domingo, 10 de novembro de 2013

A insustentável indefinição do conceito de renda

VINÍCIUS BRANCO

A Constituição de 1988, denominada "Constituição Cidadã", foi pródiga ao contemplar inúmeros direitos dos cidadãos em geral, e poucas obrigações.

É até compreensível que isso tenha ocorrido após tantos anos de ditadura, e da consequente limitação aos direitos individuais.

Dentre os direitos mais importantes previstos na nova Carta, destaca-se aquele à dignidade da pessoa humana, compreendendo o atendimento a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Apesar da entusiástica afirmação dos direitos fundamentais pelo novo ordenamento, tais determinações mostraram-se incompatíveis com nossa realidade, pois passados mais de 25 anos, o Estado brasileiro não conseguiu assegurá-los em sua plenitude.

No campo do direito tributário, essa utopia também se faz presente, e para prová-lo, basta um rápido apanhado nas normas que vigoravam à época em que não havia Estado de Direito - e por conseguinte, democracia - cotejando-as com as que hoje vigoram.

Recorde-se que quando do advento do Decreto nº 85.450, de 4 de dezembro de 1980, que aprovou o Regulamento do Imposto sobre a Renda da época, as pessoas físicas estavam autorizadas a abater da renda bruta pagamentos efetuados a título de juros de dívidas pessoais, aí compreendidas as contraídas no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, bem como os encargos de financiamento da educação, treinamento ou aperfeiçoamento dos assalariados, além de prêmios de seguro de vida, de acidentes pessoais e aluguéis, ainda que limitados a valores pré-determinados.

Com a revogação dessa norma pelo Decreto nº 1.041, de 11 de janeiro de 1994, editado já no chamado ambiente democrático, foi sorrateiramente suprimido o direito a esses abatimentos.

Como se não bastasse, a Administração Tributária tem estabelecido, mediante expedição de meros atos administrativos, vedação à dedução de despesas admitidas pela lei, a exemplo daquelas incorridas com cursos de línguas e aperfeiçoamento profissional.

Por mais paradoxal que possa parecer, verifica-se que dos tempos sombrios para cá, a legislação tributária regrediu ao invés de evoluir, em prejuízo do contribuinte.

Incompreensível a proibição da dedução de despesas com aluguéis, se elas são indispensáveis para assegurar o direito à moradia. Mais ainda: essa restrição mostra-se pouco inteligente por estimular a evasão fiscal, encorajando locador e locatário a omitir de suas declarações de renda os valores negociados.

Nesse caso, a autorização para dedução de gastos com aluguéis tenderia a aumentar a arrecadação, pois o estímulo à omissão deixaria de existir.

Gastos com juros - ao menos os relacionados à compra de casa própria - também se inserem entre aqueles necessários para proporcionar o direito a uma moradia digna, inexistindo razão plausível para sua supressão.

Despesas com cursos de aperfeiçoamento, inclusive no aprendizado de línguas, deveriam ser incentivadas, e não restringidas, sobretudo no momento em que o fenômeno da globalização se faz sentir no País.

Aliás, causa espécie que a vedação a essa dedução perdure às vésperas de eventos esportivos de enorme repercussão como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas no Rio de Janeiro, que devem atrair turistas do mundo todo.

À inércia do Poder Legislativo, some-se a apatia e indisposição do Judiciário, que evita a todo custo manifestar-se de forma firme e convincente na definição do conceito de renda, sob o pretexto de que fazê-lo significaria intromissão indevida na competência de outro poder, provocando indesejável insegurança jurídica.

Cite-se, apenas a título de exemplo, o hesitante posicionamento das Cortes acerca da dedução de juros moratórios e de encargos com coberturas contratuais (notadamente nas operações de hedge), apesar da sua natureza nitidamente indenizatória, a falta de atualização das tabelas de incidência do imposto de renda, cuja defasagem constitui autêntico imposto disfarçado, pois impede o expurgo de perdas inflacionárias, e a absurda indedutibilidade de gastos com remédios, enfermeiros, massagistas e assistentes sociais, incompreensivelmente só admitidos quando disponibilizados no âmbito de tratamentos hospitalares ou ambulatoriais.

Isso tudo mostra o quanto estamos atrasados na modernização da legislação tributária, indispensável para adequá-la à realidade e atender necessidades crescentes de inserção do Brasil na cada vez mais concorrida economia mundial, exigindo um marco que defina com precisão o conceito de renda e impeça a manipulação desse instituto com fins meramente arrecadatórios.

VINÍCIUS BRANCO, 57, é bacharel em direito pela Universidade de São Paulo e sócio de Levy & Salomão Advogados

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