quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Universo paralelo


 EDITORIAL 
GAZETA DO POVO - PR 

O “Vice-Ministério da Felicidade”, o rosto de Chávez em um túnel de metrô e o Natal antecipado por decreto são factoides para desviar a atenção do caos econômico e social por que passa a Venezuela

Em um desses casos em que a realidade supera mesmo a ficção mais surreal, a Sucupira de Dias Gomes, a Macondo de Gabriel García Márquez, a Antares de Erico Verissimo parecem fichinha perto da Venezuela de Nicolás Maduro. O país, que já vinha fora dos trilhos quando Hugo Chávez era vivo, parece ter descarrilado completamente. Já era possível supor que as coisas não iam bem em abril, na campanha eleitoral em que Maduro disputou a Presidência contra Henrique Capriles. Na época, o então candidato bolivariano havia dito que o falecido Chávez lhe havia aparecido, na forma de um passarinho, e abençoado sua candidatura.

Mas, nos últimos dias, o surrealismo tomou proporções que nem mesmo os autores mais criativos teriam imaginado. No fim de outubro, Maduro criou o Vice-Ministério da Suprema Felicidade do Povo Venezuelano, teoricamente com o objetivo de unificar os programas assistencialistas levados a cabo pelo governo do país. Dias depois, o presidente foi à imprensa mostrar imagens do que seria o rosto de Hugo Chávez surgido em um túnel do metrô de Caracas. A última de Maduro foi antecipar o Natal – não de forma alegórica, como quando o comércio começa a exibir enfeites natalinos semanas antes da festa; a antecipação ocorreu por decreto: “Hoje, sexta-feira, 1.º de novembro, quisemos decretar a chegada do Natal, porque queremos a felicidade para todo o povo, a paz”, disse o presidente após visitar a Feira Natalina Socialista, em Caracas, onde conversou com os reis magos e cantou canções típicas natalinas. “O Natal antecipado é a melhor vacina para os que querem inventar tumulto e violência. Natal adiantado. Aqueles que andam amargurados por aí terão uma canção natalina do Pacheco, ou uma seresta para alegrar a alma”, continuou, referindo-se a Francisco Pacheco, um compositor local.

Tantos factoides servem a apenas um propósito: desviar a atenção da sociedade venezuelana para o caos em que se encontra a economia do país. Apesar da enorme riqueza que o petróleo poderia proporcionar à Venezuela, que tem reservas estimadas em quase 300 bilhões de barris (as maiores do mundo), o país vive o caos econômico. A inflação deve fechar o ano em torno de 50% e o próprio Banco Central da Venezuela reconhece, em um relatório divulgado recentemente, que a escassez de produtos é alarmante: na capital, Caracas, 98,8% dos mercados não têm óleo de milho para vender. A situação se repete para outros 15 produtos, incluindo leite (84,3%), açúcar (80,8%) e farinha de milho (73%). O papel higiênico, que se tornou um símbolo do desespero dos venezuelanos por produtos básicos, está em falta em 79% dos estabelecimentos de Caracas.

O presidente Maduro recorre a teorias da conspiração para justificar o desabastecimento, falando em “guerra internacional”, quando na verdade a produção é desestimulada por fatores como o controle estatal dos preços, o que por sua vez estimula um mercado negro que desvia para a Colômbia o pouco que ainda é produzido em solo venezuelano. O Brasil também sofre com os efeitos do descontrole no país vizinho, com empresas brasileiras tendo dificuldade para receber o pagamento por exportações feitas à Venezuela, embora isso seja muito pouco em comparação com a situação de quem não consegue comprar leite ou açúcar.

Os resultados do “socialismo do século 21” ficam evidentes. Os governos anteriores venezuelanos mantiveram o povo na penúria, mas o chavismo já dura quase 15 anos e, mesmo assim, um país premiado com a abundância de uma commodity fundamental para todo o mundo ainda não foi capaz de garantir prosperidade para sua população. Pelo contrário: os venezuelanos não convivem apenas com inflação e desabastecimento, mas também com a violência – a taxa de homicídios venezuelana, segundo as Nações Unidas, foi de 45,1 mortes para cada 100 mil habitantes em 2012 (a do Brasil foi de 25,8). Para colocar ordem no país (é o que ele alega), Nicolás Maduro pediu ao Legislativo venezuelano que aprovasse a Lei Habilitante, para que ele pudesse governar por decreto por 12 meses. Ironicamente, foi justamente na última vez em que vigorou a Lei Habilitante que Chávez decretou a Lei de Preços Justos, a origem de toda a crise de abastecimento.

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