quarta-feira, 13 de junho de 2012

O relatório


ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
O ESTADÃO

A Nação acompanha com acentuado interesse o processo do "mensalão". Justifica-se a ansiedade popular, pois está em jogo a eficiência das ferramentas de que dispõe o Estado democrático para combater a corrupção. Afinal, indaga o cidadão comum, para que Constituição, leis e Poder Judiciário, quando se constata o passar dos anos sem que haja julgamento de pessoas acusadas de crimes graves?

Finalmente, o ministro Joaquim Barbosa divulgou o relatório da Ação Penal n.º 470-Minas Gerais, elaborado em 122 páginas. Sabia-se, por declarações de S. Exa., que o texto estava terminado. O conteúdo, entretanto, permanecia disponível apenas nos computadores do Supremo Tribunal Federal (STF). A internet trouxe a público um trabalho escrito em linguagem jurídica objetiva e consistente, obediente às regras da legislação processual, pois se circunscreve à síntese dos atos e fatos do processo.

O revisor, ministro Ricardo Lewandowski, citado em artigo de Dora Kramer, esclareceu à jornalista nunca haver dito que devolveria o feito revisado "só no ano que vem, mas que precisaria examinar cuidadosamente o processo com 38 réus". Assinalou S. Exa. que desconhece, no Supremo, voto revisor "que tenha levado menos de seis meses para ficar pronto" (!). Por fim, Lewandowski salientou: "Mesmo que pretendesse entregar em 2013, não haveria o risco de prescrição, porque isso só acontecerá em 2015".

Diante da corrida contra o tempo, e preso à obrigação moral que tem de encerrar a ação antes que o pior venha a acontecer, o Supremo, sob a presidência do ministro Carlos Ayres Britto, estabeleceu rigoroso cronograma, em que determina o dia 1.º de agosto para início do julgamento, que estaria concluído até as eleições municipais de outubro. Em setembro se aposenta o ministro Cezar Peluso; em novembro, o mesmo ocorrerá com Ayres Britto. É impossível saber o que ocorrerá se, até então, a tarefa não estiver concluída. Para que o plano traçado alcance êxito, nada deverá falhar. Lúcio Costa, o urbanista construtor de Brasília, teria dito, certa vez, que a única certeza possível é de que as coisas nunca ocorrem como planejadas. Os advogados declaram confiança na Justiça, mas não abrem mão do amplo direito de defesa e do respeito ao devido processo legal. Basta para se anteverem as dificuldades que encontrará o presidente Ayres Britto a fim de conduzir o feito como planejado.

Há cerca de dez anos o Poder Judiciário tomou a decisão de abrir as sessões de julgamento para amplo conhecimento público, com o emprego de redes de televisão. O propósito é elogiável. Faz chegar a localidades distantes de Brasília imagens até então reservadas a advogados e partes interessadas, com dinheiro, disposição e tempo para se deslocarem até a capital federal. Aos membros do Judiciário, habituados à vida reclusa dos tribunais, a televisão revelou ter duas faces: de um lado, deu-lhes mais projeção e renome; e, de outro lado (embora com exceções), converteu-se no afrodisíaco das vaidades. Em causas polêmicas, o telespectador passou a acompanhar, em tempo real ou retransmitidas altas horas, demonstrações de eloquência barroca e desafios de erudição, não raro convertidos em disputas verbais, para desmerecimento da reputação da Corte.

Fenômeno semelhante ocorreu com advogados. Sempre propensos às exibições de oratória, a televisão lhes trouxe a oportunidade de exibirem o talento ao mundo.

A Ação Penal n.º 470-Minas Gerais trata de crimes relatados pelo procurador-geral da República, cuja denúncia registra: "sofisticada organização criminosa, dividida em setores de atuação, que se estruturou profissionalmente para a prática de crimes como peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta, além das mais diversas formas de fraude" (fls. 5.621). Diz, ainda: "todos os graves delitos que serão imputados aos denunciados ao longo da presente peça têm início com a vitória eleitoral de 2002 do Partido dos Trabalhadores no plano nacional e tiveram por objetivo principal (...) garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores, mediante a compra de suporte político de outros partidos políticos e do financiamento futuro e pretérito (pagamento de dívidas) das suas próprias campanhas eleitorais".

Oito séculos antes de Cristo, o profeta Miqueias se lamentava: "No país inteiro não há uma só pessoa honesta..." "Autoridades exigem dinheiro por fora, e juízes recebem presentes para torcer a justiça" (Mq. 7/2-3). No ano de 1675, em sermão dedicado a Santo Antonio, o padre Antonio Vieira apontava a depravação dominante entre o povo. Para ilustrar a peroração, acusava o jesuíta: "Grande sabor é o do alheio, até para o gosto e paladar daqueles que o trazem costumado aos mais esquisitos manjares". Notórios rapinantes do dinheiro público se viciaram em viver do roubado. Intimados, comparecem perante comissões parlamentares de inquérito ou diante dos tribunais, impassíveis, de cara lavada. Reivindicam o direito de permanecerem mudos ou negam fatos documentadamente comprovados. Quase sempre a estratégia de defesa se limita à protelação. Imagina-se que, com o passar dos anos, os crimes cairão no esquecimento ou serão apagados pela prescrição. Devem imaginar: 2015 aparenta estar longe, mas não custa tentar alcançá-lo.

Os protagonistas do "mensalão" refletem a face suja da política do "nunca antes neste país", da demagogia populista, das bravatas, da licenciosidade. Conhecido o relatório do ministro Joaquim Barbosa, cabe à Suprema Corte levar a efeito o julgamento, conforme planejado. Do resultado se saberá qual o grau alcançado pelo regime democrático, restabelecido em 1985.
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