ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
O GLOBO
Um grupo de pessoas, com a força da convicção sobre uma causa, é capaz de influenciar a sociedade. As minorias destrutivas têm o mesmo poder
No entorno dos estádios é comum ver grupos de garotos, radiantes, se preparando para assistir a um jogo de futebol. Deve ter sido assim que um menino boliviano saiu de casa para ver seu time enfrentar o Corinthians, lendário campeão brasileiro e mundial. Voltou morto, o rosto trespassado por um sinalizador náutico atirado da “torcida organizada”. A mesma que no ano passado acabou com a apuração do concurso das escolas de samba de São Paulo, estragando mais uma festa popular.
O sinalizador era idêntico ao disparado dentro de uma boate e que provocou a tragédia de Santa Maria. É um naufrágio o que esses dois crimes estão sinalizando. Não pode ser tratado como um problema menor. Onde vamos parar, perguntava, chorando, um jogador de futebol, campeão do mundo, indignado com a leniência com que o crime de Oruro era tratado nas redes sociais?
O futebol é uma das maiores alegrias do povo brasileiro, um esporte que se confunde com nossa identidade e autoestima, que habita o sonho dos mais pobres e ensina a derrota ao poderosos. Imprevisível, na caixinha de surpresas de Nelson Rodrigues, uma decisão do juiz, um lance infeliz, uma falta que provoca uma expulsão decidem uma Copa do Mundo. O acaso faz dele um verdadeiro jogo.
Esse jogo mágico está sendo pervertido pela violência de uma minoria que encontra eco no comportamento anônimo e impune das multidões. A cada partida que mobiliza as torcidas dos grandes clubes brasileiros, em meio à alegria, a catástrofe espreita como um possível avesso. Pacíficos torcedores têm medo de ir ou de levar seus filhos aos estádios, que se tornaram lugares perigosos. As camisas dos clubes vestem hordas que se enfrentam aos urros, como num circo romano de filme da velha Metro.
Um clima guerreiro se infiltra nas famílias, a hostilidade e a provocação gratuitas se sentam à mesa e separam irmãos, aberração justificada como paixão, corroendo uma palavra que se associa mais facilmente ao amor do que ao ódio.
O adversário está deslizando perigosamente para o papel de inimigo, a competição para a guerra. Essa deriva extrapola o futebol e infesta a política. Nos estádios europeus o insulto racista exprime de maneira particularmente cruel, sobretudo em tempos de crise, o ódio ao imigrante, bode expiatório de todos os males. Aqui e lá é de ódio que se trata, negação do outro como ser humano, reificado em alvo a ser destruído.
Os jogos são uma sublimação do instinto de competição que herdamos da difícil sobrevivência na selva. O respeito às regras, saber ganhar e perder, são conquistas de um pacto civilizatório. A violência das torcidas nos leva de volta a um passado simiesco.
A combinação literalmente explosiva de atos irresponsáveis com um clima generalizado de agressividade não é nada auspiciosa para o país que vai hospedar a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e as Olimpíadas, cujo sentido profundo é a competição leal entre os melhores. As medidas de segurança contra possíveis atentados talvez não sejam mísseis antiaéreos e sim o uso, urgente, de todos os recursos legais e educativos disponíveis para desarmar essa bomba impalpável que a violência acende para explodir nos estádios. O terrorismo das arquibancadas pode ser devastador.
Vimos convivendo com a violência sem perceber que, pouco a pouco, o que era minoritário propaga-se, se entranha nas relações, faz-se natural, vira um modo de ser e de se comportar. Pesquisa recente do MEC e da Fundação Lemann constatou, ao longo de um ano, 4.500 casos de professores agredidos por alunos nas salas de aula. 51.330 pessoas foram assassinadas no Brasil no ano de 2011. São baixas de uma guerra civil.
A psicologia social ensina que um grupo de pessoas, ainda que minoritário, com a força da convicção sobre uma causa é capaz de influenciar a sociedade como um todo, construindo novas posturas e opiniões. As minorias destrutivas têm o mesmo poder. Desagregam sociedades, impõem-lhe seus padrões de comportamento, à sua imagem e semelhança.
A violência no Brasil é epidêmica e como tal tem que ser tratada: prevenção e cuidado com a contaminação. E severidade na punição a quem a propaga, o que é responsabilidade do governo, que deveria priorizar seu enfrentamento. A nossa responsabilidade, os que recusamos a selvageria, é dentro de nossas casas, nas relações interpessoais. Na rua, no cuidado com o espaço público, no trânsito. Para que não constatemos um dia, perplexos, que também nos tornamos violentos. Ou que somos nós, agora, a minoria e que eles ganharam a partida.
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