilma Rousseff, quebraram o Estado, provocaram uma recessão profunda e jogaram 14 milhões de pessoas no desemprego. Esse programa ainda poderia ser piorado, como o foi, quando o desespero tomou conta da campanha de Haddad no segundo turno. Ele prometeu tabelar o preço do gás de cozinha, elevar o salário mínimo acima da inflação e dar bom aumento ao Bolsa Família. A crise fiscal não existe, seria um mito.

Além da defesa de propostas autoritárias, como o controle social da mídia, a legenda declarou seu apoio à ditadura venezuelana, mesmo quando milhares de refugiados do país cruzavam as fronteiras do Brasil em busca da sobrevivência. Perto das peripécias de Nicolás Maduro, apoiadas pelo PT, a narrativa do golpe no Brasil tornou-se singularmente exótica.

O PT subestimou grave e fatalmente seu adversário mais perigoso, que não era, como imaginou, o tucano Geraldo Alckmin, mas Bolsonaro, escandalosamente poupado na campanha do partido no primeiro turno. O partido avaliou mal a enorme rejeição de que era alvo e sua própria contribuição para a aguda desmoralização do sistema político. Escolheu Bolsonaro como o rival mais fácil de ser batido, quando as candidaturas de centros afundavam em público. Bolsonaro, por seu lado, e com bons motivos, torcia para uma disputa final com o PT.

Na reta derradeira, Haddad fez um périplo melancólico atrás de aliados, que, recalcitrantes, lhe desferiram mais críticas que apoio, e que repetiram frases usadas por rivais: por omitir ou negar seus erros, o PT perderia a eleição - e merecia esse destino.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O ego de Lula


Lula não consegue soar democrático nem quando isso poderia favorecer o campo petista. Sua carta é uma reafirmação das mistificações que fazem de Lula um dos demagogos mais perniciosos da história nacional

O Estado de S.Paulo 25 Outubro 2018 

Por mais que o PT tenha se esforçado para fingir que seu candidato à Presidência, Fernando Haddad, não é um mero preposto de Lula da Silva, há algo que nenhum truque de marketing será capaz de mudar: o PT sempre foi e continuará a ser infinitas vezes menor do que o ego de Lula. Na reta final da campanha eleitoral, justamente no momento em que Haddad mais se empenha para buscar apoio fora da seita lulopetista, o demiurgo de Garanhuns, decerto inquieto na cela em que cumpre pena por corrupção, resolveu divulgar uma carta para exigir - a palavra adequada é essa - que todos reconheçam a inigualável grandeza de seu legado como governante e que votem no seu fantoche se estiverem realmente interessados em salvar a democracia brasileira, supostamente ameaçada pelos “fascistas”.

O tom da mensagem é o exato oposto do que seria recomendável para quem se diz interessado em angariar a simpatia daqueles que, embora não tenham a menor inclinação para votar em Jair Bolsonaro (PSL) para presidente, tampouco gostariam de ver o PT voltar ao poder. Para esses eleitores, somente se o PT reconhecesse, de maneira honesta e sem adversativas, seu papel preponderante na ruína econômica, política e moral do Brasil nos últimos anos, cujos frutos mais amargos foram o empobrecimento do País e a desmoralização da política, talvez houvesse alguma chance de mudar de ideia. Mas isso é impossível, em se tratando de Lula da Silva, que se considera o mais importante brasileiro vivo e o maior líder que este país jamais terá.

Na carta em que diz que “é o momento de unir o povo, os democratas, todos e todas em torno da candidatura de Fernando Haddad, para retomar o projeto de desenvolvimento com inclusão social e defender a opção do Brasil pela democracia”, Lula não reserva uma única vírgula ao desastre econômico do governo de Dilma Rousseff, outra de suas inesquecíveis criações. Ao contrário: afirma que Dilma sofreu impeachment em razão de uma imensa conspiração de “interesses poderosos dentro e fora do País”, incluindo “todas as forças da imprensa” e “setores parciais do Judiciário”, para “associar o PT à corrupção” - omitindo escandalosamente o fato de que Dilma foi cassada exclusivamente por ter fraudado as contas públicas com truques contábeis e pedaladas. O petrolão, embora tenha sido motivo mais que suficiente para que o PT fosse defenestrado do poder para nunca mais voltar, não foi levado em conta no processo.

Como jamais teve compromisso real com a democracia - que pressupõe respeito a quem tem opinião divergente, para que seja possível o consenso - e também nunca reconheceu a legitimidade de nenhum governo que não fosse o seu ou de seus títeres, Lula não consegue soar democrático nem quando isso poderia favorecer o campo petista. A carta, ao contrário, é uma reafirmação de todas as mistificações que fazem de Lula um dos demagogos mais perniciosos da história nacional.

Lá estão as patranhas que tanto colaboraram para fazer do antipetismo um movimento tão sólido e vibrante, conforme atestam as pesquisas de opinião. Lula, sempre no plural majestático, diz que “fizemos o melhor para o Brasil e para o nosso povo” e por isso “tentam destruir nossa imagem, reescrever a história, apagar a memória do povo”. O sujeito desse complô, claro, é indeterminado, mas unido no que Lula chamou de “ódio contra o PT”. Tudo porque, diz Lula, “tiramos 36 milhões de pessoas da miséria”, porque “promovemos o maior ciclo de desenvolvimento econômico com inclusão social”, porque “fizemos uma revolução silenciosa no Nordeste” e porque “abrimos as portas do Palácio do Planalto aos pobres, aos negros, às mulheres, ao povo LGBTI, aos sem-teto, aos sem-terra, aos hansenianos, aos quilombolas, a todos e todas que foram discriminados e esquecidos ao longo de séculos”. Nada mais, nada menos.

Esse panegírico só serve para mostrar que Lula é mesmo incorrigível - e que seu arrogante apelo para “votar em Fernando Haddad” e assim “defender o estado democrático de direito” contra a “ameaça fascista que paira sobre o Brasil” não vale o papel em que está escrito.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Salvação da lavoura

 Editorial | Folha de S. Paulo

Conciliar preservação com pujança agrícola implica superar polarização e investir em tecnologia para tornar agropecuária brasileira mais sustentável

A pior praga a afligir o agronegócio brasileiro tem raiz ideológica: a polarização entre ambientalistas e ruralistas. Ela envenena o debate público e enseja que os pontos de vista mais atrasados prevaleçam.

O Brasil ocupa posição única no cenário mundial. É o segundo maior exportador de grãos. Com tecnologia própria, expandiu a produção ao ritmo de 4,1% ao ano, desde a década de 1970, com alta menor da área plantada (1,2% por ano).

O setor agropecuário representa hoje 4,5% do Produto Interno Bruto, mas a cadeia produtiva movimenta cerca de 20% do PIB. E isso com apenas 4,9% de sua receita bruta advindos diretamente de recursos públicos, pouco mais da metade do apoio estatal nos Estados Unidos e menos de um quarto do verificado na União Europeia.

Algumas paisagens do país sofreram e sofrem devastação, é fato, com o avanço da fronteira —como a mata atlântica, dizimada no século 20, e o cerrado, atualmente o bioma mais pressionado.

Poucas nações com tal peso agrícola, no entanto, contam com 68% de vegetação nativa. Ou, então, com 18% do território protegido em unidades de conservação e 13% em terras indígenas.

De uma perspectiva racional, não há motivo para deixar de perseguir a vocação agrícola nem para dilapidar mais o patrimônio de biodiversidade. Sobram argumentos econômicos, ambientais e pragmáticos para conciliar tais objetivos.

A cobertura vegetal assegura a reposição de recursos naturais, como água para irrigação, energia hidrelétrica e abastecimento humano. Além disso, sua destruição e a agropecuária a ela associada constituem a principal fonte de emissões de carbono (gases do efeito estufa) da economia brasileira (73% do total em 2016).

Por fim, cresce em todos os mercados a demanda por alimentos, fibras e biocombustíveis que não sejam produzidos em áreas de desmatamento recente.

Aumentar a produtividade da pecuária para liberar espaços de cultivo, recuperar pastagens degradadas, eliminar o desmate ilegal e restaurar florestas são, portanto, uma oportunidade única para o Brasil manter-se na liderança agrícola ao mesmo tempo em que cumpre as metas de redução de emissões definidas no Acordo de Paris.

Para tanto, mostra-se crucial tornar o agronegócio mais produtivo e sustentável, evitando estigmatizá-lo como destruidor de florestas. Sem prejuízo de punir com rigor quem devasta áreas que a lei manda preservar, cumpre combater os vários obstáculos que ainda se interpõem à atividade.

A prioridade reside em dissolver o caos fundiário que ainda prevalece em boa parte do território, notadamente na Amazônia.

Além de sanear os registros coalhados de títulos de origem duvidosa e de superposições, há que integrar e informatizar todos os cadastros de terras do país.

Cumpre enfrentar, igualmente, a insegurança jurídica criada pela lentidão decisória de órgãos como Incra, Anvisa, Ibama e Funai. Não tem cabimento consumir uma década inteira para autorizar um novo agrotóxico, por exemplo.

Se faltam recursos para investir em infraestrutura, nesta dura estiagem orçamentária, não é menos certo que compete ao governo federal formular planos de médio e longo prazos, com apoio de recursos privados, para desfazer o pesadelo logístico em que se converteu o escoamento da produção.

A fim de efetivar a contrapartida ambiental prometida na mudança do Código Florestal, importa pôr fim aos sucessivos adiamentos do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Há que proceder, enfim, à generalização dos Programas de Regularização Ambiental (PRA), etapa subsequente em que produtores faltosos têm de saldar dívidas com a preservação.

Como nas últimas quatro décadas, a tecnologia será aliada importante para conferir dinamismo ao setor agropecuário. O caso de sucesso da Embrapa precisa ser seguido e multiplicado.

O desafio modernizador abrange do emprego ampliado de sistemas de informação geográfica para monitorar a perda de cobertura vegetal (não só na Amazônia) e ordenar o uso da terra (zoneamento ecológico-econômico) até o desenvolvimento de cultivares, práticas e variedades animais adequados para cada bioma e zona agrícola.

Não se trata de destinar mais recursos ao setor, que já conta com tratamento tributário favorecido e cerca de R$ 200 bilhões anuais no Plano Safra. E, sim, de utilizar o crédito subsidiado para promover soluções, como a agricultura de baixo carbono, e de recusá-lo a quem descumpre normas legais.

Por seu peso na economia nacional, o agronegócio detém inegável influência política, mas não parece que ela venha sendo mobilizada no Congresso para avançar uma agenda programática à altura da modernidade do campo.

Retrocessos como os observados nas questões ambiental, fundiária e indígena interessam a muito poucos, e certamente não aos que levaram o setor à liderança global.


Mais Brasil e menos Brasília

Samuel Pessôa -  - Folha de S. Paulo

Transferências da União existem para equalizar recursos e garantir serviços

Um bordão que tem sido comum nesta campanha eleitoral é a necessidade de repensar nosso federalismo: "Mais Brasil e menos Brasília". Ninguém define exatamente do que se trata.

Há três temas.

O primeiro é tributário: como se divide entre União, estados e municípios o bolo tributário e como se opera o princípio da solidariedade federativa na transferência de recursos dos entes ricos aos pobres.

O segundo é a forma como o Congresso Nacional tem recentemente ferido a independência dos entes da Federação ao estabelecer obrigações a estes sem que as Assembleias Estaduais ou as Câmaras Municipais se pronunciem.

Tem sido comum corporações do setor público lutarem no Congresso pelo estabelecimento de pisos de remuneração que se aplicam aos servidores estaduais e municipais.

Surpreendentemente, essas e outras interferências do Legislativo nacional sobre os entes da Federação têm sido pouco tratadas pelos candidatos.
Aparentemente o bordão mencionado no título da coluna remete à ideia de que o dinheiro arrecadado vai para Brasília e, em seguida, retorna aos governos locais. No entanto, os casos em que ocorre a ida e o retorno dos recursos estão associados a programas de apoio aos entes mais pobres da Federação.

Em alguns casos o dinheiro é transferido automaticamente, como nos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM).

Em outros, a União transfere recursos aos entes mais pobres em áreas específicas, como a complementação da União ao Fundeb.

No nível estadual, as transferências da União conseguem reduzir em muito as diferenças de recursos entre os estados.

Por exemplo, a receita per capita do Maranhão é de 55% a receita per capita de São Paulo enquanto que o PIB per capita é de 30% o de São Paulo.

A receita per capita de impostos, já considerando arrecadação própria e transferências, varia de um máximo de R$ 7.978, no Distrito Federal, até a mínima de R$ 2.418 no Maranhão. São Paulo arrecada R$ 4.378 per capita, menos do que 11 estados.

O terceiro tema é que a maior parte da concentração de receita na União ocorrida nas últimas décadas foi para financiar programas de transferências ligados ao estado de bem-estar social, que são nacionais por natureza: benefícios previdenciários, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, seguro-desemprego, abono salarial e Bolsa Família, entre outros.

Este fato não tem sido notado pelas pessoas que enunciam o bordão "mais Brasil e menos Brasília".

O bordão talvez se refira à enorme profusão de estados e, principalmente, municípios que foram criados em seguida à redemocratização, e que não têm a menor condição de sobrevivência autônoma.

Por exemplo, a receita per capita do estado de Roraima foi, em 2017, de R$ 7.740, sendo R$ 2.703 de receita própria e R$ 5.037 de transferência. Para municípios, os números são ainda mais chocantes.

Ou seja, faz sentido um pacto federativo que estabeleça que a receita própria do ente da Federação tenha de ser no mínimo capaz de custear a administração direta dos Poderes.

As transferências existem para equalizar recursos e garantir acesso da população a serviços públicos de qualidade, independentemente da localização.

Finalmente, diversos entes da Federação, exatamente porque recebem volume expressivo de transferências, se abstêm de arrecadar localmente.

Seria importante que os candidatos explicitassem o que entendem por "mais Brasil e menos Brasília".
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Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Bom exemplo na saúde


Os bons resultados obtidos por programa de parceria entre hospitais privados de ponta e hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) para reduzir a infecção hospitalar são um exemplo de que é possível melhorar o atendimento na rede pública

         
O Estado de S.Paulo  09 Setembro 2018 

Os bons resultados que estão sendo obtidos por programa de parceria entre hospitais privados de ponta e hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) para reduzir a infecção hospitalar nestes últimos, como mostra reportagem do Estado, são um exemplo de que é possível melhorar o atendimento na rede pública com medidas simples e de custo relativamente baixo. Embora não sejam uma panaceia, medidas como essa, destinadas a tirar o máximo proveito de recursos escassos, são um dos caminhos a seguir para recuperar a saúde pública, especialmente neste momento em que o País enfrenta grave crise econômica.

Em um ano, o treinamento que profissionais de 119 unidades da rede pública de 25 Estados recebem em cinco hospitais privados de ponta – Albert Einstein, Sírio-Libanês, Oswaldo Cruz, Hospital do Coração, de São Paulo, e Moinhos de Vento, de Porto Alegre – já levou a uma redução de 23% das ocorrências de infecção hospitalar em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de três tipos principais: na corrente sanguínea, no trato urinário e pneumonia associada à ventilação mecânica. Participam do treinamento não apenas médicos e enfermeiros, mas também – e este é um ponto importante – integrantes das diretorias dos hospitais para facilitar a adoção dos procedimentos como rotina.

Depoimentos de participantes do programa, financiado por recursos de isenção fiscal – neste caso, bem empregados –, mostram como tem sido possível avançar na melhoria do serviço prestado pela rede pública de maneira simples e objetiva. “Com pequenas coisas que nos ensinaram, a gente tem conseguido reduzir (casos de infecção) mesmo com todas as dificuldades”, afirma Sandra Santos da Luz, coordenadora de enfermagem da UTI do Hospital Municipal Santa Isabel, de João Pessoa. Pequenas coisas incluem a maneira correta de lavar as mãos e o treinamento para colocar sondas.

Uma das UTIs do Hospital Estadual Mário Covas, em Santo André, não registra nenhum daqueles três tipos de infecção há cinco meses. Os bons resultados do programa, observados em todas as regiões, levou o Ministério da Saúde a fixar a meta ambiciosa de redução de 50% da infecção hospitalar na rede do SUS até 2020. Isso significará salvar 8.500 vidas de pacientes de UTI. O programa também permitirá, segundo estimativa do Ministério, reduzir R$ 1,2 bilhão nos gastos com internação.

Tudo isso sem fazer reformas e obras na rede pública, apenas redesenhando “o processo assistencial com os recursos disponíveis”, como diz a coordenadora-geral da iniciativa, Cláudia Garcia, do Hospital Albert Einstein. Além de fazer muito com poucos recursos, o alvo do programa foi bem escolhido, porque as infecções hospitalares estão entre as principais causas de mortes em serviços de saúde do mundo inteiro, segundo a Organização Mundial da Saúde.

É preciso ter em mente, porém, que não se pode esperar demais de iniciativas desse tipo. Elas são importantes em qualquer circunstância – porque o bom emprego do dinheiro público, para dele sempre tirar o máximo, deve ser uma regra –, mas têm alcance limitado. Constituem um avanço, não mais do que isso.

A recuperação da rede pública de saúde exige providências mais ambiciosas. O descaso com que foi tratada em sucessivos governos – com destaque para os do PT, pois deles, campeões do “social”, seria de esperar apoio decidido que não veio – foi de tal ordem que ela terá de ser reerguida aos poucos. 

Medidas emergenciais estão sendo tomadas pelo atual governo para socorrer as Santas Casas e os hospitais filantrópicos, responsáveis por 50% dos atendimentos da rede pública. Para evitar seu colapso, que levaria consigo toda a rede, o governo vem liberando desde o ano passado importantes recursos a essas instituições. Elas se endividaram porque a tabela de procedimentos do SUS só cobre 60% dos custos. O passo seguinte deve ser o aumento progressivo dos investimentos no SUS – inclusive para revisão da tabela – do qual depende a população de baixa renda.

Segurança jurídica no trabalho


STF decidiu que a terceirização não viola a Constituição

O Estado de S.Paulo  09 Setembro 2018  

Por 7 votos a 4, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a terceirização das chamadas atividades-fim de uma empresa não viola a Constituição. Assim, a Corte Suprema deu fim à insegurança jurídica nas relações entre empresas e trabalhadores.

A terceirização foi aprovada em março do ano passado, quando entrou em vigor a Lei n.º 13.429/2017, que dispõe sobre o trabalho temporário e sobre as relações trabalhistas em empresas que prestam serviços a terceiros. Em novembro do mesmo ano, entrou em vigor a Lei n.º 13.467/2017, que instituiu a chamada reforma trabalhista ao alterar artigos anacrônicos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A reforma trabalhista não só recebeu a terceirização, como a aperfeiçoou, dando clareza aos dois polos da relação laboral quanto à natureza do trabalho terceirizado. Diz o artigo 2.º da Lei n.º 13.467/2017: “Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução”.

A constitucionalidade da terceirização das atividades-fim foi tratada pelo STF em duas ações - um Recurso Especial e uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - que contestavam decisões da Justiça do Trabalho que consideraram ilegal a terceirização daquelas atividades com base na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, entre outras disposições, diz que “a contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário”.

Até a vigência da chamada Lei da Terceirização - Lei n.º 13.429/2017 - e da reforma trabalhista, de fato, a Súmula 331, de 2011, era a única fonte de referência nesta matéria. No entanto, as novas leis, sancionadas no ano passado, deram novo entendimento à matéria, afinal reconhecido pelo STF.

A decisão pacifica o entendimento sobre o alcance e a constitucionalidade do trabalho terceirizado e, segundo se informa, deve destravar 4 mil ações trabalhistas que têm a terceirização como principal fonte de litígio. Espera-se que, com a decisão do STF, a Justiça do Trabalho, que tem dado sinais de relutância em aplicar os dispositivos da reforma trabalhista, passe a julgar os processos que chegam a seus juízos de acordo com a lei, por mais absurdo que possa parecer um pedido desta natureza.

O STF reconheceu que a Súmula 331 é que era inconstitucional. Ou seja, mesmo antes da reforma trabalhista ou da sanção da Lei da Terceirização, nada havia de ilegal na contratação de serviços de terceiros para execução de atividades-fim das empresas. A Constituição, de acordo com a tese aceita pela maioria dos ministros, não faz distinção entre atividade-meio e atividade-fim.

Agora chancelada pelo STF em um de seus principais pontos, a reforma trabalhista, mais uma vez, mostra-se como uma das medidas mais importantes adotadas pelo governo federal e pelo Congresso no último biênio a fim de dotar o País de um arcabouço jurídico condizente com sua necessidade de voltar a trilhar o caminho do crescimento econômico e da queda do desemprego, que hoje atinge 13 milhões de trabalhadores.

Ao contrário do que dizem seus detratores, a terceirização, seja da atividade que for, não “precariza” as relações de trabalho e tampouco traz riscos para os empregados tão somente por sua natureza. O STF ressalvou, em boa hora, que as empresas contratantes são responsáveis, subsidiariamente, pelas dívidas trabalhistas das empresas contratadas nos casos em que estas demonstrarem falta de recursos para arcar com suas obrigações contratuais.

Ganham os empresários, que pela livre iniciativa consagrada pela Constituição podem gerir como bem entenderem suas empresas; e ganham os trabalhadores, que terão mais opções de trabalho e, principalmente, a proteção de um marco legal reconhecido pelo STF.

Mais que dinheiro, falta critério no país da gastança


Gastar demais é apenas um dos vícios do governo brasileiro, um dos mais visíveis e mais criticados
    
Rolf Kuntz, O Estado de S.Paulo   09 Setembro 2018  

Gastar demais é apenas um dos vícios do governo brasileiro, um dos mais visíveis e mais criticados. Esse vício é complementado e agravado por outro. Além de estourar suas contas, afundar em dívidas e pagar juros muito altos para se financiar, o governo gasta escandalosamente mal. A maior parte da enorme despesa anual pouco favorece o crescimento econômico, a criação de empregos, a modernização do País e o aumento do potencial produtivo. A estagnação da indústria, o desemprego de quase 13 milhões de trabalhadores, o despreparo da mão de obra e o analfabetismo funcional de cerca de 38 milhões de pessoas são claros sintomas de um desperdício de proporções amazônicas. Dispondo de uma carga tributária de cerca de um terço do produto interno bruto (PIB), o poder público entrega muito menos que as administrações de outras economias emergentes. Nestas outras, a tributação equivale em média a uns 20% da produção anual de bens e serviços. Mas a educação fundamental é frequentemente melhor que a brasileira, as contas públicas são menos desequilibradas e o desempenho econômico foi bem mais satisfatório nos últimos dez anos.

No Brasil, o dinheiro desperdiçado vai para o ralo por várias canaletas. No próximo ano serão consumidos R$ 306,4 bilhões só com os chamados gastos tributários, segundo estimativa divulgada na semana passada pela Receita Federal. São vantagens fiscais concedidas, nem sempre de forma justificável, a regiões, empresas, organizações sem fins lucrativos, grupos diversos e indivíduos às vezes muito bem de vida. Não há uma avaliação clara dos benefícios produzidos pelas várias facilidades incluídas nesse conjunto.

Apesar de obscuros quanto aos efeitos, esses gastos crescem seguidamente. Deste ano para o próximo o aumento previsto é de R$ 23 bilhões, como informou o Estadão na quarta-feira. No Ministério da Fazenda, segundo noticiou o jornal no dia seguinte, técnicos têm procurado meios de reduzir ou eliminar parte das concessões. Se tiverem sucesso, o presidente eleito em outubro receberá um Orçamento um pouco mais administrável.

Mesmo sem grandes encargos adicionais, o governo central terá dificuldade em 2019 para manter o déficit primário dentro do limite previsto de R$ 139 bilhões. O resultado primário é calculado sem o custo dos juros vencidos. Os juros e o principal vêm sendo rolados há vários anos e, por isso, a dívida tem crescido. Essa tendência só será alterada quando houver algum superávit primário, isto é, alguma sobra para a liquidação pelo menos parcial dos encargos financeiros. Isso poderá ocorrer, segundo especialistas, lá por 2023, se nada sair muito errado. Esta última hipótese é obviamente otimista, nas condições de hoje.

Não basta, no entanto, encontrar meios de reduzir ou eliminar parte dos benefícios. Um corte linear também será uma solução de qualidade muito duvidosa. Parte das facilidades tributárias pode ser justificável com razões muito sólidas. Incentivos podem ser econômica e socialmente benéficos quando fazem, de fato, diferença para o desenvolvimento regional, para a pesquisa científica e tecnológica ou para a prestação de serviços médicos gratuitos ou acessíveis.

Em todos os casos, é preciso planejar cada benefício com muito cuidado e avaliar periodicamente seus efeitos. Não tem havido avaliação regular dos gastos tributários, como já advertiu o Tribunal de Contas da União, nem padrões claros e consistentes para determinar a concessão de facilidades.

As vantagens são distribuídas segundo critérios muito raramente vinculados a noções de planejamento, de prioridades e de estratégias de desenvolvimento econômico e social. Pesam nas decisões a influência política dos beneficiários, a comunidade de interesses econômicos e o desejo de fazer boa figura. Isso vale tanto para a concessão de benefícios fiscais quanto para a decisão sobre desembolsos e distribuição de subsídios. Esse bolo enorme de renúncias e de despesas pode conter ingredientes muito diversos e inconciliáveis para o senso comum.

O conjunto pode incluir financiamentos de shows, moleza fiscal para quem recebe dividendos, desonerações de encargos sem criação de empregos e incentivos a indústrias limitadas a exportar para o Mercosul. Pode também conter sustentação de preços mínimos para certos produtos agrícolas, financiamento à exportação, bolsas de estudos para boas escolas, sempre com garantia de algum acerto de contas, e ajuda a hospitais beneficentes.

Alguns desses programas produzem, quando bem executados, efeitos econômica e socialmente positivos. Isso tem sido mostrado pela experiência internacional e comprovado amplamente no Brasil.

Não se trata, no entanto, apenas de selecionar com cuidado alguns objetivos e grupos beneficiários. É preciso definir claramente certos objetivos de longo prazo, sustentáveis por muito tempo, e metas estratégicas e variáveis de acordo com etapas do desenvolvimento. Planejamento respeitável tem como pressuposto dinheiro público manejável de forma racional. Isso é quase impossível quando o Orçamento, como no Brasil, é amarrado por despesas dificilmente comprimíveis e por vinculações de verbas.

Essas vinculações podem ter sido inventadas com excelentes intenções, mas são incompatíveis com a racionalidade e ainda favorecem a incompetência e a corrupção. Para que desenhar programas eficazes para a educação, quando há verbas garantidas e despesas obrigatórias? Prioridades mal escolhidas – e com evidente viés eleitoral – facilitaram a expansão de um ensino superior de baixa qualidade e pouca serventia. Ao mesmo tempo, os cursos fundamental e médio continuaram ruins, como têm comprovado testes internacionais e nacionais. Falar em falta de dinheiro é discutir a questão errada, especialmente quando muitos bilhões são desperdiçados a cada ano. A maior parte dos presidenciáveis tem ficado longe desses temas.

JORNALISTA

Sete semanas



Talvez nunca tenha sido tão importante o voto informado e consciente dos que não acreditam em messianismos salvacionistas, em voluntarismos extremados, tampouco em puros exercícios de “autoridade” como solução para problemas da complexidade dos nossos
    
Pedro S. Malan, O Estado de S.Paulo  09 Setembro 2018  

“Este é um trabalho muito pouco analítico, mas com ambição exagerada. Pretende convencer intuitivamente o poder incumbente que será eleito em 2010 de que: a) o Estado brasileiro é o mais pesado entre os que têm PIB per capita semelhante; b) essa é uma das causas importantes do nosso baixo crescimento; e c) sem ‘bala de prata’ ou choques duvidosos, existem muitas trilhas viáveis para reduzir o problema e recolocar o Brasil no caminho do desenvolvimento acelerado. Isso dependerá de muita perseverança, de razoável paciência e de alguma inteligência.”

Essa é a abertura de A agenda fiscal, texto do ilustre ex-ministro Delfim Netto publicado em Brasil Pós-crise: Agenda para a Próxima Década, organizado por Fabio Giambiagi e Octavio de Barros (Campus 2009). O trabalho encontrou ouvidos moucos de parte do poder incumbente eleito em outubro de 2010 e - o marqueteiro João Santana fazendo o diabo a quatro - reeleito em outubro de 2014. Afinal, desde 2005 o mote do grupo em questão era o famoso “gasto é vida”.

Novamente às vésperas de eleições, o artigo de Delfim continua atual e relevante. Avançamos na compreensão da magnitude dos desafios, forçados pelas circunstâncias, especialmente após o fracasso da política econômica do governo Dilma, essa que já havia sido figura-chave do governo Lula, definida por este após cinco anos e meio de convivência estreita como “a melhor gerente deste país”. Eleita, Dilma teve mais cinco anos para pôr suas ideias em prática. Deu no que deu.

Delfim Netto é hoje mais sintético, mas não menos mordaz. “Talvez possamos ter sucesso se o eleito tiver condições de eliminar a ‘causa causans’ que nos assalta há três décadas: a despesa primária do governo cresce em torno de 5% ao ano, enquanto o PIB cresce a 2,4%. Todo o resto é chantili!” (Folha de S.Paulo 29/8).

Em exatas quatro semanas mais emergirão das urnas dois candidatos a se tornar o “poder incumbente”. Talvez nunca tenha sido tão importante o voto informado e consciente dos que não acreditam em messianismos salvacionistas, em voluntarismos extremados, tampouco em puros exercícios de “autoridade” como solução para problemas da complexidade dos nossos.

Nunca na nossa História recente o Brasil precisou tanto de um candidato reformista, de centro, aberto ao diálogo, honesto, experiente e que não tenha ou venda ilusões. Ao contrário, que conheça bem a situação das contas públicas do País, o drama secular da educação, a tragédia da corrupção e da violência urbana. Que tenha refletido, cercando-se de pessoas experientes, tecnicamente competentes e que sejam capazes de vislumbrar o País no mundo, e não fechado em seu labirinto. Os eleitores decidirão, espero que tendo presente a diferença entre disputar uma eleição e efetivamente governar, com o Congresso que sairá das urnas, um país complexo como o nosso.

O desafio das reformas que o novo governo enfrentará reside em quatro grandes áreas, que por sua vez se desdobram em três tempos: o restante deste crucial ano de 2018, o próximo quadriênio e o longo período pós-2022, aí incluído o resultado das eleições desse ano, que definirão, juntamente com os avanços que o próximo governo possa alcançar, e os retrocessos que consiga evitar, o resto da década e boa parte dos anos 2030.

As quatro áreas são a macroeconômica, a área “não macro”, a das reformas propriamente ditas (em particular a da Previdência, a tributária e a da reorganização do Estado) e a área-chave para a definição do nosso futuro como sociedade civilizada, que é a área social, a qual inclui as legítimas demandas pela redução de desigualdades na distribuição de renda e, especificamente, de oportunidades, por meio de reformas em nosso sistema educacional.

A área da política macroeconômica encerra a discussão de seus três regimes fundamentais: monetário, cambial e fiscal. Os dois primeiros estão definidos há quase 20 anos e vêm servindo bem ao País. Seria importante que os candidatos pudessem reafirmar a importância de sua consolidação, que por sua vez depende do equacionamento de nosso grave problema fiscal, como fica cada vez mais claro para a opinião pública menos desinformada. O equacionamento de nossos problemas fiscais não é um fim em si mesmo, mas condição necessária para alcançar objetivos mais importantes para a população.

A área “não macroeconômica” não é menos relevante. Ela diz respeito ao sistema de incentivos e desincentivos a decisões de investidores, poupadores e consumidores dados pelo sistema de preços relativos tal como afetados por decisões sobre preços administrados, desonerações fiscais e subsídios. Como vimos, o excesso de ativismo do governo pode levar a distorções na alocação de recursos e ao aumento de incertezas jurídicas, que afetam decisões de investimento. O contexto regulatório e a defesa da competição são cruciais, a reforma do Estado passa pela avaliação permanente da qualidade do gasto público e pela análise sistemática de custo/benefício da miríade de programas governamentais.

O próximo governo deverá ser “reformista” caso pretenda efetivamente governar o País e, principalmente, recolocá-lo no rumo do desenvolvimento econômico, político e social. O espaço para acertar é reduzido, e enorme aquele para erros - velhos e novos. O passado se foi e não pode mais ser alterado. O presente está constantemente a se transformar em passado.

Mas sempre haverá um futuro a ser construído - se sobre ele uma sociedade for capaz de formar certas ideias compartilhadas, algumas que sejam. Para tal é melhor que tenhamos uma boa ideia de onde estamos e de como chegamos à situação atual e seus desafios. Não será fácil - nunca o foi e nunca será. Mas o Brasil e os brasileiros não temos alternativa senão acreditar no poder da persistência, do diálogo, da não violência - e de alguma racionalidade em meio às paixões, os interesses e os conflitos da vida real.

ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC

E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM 

Democracia brasileira está em risco permanente

'Democracia brasileira está em risco permanente', afirma filósofo

Roberto Romano, filósofo e professor da Unicamp
        
Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo- 08 Setembro 2018 | 05h00

O ataque a faca contra o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) em Juiz de Fora (MG) durante ato de campanha, é um reflexo do atual quadro da democracia brasileira, em que as instituições e a sociedade civil não têm funcionado normalmente. Esta é a avaliação do filósofo Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “(O incidente) É um resultado da democracia brasileira, que vive em risco permanente. Ela não está consolidada”, afirmou. 

Em entrevista ao Estado um dia após o incidente, o pesquisador alerta para a necessidade de os candidatos, os partidos e as autoridades públicas, sobretudo do Judiciário, “assumirem as responsabilidades de suas funções”. “Se não tivermos uma reação saudável e rápida, evidentemente teremos mais fatos graves até as eleições”, disse. “Estamos longe de perceber a gravidade da crise política e social brasileira.” Abaixo, leia os principais trechos da entrevista.



O que significa esse episódio?

Isso é um resultado da democracia brasileira, que vive em risco permanentemente. Ela não está consolidada. As instituições de Estado e da sociedade civil não estão agindo normalmente. Com isso, temos a perda radical da autoridade pública. E democracia sem autoridade pública não funciona. Quando não há autoridade, a violência física e a violência verbal se imiscuem em todos os assuntos da sociedade e do poder público. E então temos resultados como esse (o ataque). Se não tivermos uma ação rápida para resolver esses problemas, evidentemente vamos caminhar para um fim trágico. Quando o próprio Jair Bolsonaro, no Acre, usou uma frase no sentido de “metralhar seus adversários”, a Procuradoria-Geral da República não tomou providências. Esse é um ponto. Ela (Raquel Dodge) achou que era um assunto menor e isso mostra o quanto estamos longe de perceber a gravidade da crise social e política brasileira.

Nos últimos meses, tivemos outros ataques a políticos. São episódios isolados?

Não é isolado, esse é o ponto. Temos um regime civil que, na Constituição, promete ser democrático e, ao mesmo tempo, um Estado de direito. Para essa promessa ser cumprida, é necessário que os três poderes cooperem. No caso brasileiro, há um Executivo desacreditado, já que o presidente tem a avaliação do eleitor mais baixa possível. Tem um Parlamento em que o eleitor também não acredita, com desprestígio absoluto, e a Justiça começa a mostrar sinais de partidarismo, de política e de divisão, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Tem vários tribunais abrigados sob a sigla do STF. É isso que eu chamo de a perda da soberania. 

Como é esse conceito de perda da soberania? 

O conceito de soberania permite o uso da autoridade pública, exige a coordenação e a harmonia dos três poderes com o compromisso diante do cidadão. Quando os poderes se autonomizam em relação à sociedade e à economia, e começam a definir um padrão que não é o legal, mas o político, temos quase o princípio da anarquia. No Brasil, a falta de ordem começa nos mais altos escalões do Estado. E é evidente que, com isso, não tem como garantir na base da sociedade o bom convívio.

Jair Bolsonaro é esfaqueado em Juiz de Fora   
Que ações seriam necessárias para alterar esse cenário?

O primeiro passo é que os partidos políticos assumam a sua função de partidos e não de máquinas eleitoreiras que apenas visam a demagogia e a conquista de cargos. O segundo ponto é que as autoridades públicas no Executivo, Legislativo e, principalmente, no Judiciário tenham consciência da gravidade e não ajam como se nada estivesse acontecendo. As instituições brasileiras não estão funcionando normalmente. Dizer que estão é negar a realidade, negar os fatos como assassinatos de políticos e tentativas de assassinato. 

Com esse novo componente, o que se pode esperar para as eleições 2018?

O imprevisível sempre. Essa tem sido, infelizmente, a história do Brasil desde o governo de Getúlio Vargas. No momento em que se pensa que a situação do País vai caminhar para a normalização, para o respeito da autoridade e da ordem pública, tem um fato terrível como esse acontecendo. É preciso ter mais prudência, que não significa ter medo, mas sim agir no momento certo e não deixar que os fatos se precipitem. O que estamos assistindo são autoridades públicas que assistem à violência que grassa na sociedade como um todo e agem como se nada estivesse mudando. Os fatos deverão ser enfrentados até outubro.

Partidocracia, a ditadura dos partidos


Eles envelheceram nos homens, na conduta, nas ideias, mas insistem em boicotar a renovação
        
Almir Pazzianotto Pinto*, O Estado de S.Paulo 08 Setembro 2018  

Peço desculpas por haver escrito que os partidos políticos se assemelham às casas de tolerância, também conhecidas como lupanares, prostíbulos, alcouces, sentinas. Algumas legendas não merecem a comparação. Muitas, porém, perderam a respeitabilidade por envolvimento em negócios sujos, documentados em processos penais e condenações dos dirigentes. Em vez de cuidarem de assuntos de interesse público, transformaram-se em abrigos de corruptos e siglas de aluguel.

A fragilidade dos partidos reflete-se no desinteresse pelas disputas em torno da Presidência da República, dos governos dos Estados, do Senado, da Câmaras dos Deputados, das Assembleias Legislativas. A desilusão é geral. Debates e entrevistas perdem em audiência para jogos de futebol, filmes antigos, novelas, velhos programas de auditório. Os tradicionais “santinhos” ocultam a legenda do candidato. Na corrida para o Palácio do Planalto a maior porcentagem de intenções de voto é creditada a Lula, condenado e encarcerado em Curitiba.

A crise adquire dimensões universais. Não é visível em ditaduras de partido único, como a China ou Cuba, mas se aprofunda nas democracias ocidentais. O partido deixou de ser, na definição de Benjamin Constant, “uma reunião de homens que professam a mesma ideologia política”. O que temos são facções volúveis, cuja composição oscila ao sabor das conveniências. A infidelidade é a regra; a fidelidade, exceção. A democracia, como governo do povo, foi superada pela partidocracia, identificada por Gianfrancesco Pasquino como “o predomínio dos partidos em todos os setores: político, social e econômico” (Dicionário de Política, Bobbio, Matteucci, Pasquino, Ed. Edunb, DF, 1993, II, 906).

Caracteriza-se, diz o cientista político, por um “constante esforço dos partidos em penetrar em novos e cada vez mais amplos espaços. Culmina no seu total controle da sociedade. É então que a partidocracia é deveras o domínio dos partidos”. De acordo com Bobbio, “em vez de subordinarem os interesses partidários e pessoais aos interesses gerais, grandes e pequenos partidos disputam para ver quem consegue desfrutar com maior astúcia todas as oportunidades para ampliar a própria esfera de poder. Em vez de assumirem as responsabilidades de seus comportamentos mais clamorosos e criticáveis, empregam toda a habilidade dialética para demonstrar que a responsabilidade é do adversário, a tal ponto que o país vai se arruinando e ninguém é responsável” (As Ideologias e o Poder em Crise, Ed. Edunb, DF, 1999, 193). 

As ferramentas da partidocracia consistem no financiamento público dos partidos e das campanhas e na “atribuição de cargos em vastos setores da sociedade e da economia segundo critérios predominantemente políticos (fenômeno que no caso italiano é apropriadamente definido como loteamento). Ambos os instrumentos fortalecem os partidos, envolvendo amplas e, às vezes, importantes camadas de cidadãos” (Dicionário, Pasquino, vol. II, pág. 907).

A descrição da política, tal como é praticada na Itália, guarda rigorosa semelhança com o cenário brasileiro. A Câmara dos Deputados e o Senado pulverizam-se nas facções. Entre as mais atuantes temos as facções do agronegócio, dos sindicalistas, das igrejas evangélicas, dos corruptos, dos omissos, dos revanchistas, da bala, do baixo clero. São agrupamentos volúveis, que se aproximam ou se afastam de acordo com a determinação do líder do segmento representado.

A discussão sobre a quantidade de partidos é antiga. Surgiu com o aparecimento das primeiras agremiações na segunda metade do século 19. Themístocles Cavalcanti distingue três sistemas: do partido único, presente nos regimes totalitários; do bipartidarismo, adotado nos países anglo-saxônicos por força dos costumes, da tradição e da educação desses povos; e o multipartidário, “preferido nos países latinos, onde o espírito domina a própria realidade política e a capacidade para estabelecer as nuances dos diferentes sistemas levou a essa complicação partidária, que encontramos notadamente na França e no Brasil” (Cinco Estudos, Fundação Getúlio Vargas, 1955). Estivesse vivo, o saudoso constitucionalista colocaria, como quarta posição, o sistema de facções surgido na Itália e aperfeiçoado no Brasil desde o final do século passado.

A campanha eleitoral em andamento revela a fragilidade das legendas. As intenções que havia de voto em Lula não correspondem à decadência do Partido dos Trabalhadores (PT), em adiantado estado de decomposição. Lula, como outros desgastados dirigentes, impediu o florescimento de novas lideranças. Como sucede com o PT, os demais partidos envelheceram nos homens, na conduta e nas ideias, mas insistem em boicotar a renovação.

Ouvindo as ruas fica nítido que o povo perdeu o respeito por partidos e dirigentes. O descrédito é de tal ordem que já lhe não interessam as propostas, as entrevistas e os debates. Votará em quem acreditar ser algo novo, em alguém que imagine lhe trará segurança, emprego, e derrote a corrupção. As regiões atrasadas prestigiarão o atraso. País de analfabetos, governo de analfabetos, escreveu Rui Barbosa. O Brasil modernizado observa a fragmentação de candidaturas com ralas porcentagens de apoio e altas taxas de rejeição.

De Bolsonaro a João Amoedo, passando por Marina Silva, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, Henrique Meirelles, Boulos, Eymael, é amplo o arco de alternativas. Ninguém consegue, porém, robusto apoio do eleitorado. São candidatos cujos partidos cumprem o papel de figurantes.

É inútil esperar do cidadão cuja família sofre abaixo da linha da pobreza que analise nomes e propostas para decidir de maneira racional. No dia 7 de outubro, confuso e desiludido, com o desemprego dentro de casa e a insegurança do lado de fora, votará sem entusiasmo cívico, para cumprir obrigação.

*ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (TST)

O Brasil e a crise argentina


Desta vez, as turbulências no comércio entre os dois países não decorre, como aconteceu com frequência nos governos populistas de Néstor e Cristina Kirchner, de medidas administrativas de caráter nacionalista
   
O Estado de S.Paulo 08 Setembro 2018 

As medidas anunciadas pelo governo do presidente Mauricio Macri para conter a crise econômica na Argentina já afetam de maneira notável as exportações brasileiras para aquele país, que devem fechar 2018 com redução em relação às vendas do ano passado. A indústria automobilística brasileira está entre os segmentos mais atingidos pelos problemas no país vizinho. A queda das exportações de veículos, observada desde maio, deve se estender pelos próximos meses, o que pode afetar o desempenho desse segmento industrial que concentrou suas vendas externas em países sul-americanos e, em particular, na Argentina. Os números que dão a dimensão do impacto da crise argentina sobre as vendas externas de veículos brasileiros, apresentados em reportagem do Estado, são expressivos. O total das exportações de veículos entre maio e agosto deste ano é 22,4% menor do que o dos mesmos quatro meses do ano passado. As vendas caíram de US$ 2,4 bilhões para US$ 1,8 bilhão.

O domínio do mercado sul-americano, especialmente o do Mercosul, tem assegurado às montadoras de veículos instaladas no Brasil uma posição relativamente cômoda. No ano passado, por exemplo, o setor exportou 766 mil veículos completos, o que representa 29% de sua produção, que alcançou 2,7 milhões de unidades. O bom desempenho da produção nos oito primeiros meses do ano, de 1,97 milhão de unidades, leva a entidade representativa das montadoras, a Anfavea, a projetar uma produção superior a 3 milhões de veículos em 2018. Mas as exportações no ano, se não caírem em relação às de 2017, deverão, na melhor das hipóteses ter crescimento zero. Nesse caso, a fatia das exportações na produção total cairia para 25%.

Esta é, porém, uma estimativa otimista. Em valor, as exportações de veículos vêm diminuindo há quatro meses, de acordo com dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic). Em maio, elas foram 10% menores do que as de um ano antes; em junho, a queda foi de 19%; em julho, de 40%; e em agosto, de 21%. Os dados da Anfavea, baseados no número de unidades exportadas, diferem dos do Mdic, mas confirmam a tendência. Em unidades exportadas, as vendas externas caíram 17,2% em maio, 4,4% em junho, 21,7% em julho e 16,6% em agosto.

Na crise da economia brasileira que marcou os últimos anos do governo da presidente cassada Dilma Rousseff, quando as vendas internas despencavam, as exportações para a Argentina cresciam continuamente. À necessidade dos fabricantes brasileiros de encontrar mercado para sua produção, até oferecendo descontos, somavam-se condições de financiamento mais favoráveis. Os consumidores argentinos chegaram a absorver até 70% dos veículos exportados pelo Brasil, o que gerou um desequilíbrio no comércio de produtos automobilísticos entre os dois países.

O crédito encolheu e ficou mais caro na Argentina. O número de veículos financiados caiu 12,2% em junho e 17,2% em julho, na comparação com os mesmos meses de 2017. As vendas, de sua parte, caíram 18,2% em junho, 22,8% em julho e 25% em agosto. O aumento dos juros básicos, de 45% para 60%, bem como a forte desvalorização da moeda local, o peso, em relação ao dólar, devem comprimir ainda mais a demanda por veículos brasileiros. O conjunto desses fatores negativos para as exportações brasileiras deve levar a Anfavea a rever suas projeções para as vendas externas de veículos neste ano. Já parece certo que haverá redução em relação a 2017. “Não vamos conseguir repetir o bom número do ano passado”, admite o presidente da Anfavea, Antonio Megale.

Desta vez, as turbulências no comércio entre os dois países não decorre, como aconteceu com frequência nos governos populistas de Néstor e Cristina Kirchner, de medidas administrativas de caráter nacionalista, como retenção de autorizações de entrada de produtos brasileiros na Argentina. Elas são consequência da crise econômica argentina cujos efeitos sobre o Brasil e outros países só agora começam a ficar evidentes.




terça-feira, 23 de outubro de 2018

'A reconstrução do Brasil: o que é fundamental?'


A condução política competente e correta promoverá a solução dos problemas nacionais
        
*MARIO CESAR FLORES, O Estado de S.Paulo - 06 Setembro 2018 

O País está em crise grave. O Estadão pergunta, sobre a reconstrução do Brasil: o que é fundamental? As respostas que vêm de imediato à mente de seus leitores enfatizam temas como saúde, educação, segurança, (des)emprego, infraestrutura e outros que afetam o dia a dia da vida nacional. Mas o que seria mesmo fundamental?

O destino histórico não é determinista inexorável. Nenhum país é desenvolvido ou subdesenvolvido, rico ou pobre em razão essencialmente de sua geografia – extensão, topografia, localização –, clima, abundância ou carência de recursos naturais e terra fértil. Geradas pela História ou naturais, essas influências estimulam ou dificultam o progresso, mas o uso eficiente do potencial positivo e/ou a superação dos óbices depende da condução política. Os sucessos nacionais sempre foram impulsionados por lideranças e instituições políticas competentes, em que (na História contemporânea) a propensão democrática e liberal sempre esteve presente.

Entendo, portanto, que a reposta à pergunta do Estadão é: a “reconstrução do Brasil” depende fundamentalmente da formação democrática de uma estrutura política e sua sistemática de funcionamento – elencos competentes e corretos, instituições e normas eficazes – capazes de conduzir o Brasil protegido dos percalços que o vêm atribulando, muito em anos recentes. Balizada pelo interesse nacional, a condução política competente e correta promoverá as soluções dos vários problemas nacionais.

Do Brasil colônia até hoje o desempenho da nossa condução política tem estado comumente aquém da complexidade do País e estamos vivendo hoje um surto grave desse déficit. A Constituição de 1988 induziu um modelo político em que o sistema partidário é permeado por legendas eleitorais travestidas de partidos sem consistência programática e ideológica, mas influentes no funcionamento do nosso regime de fato: o confuso presidencialismo de coalizão, naturalmente vulnerável à improbidade e no qual a governabilidade é condicionada por interesses e perspectivas dos partidos – de suas lideranças –, nem sempre coerentes com os nacionais.

As reformas que qualquer cidadão medianamente instruído e sensato entende como necessárias, hoje em evidência a da previdência do serviço público e do INSS, são vistas com cautela, se não com relutância, pelos agentes políticos institucionalmente envolvidos nelas. Cautela e relutância típicas da cultura do nosso sistema político, que cultiva a estabilidade no que deveria ser missão delegada. Os congressistas se sentem ameaçados pelos prováveis reflexos no humor do eleitorado atingido pelas correções. A síndrome da reeleição que (é justo admitir) não é apenas brasileira, é inerente a todo regime democrático, está presente nas suas decisões.

Também são vistos como influentes no humor do eleitorado, e por isso evitados ou objeto de abordagens periféricas, temas complexos e controversos, como as revisões da sistemática política (a reforma política que atinge os agentes reformadores) e do paradigma do serviço público corporativista poderoso. A continuidade da desestatização da economia sofre resistência sempre pelo mesmo motivo: o reflexo eleitoral.

Os problemas que povoam a cabeça dos cidadãos comuns são realmente importantes, mas soluções singulares aplicadas à saúde, educação, segurança e outros assuntos de incidência similar na vida do povo não resolvem a “reconstrução do Brasil”, serão soluções limitadas. Não existe solução singular que não afete a equação fiscal, hoje em risco dramático: toda solução singular exige recursos e a definição de prioridades, inexorável diante das limitações fiscais, é responsabilidade política também sujeita a dissabores eleitorais.

Nossa condução política atual tem indicado ser difícil que ela venha a superar óbices e “reconstruir o Brasil”. Difícil, mas não impossível, e para adequá-la à necessidade do País não precisamos de atropelos institucionais como foram a Revolução Gloriosa dos 1600 na Inglaterra, as Revoluções Francesa e Meiji, que controlaram o absolutismo contrarreformista anterior – o que não aconteceu em Portugal, que ficou para trás, com reflexos no Brasil. De fato: a democracia, com sua revolução pacífica e democrática – a eleição –, em que a arma do povo é o voto, permite-nos optar pelo progresso em tranquilidade, sem tumulto radical.

O sucesso dessa hipótese – a formação de condução política com condições para promover a “reconstrução do Brasil” a tempo de evitar o pior – depende do “saber escolher”, quesito inseguro em razão do despreparo de parte ponderável da população. Depende da revisão da sistemática político-eleitoral, que, embora a realidade sugira a renovação, vem favorecendo a continuidade praticamente à revelia do desempenho (novamente, parte do eleitorado é incapaz de avaliá-lo). E depende também da prevalência da esperança sobre a desilusão com a política, que vem alimentando a apatia conformada, o voto nulo ou o não voto – quesito que preocupa porque significa o aval do povo ao status quo.

Se essa hipótese não se confirmar, o poder virá a ser conferido, também democraticamente, a políticos que manterão os vícios do regime atual ou, no clima de crise em que vivemos, a políticos que manipularão nuanças flexíveis da democracia para exercê-lo com o viés autoritário típico de ilusões salvacionistas de direita ou esquerda. Viveremos o flagelo de devaneios e medidas redentoristas como a execração do “inimigo do povo” – imperialismo, elites, bancos... –, o controle social da mídia, a contenção de preços “na marra”, e por aí vai... Os tropeços da democracia autoritária e seu declínio rumo ao fracasso – a Venezuela hoje –, anestesiados pela consagração do messias mítico (Perón, Fidel Castro, Hugo Chávez...). A “reconstrução”, obviamente, ver-se-á postergada.

Reflexões de cidadão preocupado...

*ALMIRANTE

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