domingo, 13 de julho de 2014

Meritocracia tropical

Tentamos combinar sistemas arcaicos com modernos, em uma busca desajeitada de sínteses inviáveis
por Thomaz Wood Jr.  


Depois de algum tempo submerso, o debate da meritocracia voltou à superfície. No mundo corporativo, executivos flertam novamente com o tema, ansiosos por superar práticas anacrônicas e “mudar a cultura”. No governo, alguns gestores apostam nos poderes mágicos da meritocracia para resolver problemas crônicos de gestão, que desvirtuam agendas, bloqueiam iniciativas e atrasam prazos.

O conceito é polêmico, antigo, e tem raiz política, relacionando-se à forma de governo no qual o poder é exercido por cidadãos selecionados de acordo com seus méritos e competências. Para crescer em tal sistema, o indivíduo deve demonstrar talento e capacidade de realização. Cingapura, por exemplo, estabelece explicitamente a meritocracia como pedra fundamental de sua filosofia de governo. Nessa cidade-Estado de 5 milhões de habitantes e renda per capita de mais de 50 mil dólares, “o sistema de meritocracia assegura que os melhores e mais brilhantes, independentemente de raça, religião e origem socioeconômica sejam encorajados a desenvolver totalmente seu potencial”.

Em texto publicado em janeiro de 2014, na RAE-Revista de Administração de Empresas, da FGV-Eaesp, a antropóloga Lívia Barbosa, pesquisadora da PUC-RJ e conhecedora do tema, faz uma análise da meritocracia na sociedade brasileira. A autora chama atenção para as frequentes menções de autoridades governamentais à necessidade de “implantação da meritocracia” como princípio e prática de gestão e, por outro lado, a também frequente presença da frase “abaixo a meritocracia” em cartazes de categorias profissionais em movimentos de protesto.

No século XIX, os países europeus e os Estados Unidos superaram o sistema de distribuição de cargos e funções públicas aos vencedores das eleições. No Brasil, copiamos sem muita vontade os precursores: a meritocracia tornou-se um critério apenas eventualmente aplicado, em permanente disputa com o fisiologismo e as cotas políticas.


Nas empresas, a fascinação com a meritocracia representa reconhecimento de que os sistemas de contratação, avaliação de desempenho e promoção (largamente disseminados) ainda convivem com práticas arcaicas de apadrinhamento e paternalismo. Implantar a meritocracia significa estabelecer metas ambiciosas para os funcionários, cobrar resultados e recompensar a realização. Espera-se, com a mudança, vencer a acomodação, reconhecer aqueles que de fato trabalham e fomentar um esforço coletivo para aumentar o desempenho. Livrar-se dos encostados e se ganhar dinheiro. Bom negócio!

Do outro lado do palco, os críticos da meritocracia desfilam seus argumentos. Para os seus detratores, a meritocracia é um discurso alienígena, primo do neoliberalismo e da globalização. Uma vez implantada, fomenta a competição desagregadora entre colegas, promove a quantidade, com prejuízo da qualidade, dá vantagens a poucos, em detrimento da maioria, gera estresse e ainda prejudica o ambiente organizacional. Para esse grupo, a culpa pela baixa produtividade, pela má qualidade dos serviços e pelos prejuízos é sempre externa: a falta de tecnologia, de ferramentas, de investimentos, ou a incompetência dos gestores e do próprio governo.

Lívia Barbosa conclui que o debate atual não vem acompanhado por uma demanda coletiva pela meritocracia, seja na esfera pública, seja nas empresas privadas. Segundo a antropóloga, uma análise da história brasileira revela que a introdução de critérios relacionados à meritocracia ocorreu em diversos momentos, porém sempre de cima para baixo, sem nunca permear de maneira consistente o tecido social. Assim, passou a conviver com valores e práticas existentes, frequentemente de forma ambígua e paradoxal.

O sistema imunológico cultural local parece rejeitar alguns pilares da meritocracia, tais como a competição e a diferenciação por mérito. A autora argumenta que no Brasil “queremos os resultados materiais da eficiência, da produtividade, da competitividade, mas não queremos seus custos pessoais. Queremos a igualdade, mas aceitamos múltiplas lógicas hierárquicas quando elas nos beneficiam”. Assim, continuamos tentando combinar sistemas arcaicos com outros, supostamente modernos, juntando desajeitadamente nepotismo e meritocracia, e buscando sínteses inviáveis.
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