sexta-feira, 11 de setembro de 2009

América Latina ainda padece com o cesarismo democrático

Um texto supreendente não só por sua precisa revisão histórica como também, em sua época, antecipa o que ocorre hoje na Colômbia, guardadas as devidas proporções. Aqui não estamos longe disto.

Ressalto, contudo, um dado interessante do Latino Barômetro dando conta, em anos sucessivos, de que em torno de 40% dos cidadãos dos países pesquisados não acreditam na democracia como forma de desenvolvimento. Claro está que suas experiências com governos de esquerda no poder nos últimos vinte anos tem mantido sua dificuldade de ascensão na escala de desenvolvimento humano.

Em suma, o que o artigo muito bem escrito ilumina é nossa eterna busca por um ungido pelas hostes celestiais que ao vencer um pleito venha resolver todos os problemas sociais para os quais nós não temos vontade ou embocadura para fazê-lo.

Vale refletir sobre o assunto.

América Latina ainda padece com o cesarismo democrático

The New York Times - Por Tomas Eloy Martinez

A campanha eleitoral, já concluída, confirmou na Argentina o papel inesgotável do cesarismo nos países que ainda têm instituições frágeis na América Latina. Ou seja, quase todos.

Se tomarmos a definição de Antonio Gramsci, "o cesarismo expressa sempre a solução arbitrária, confiada a uma grande personalidade, de uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de perspectivas catastróficas".

Para o marxista italiano, pode haver cesarismos progressistas - Julio César e Napoleão 1º - ou regressivos - Napoleão 3º e Bismarck - mas em todos os casos se trata de uma saída encabeçada por um líder militar, mesmo que não só militar, para uma situação desesperada e excepcional.

Daí que a figura - chame-se cesarismo, bonapartismo, bismarckismo - seja tão familiar na América Latina, onde, desde as revoluções de independência, a maior parte das nações castigadas por sucessivas crises políticas e cenários de transição conheceu mais ditadores do que soluções institucionais.

Essas terras foram férteis em autocratas de grande popularidade que, nos tempos modernos, foram expandindo e consolidando seu poder por meio do controle da corrupção, da polícia e da capacidade de repartir os recursos do Estado como os convêm.

Não há símbolo maior de cesarismo democrático do que o regime do venezuelano Juan Vicente Gómez. Um de seus ministros, Laureano Vallenilla Lanz, estabeleceu a validade do termo em um livro de 1919.

Gómez inspirou a criação do personagem ditador do sexto romance de Gabriel García Marquez, "O Outono do Patriarca", e é a encarnação do homem forte das terras pobres preferida de artistas plásticos como Fernando Botero e Pedro León Zapata.

Quando cheguei à Venezuela em 1975, a figura de Gómez continuava ocupando o centro da imaginação nacional e agora, que encontrou em Hugo Chávez seu melhor discípulo, quase não passa uma semana sem que a oposição invoque o termo.

Gómez cresceu ao lado de seu predecessor, Cipriano Castro, que iniciou o século 20 enfrentando uma poderosa ameaça internacional ao não conseguir pagar a dívida contraída com empresas estrangeiras expropriadas.

Embarcações de bandeira inglesa, italiana e alemã bloquearam o porto de La Guaira em 1902 e a Venezuela conseguiu escapar da asfixia quando invocou a Doutrina Drago, que determina a ilegalidade da cobrança violenta de dívidas por parte das grandes potências em detrimento da soberania, estabilidade e dignidade dos Estados frágeis.

Ao se transformar em defensor do nacionalismo, Gómez pôde dar o salto à vice-presidência. Quando Cipriano Castro teve que se submeter a uma cirurgia delicada na Alemanha, ele o traiu com um golpe e se instalou na chefia do governo durante 27 anos. Ali, no trono patriarcal, morreu em 1935.

Seu ideólogo, Vallenilla Lanz, um sociólogo positivista, tentou argumentar que povos como o venezuelano não estavam capacitados para respirar uma atmosfera republicana; só "o gendarme necessário" - como definiu seu modelo de César - poderia tirá-los da miséria e da anomia.

Ele definiu que "o caudilho constitui a única força de conservação social" e que "o ditador eleito ou hereditário, de olhar vigilante", é uma necessidade vital "em quase todas essas nações da América espanhola, condenadas por causas complexas a uma vida turbulenta."

Como porta-voz eficaz da ideologia oficial, Vallenilla Lanz não se refere a Gómez em seu ensaio de maneira direta. Ampara-se, em vez disso, na figura tutelar de Simón Bolívar, que propôs a presidência vitalícia. Escreve que Bolívar "nunca cultivou a mais tênue esperança" de que "aquelas constituições de papel" pudessem estabelecer a ordem.

Seus críticos, como o exilado Rómulo Betancourt, do Partido Revolucionário Venezuelano - depois presidente constitucional - o chamou de "Maquiavel tropical coberto de papel higiênico". Longe de se ofender, Vallenilla Lanz agradeceu a comparação com o autor de "O Príncipe".

Chávez não é o único herdeiro da ideia de um César avalizado periodicamente por eleições livres. Decidido a concentrar ferreamente todo o poder apenas em suas mãos, já está há dez anos no governo, o mesmo tempo que Carlos Menem.

Figuras como Alberto Fujimori ou Álvaro Uribe, por mais diferentes que sejam, viram na perpetuação presidencial o veículo para modelar seus países de acordo com seus desejos. Sem falar em Fidel Castro, que não conseguiu encontrar um sucessor que não levasse seu sangue. Se por um lado o Brasil conseguiu superar, com os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a herança do autoritarismo populista de Getulio Vargas, na Argentina o exemplo de Perón impregna demais o partido que ele fundou e que já se confunde com o próprio Estado.

Contribuem, e muito, as torpezas de uma oposição que mostra menos interesse na construção da democracia do que no assalto aos privilégios conferidos pela coisa pública, assim como parece ter menos convicção para reintegrar os marginalizados ao mundo da cidadania do que para trocar um líder que assine os Decretos de Necessidade e Urgência por outro que faça o mesmo.

Néstor Kirchner, assim como Gómez, tentou prolongar seus planos de hegemonia alternando-se com seus parentes no governo, tal como fez ao decidir a candidatura da atual presidente, sua mulher. Agora sai a defender o modelo, agitando o fantasma de um conflito de interesses entre grupos e classes que só uma figura providencial, o César, poderia conter.

"Tenham claro", declarou o atual candidato e presidente do justicialismo antes das eleições de domingo passado, "que... não se trata de uma eleição a mais. Ou é a volta ao passado para tratar de impor projetos que não têm nada a ver com o povo, ou é a consolidação de um projeto nacional e popular que devolva a justiça social".

Esse jogo de tudo ou nada já foi explorado por Carlos Menem em 2003.

É, de alguma maneira, o jogo bonapartista, uma das formas do cesarismo. Depois das revoluções de 1848, Luis Bonaparte foi eleito - o primeiro voto universal na Europa - presidente da Segunda República Francesa. Suas constantes convocatórias e referendos desnaturalizaram a representatividade republicana e cimentaram sua popularidade.

Em 2 de dezembro de 1851, esmagou a crescente oposição monárquica ao convocar um plebiscito com a pergunta: "Querem ser governados por Bonaparte? Sim ou não?" Um ano mais tarde, depois da reforma constitucional, transformou-se em imperador autoritário.

A presidente Cristina Fernández conhece bem a história de Napoleão 3º, pois citou a obra de Karl Marx sobre seu golpe de Estado, "O 18 Brumário de Luis Bonaparte", evocando a famosa frase segundo a qual, quando a história se repete, primeiro o faz como tragédia e depois como farsa.

A influência do estilo cesarista de seu marido, para quem discordar equivale a trair, ameaça a estabilidade institucional tanto quanto a falta de ideias da oposição.

Em seu púlpito partidário, o ex-presidente Kirchner não vislumbrou outros futuros além do caos ou a continuidade do modelo imposto pela vontade do César. Nada se empobreceu tanto na Argentina como a imaginação de seus políticos.

Tomás Eloy Martínez

Analista político e escritor, o argentino Tomás Eloy Martínez é autor de livros como "Vôo da Rainha" e "O Cantor de Tango"

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