terça-feira, 5 de junho de 2012

Desatar o nó


Denis Rosenfield
O Globo

 O que têm em comum o mensalão, a CPI do Cachoeira, implicando a construtora Delta, e governadores supostamente envolvidos com uns e outros?
Aparentemente, esses fatos podem ser tratados isoladamente como se não tivessem conexão entre eles, cada um obedecendo a uma lógica específica. Poderiam, também, cair sob uma rubrica mais geral de completa ausência de moralidade púbica, o que já seria bastante revelador do momento em que vivemos.
No entanto, caberia a pergunta de se não há aqui uma questão de ordem estrutural, que se faz presente em cada um desses fatos, que sempre ressurgem sob a forma de "escândalos". No entanto, é tal a sucessão de escândalos, que alguns não parecem mais escandalizar, como se vivêssemos segundo uma rotina do escandaloso.
Os últimos anos têm sido a ocasião de desenvolvimento de uma espécie de capitalismo de Estado com tinturas socialistas, alicerçado em uma aliança entre sindicatos de trabalhadores e grandes grupos empresariais. Mais particularmente no governo Lula, esse processo foi intensificado, criando toda uma rede de privilégios e favorecimentos que terminou por distorcer as relações de mercado propriamente ditas. De um lado, o discurso contra o "mercado"; de outro, o favorecimento explícito de alguns agentes de mercado, encobertos sob o manto da intervenção "pública", quando de pública tem muito pouco.
Lula criou para si a imagem do vencedor que tudo pode, atendendo uns e outros segundo as circunstâncias, sem nenhuma preocupação para com o seu efeito sobre as instituições republicanas. De parte de grandes grupos empresariais e bancários, foi criada uma teia de relações pessoais que a eles concedeu e continua concedendo os mais diferentes tipos de benefícios. A justificativa, como sempre, é a da redução do crescimento do PIB, como se os problemas estruturais fossem assim abordados. Outras medidas estruturais não são nem aventadas, como redução uniforme de impostos para todos os setores ou aumento dos investimentos públicos via redução do custo da máquina estatal.
Ocorre que tal tipo de intervenção não é politicamente nem moralmente neutra, expondo problemas estruturais do Estado. Por exemplo, politicamente, benefícios são criados para grupos empresariais que terminam, depois, contribuindo financeiramente para os partidos governamentais que dão sustentação a essa forma de favorecimento. Moralmente, o ambiente se torna insalubre. Salta aos olhos que uma consequência é o aumento da corrupção e o pagamento de propinas, que terminam entrando no modo mesmo de funcionamento da economia e do Estado.
Uma relação capitalista, de mercado no sentido estrito do termo, funciona tendo como base a impessoalidade dos agentes econômicos, pautados por leis e formas tributárias que valem igualmente para todos. Ou seja, essas leis e regras não favorecem ninguém, os benefícios de cada agente econômico dependendo de seu desemprenho, conhecimento e competitividade. Relações de mercado se caracterizam por serem impessoais. Ocorre que o capitalismo de Estado retorna a formas mercantilistas de condução da economia, personalizando politicamente as relações econômicas.
Cachoeira, nesse sentido, não é um acidente de percurso, mas é um efeito desse capitalismo de Estado. Sua posição é particularmente significativa, pois ele se insere na interseção entre parlamentares, Poder Público, favorecimentos particulares, contravenção e relações com grandes empresas, no caso a Delta. De repente, os tentáculos dessa rede da contravenção se estendem para vários estados e para a União, tecendo uma rede de corrupção, privilégios e esfacelamento dos laços institucionais e morais. Um indivíduo desse quilate torna-se um personagem nacional. A perversidade parece não conhecer aqui nenhum limite.
Convém, aqui, assinalar que o governo Dilma tem procurado mexer com esses efeitos, enquanto, no governo Lula, esses efeitos nem combatidos eram. O novo governo procura se dissociar deles; o anterior com eles compactuava. Há, portanto, uma sinalização de mudança envolvida, mudança essa que poderá, talvez, no futuro se traduzir por uma transformação maior. Embora o combate aos efeitos seja altamente meritório, a abordagem das causas é mais do que nunca necessária.
O caso dos governadores supostamente envolvidos seja com o grupo de Cachoeira, seja com a Delta, seja ainda com ambos, mostra bem as relações de tipo pessoais usadas para favorecimentos de alguns, onde a fronteira entre o lícito e o ilícito começa a desaparecer. O atendimento de demandas particulares não resistiria a um teste de universalização, ou seja, a sua contribuição para o bem coletivo.
Nessa perspectiva, é imprescindível que tais fatos continuem a aparecer publicamente, produzindo na opinião pública uma situação tal de descontentamento que possa se concretizar eleitoralmente. O descalabro moral pode ter repercussões políticas. Bom signo disto é que a ética na política está se tornando novamente uma questão nacional. E a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação é uma condição para que essa transformação possa se operar.
Contudo, a questão maior consiste em desatar um nó de tipo estrutural, pois, se isso não for feito, o combate sobre os efeitos pode se tornar um trabalho de Sísifo, sempre repetindo o mesmo esforço, jamais chegando ao seu fim.
De um lado, o fortalecimento das intervenções governamentais na economia, favorecendo determinados setores e grupos econômicos, a expensas dos demais, cria "regras" particulares que não só distorcem as relações de mercado, como enfraquecem as relações institucionais e a moralidade pública. De outro, o combate às práticas que são consequências dessas relações se confronta com seu incessante ressurgimento, mudando apenas os personagens. Só desatando esse nó poderá o país descortinar um novo horizonte.
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