quarta-feira, 20 de março de 2013

Sobre chuvas, suvacos e pernilongos



O ônibus estava lotado, sem lugar para repor o pé se ele subisse. As ruas alagadas da última chuva. Raiva e frustração misturavam-se enquanto ele procurava motivos para não se estressar. Haviam, afinal. 

Apesar do risco de demissões em sua empresa, que transportava grãos para navios no porto fétido e dominado por estivadores preguiçosos, que jogavam dominó ou futebol de salão enquanto moderníssimos navios com guindastes e esteiras autônomas faziam, com rapidez e eficiência todo o trabalho que os deitões acabavam por receber, sem nada fazer, graças a pressão de sindicatos. Este era um dos motivos que fizeram os chineses cancelar a compra de uma enorme quantidade de soja que seria exportada por muitos portos, nas mesmas condições, ao longo do litoral do país. Ele tinha certeza que muito pai de família iria perder o emprego por causa disso, mas pouco se importava agora.

Ele não estava nem aí. Havia virado pêxe do chefe. O chefe gostava de papos em cima, da hora. A última era uma campanha no Face para se impedir que um deputado pastor assumisse um cargo importante. Ninguém parecia querer, pois ele era racista e não gostava de gays. Aliás, ele  não conhecia pastores evangélicos, mas achava que eles, também, não iriam concordar. Enfim, não era assunto para ele, ou que ele gostava, mas estava rolando no Face e ele havia acompanhado no celular novo, comprado em muitas prestações sem comprometer muito o empréstimo consignado. Tinha que aproveitar. Dinheiro fácil assim, sem precisar de fiador como antigamente, era uma...

Bem, o ônibus começou a andar. A estação da Central estava perto. Ele pensou em descer e andar. Chegaria antes, mas iria encharcar os pés na lama e na água subindo nas calçadas, ainda mais com a marola feita pelos carros. Preferiu esperar, afinal ainda faltavam vinte minutos para pegar o trem direto para Japeri. Uma viagem, e que viagem. Estava torcendo para que tivesse lugar perto da porta, pois os ventildores das composições usadas no fim do dia estavam sempre quebrados. O calor depois da chuva seria mortal. E ele queria chegar logo para saber o que estava rolando com o pastor, pois a bateria do celular tinha acabado.

A viagem demorou, mas ele se divertiu vendo a marca de suor no suvaco das pessoas. Achava engraçado mas ao mesmo tempo triste. Com tanto dinheiro e o governo não dava transporte decente. Enfim.

Entre um vendedor ambulante e outro, sempre gritando, ele se lembrou da mulher desesperada pois a febre do pequenino ia e voltava. Ele estava encatarrado. Lembrou que tinha que  botar uma tela no quarto do pequeno, mas este mês o dinheiro ficou curto antes da hora e ele já estava no terceiro consignado. Tinha que manerar senão ia pro agiota.

Depois de quase uma hora no trem cheio, desceu na estação de destino e correu para o ponto do ônibus. Iria, até, tentar a fila do deitado. Havia três filas, a dos sentados, a dos iriam em pé e a terceira dos que aceitassem ir de qualquer maneira, nem que fossem deitados. Tava que nem a fila do Cascadura-Barra, nunca vazio, nem em dia de chuva.

Chegou logo no seu bairro, sorte que a água da chuva não estava muito alta. Sua preocupação era não ter entrado na soleira da porta que ele subiu com duas carradas de tijolo e um cimentinho chinfrin, mas deu jeito. Havia tijolos para subir a cama, os armários e a geladeira. A barreira não deixaria entra nem sapo nem cobra. Beleza, depois ele daria uma moral na soleira.

Quando passou na ponte estreita sobre um canal de água escura e fétida, não sabe o por quê, mas sentiu uma coceira na perna direita. Ela estava inchada e ele não tinha tempo de passar no posto de saúde. Quando arriscava pedir dispensa os médicos não estavam. Ele soube que "cumpriam o expediente do dedinho de silicone" no controle informatizado de presença do posto. Um colega do trabalho falou de um nome esquisito, filariose. Ele iria perguntar quando desse e fosse atendido. O ruim é que o canal ficava bem pertinho de sua casa. Levantada no tijolo sem caiar, mas as paredes por dentro estavam pintadinhas, na cor que a patroa queria...trégua na guerra, sem reclamação e ladainha, dava pra ir levando.

Enfim, logou a teve e o laptop. Beleza do Magazine Luíza, em doze vezes, ficou baratinho, mas um chip da TIM que, de vez em quando, pegava beleza, ele passava a noite no Face. Queria estar sabendo dos babados, queria se sentir entendendo, consciente. Queria ter papo para levar no trabalho e não ficar boiando. 

A febre do bebê cedeu. Beleza, mas a mulher parecia estar enjoada, o fedor no canal havia aumentado. O espiral "alerta" era novo e não faltava, porque senão os pernilongos não davam trégua. Mas é assim mesmo, morar ali era assim e todos se habituaram com o fedor do canal e os mosquitos. Faz parte.

Sentiu fome mas ficou com medo de ganhar um esporro da patroa, pois a janta tinha sido chinfrin. Levantou e descobriu um pacotinho de miojo do filho do meio, escondido no fundo do armário da parede. Lembrou do aluno na redação do ENEM. Garoto esperto, a nota deveria valer por ele ser safo, é disso que o país precisa, gente safa e não teórica. Lula melhorou a condição de vida dos pobre e o anterior, doutor, o FHC não. Era a vez da experiência sofrida das ruas saber o que o povo precisa. Ainda bem que a presidenta reza na mesma cartilha.

Enfim parecia que a notícia se confirmara: O deputado não seria mais presidente da comissão no Congresso, umas letras interessantes mas tinha a ver com direitos humanos e de minorias. Ele estava feliz com isto, afinal, morava num país onde se respeitava minorias, havia democracia.

 Nem o abafado do calor do fim do dia, nem os pernilongos já importavam, o importante é que no seu Brasil, os direitos humanos estavam sendo respeitados.

A coceira na perna inchada aumentara, ele pediu um chá dos matinhos que só a patroa conhecia, aprendeu com a mãe. Bebeu com cuidado para não entornar no teclado, a mesa tava com a perna bamba. Procurou esquecer que a perna já latejava. Amanhã já será outro dia. 
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