ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo
Uma conferência sobre a obra de Jorge Amado, organizada pela presidente da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado; pela British Library; e pela Embaixada Brasileira a propósito da celebração do centenário de nascimento de um dos nossos maiores escritores, leva-me à Europa da Europa: a Paris e a Londres, onde ocorreu a reunião no último dia 8.
Escrevo estas notas como um viajante que não sabe ser turista, esse estilo de andança moderna inventada por um Ocidente hoje em plena dúvida consigo mesmo. Uma dúvida que, lamento constatar, é tão real quanto o meu cansaço depois de bater perna pelo British Museum (que ainda não perdeu seu charme...) e pela cidade, já que um dos prazeres que continuam a existir nas metrópoles clássicas é caminhar por suas calçadas impecáveis, no deslumbramento de tentar enxergar o passado soterrado pelo presente.
De Paris, meu ponto de chegada como um velho turista, tenho mil memórias despedaçadas. Uma delas é a de uma conferência na Maison des Sciences de l'Homme quando minha obra despertava uma certa curiosidade entre os franceses. Lembro-me de uma conferência realizada justamente no auditório Émile Durkheim a convite de um acolhedor Michel Maffesoli. Falei sobre o carnaval como uma festa de inversão, mas a todo momento não me saía da cabeça o que diria o mestre fundador se ouvisse o que eu expunha para um grupo de jovens de olhar curioso. Uma outra recordação vem dos vários encontros com Claude Lévi-Strauss, a quem eu visitava religiosamente e que, depois de me receber gentilmente por cerca de 20 ou 30 minutos, olhava para o relógio como um sinal evidente de que meu tempo havia terminado. Eram "visitas estruturais" que tinham o dom de tornar Paris um lugar mágico e a Rue des Écoles, onde trabalhava o meu admirado mestre, o local das verdadeiras "mitologias", como disse uma vez num ensaio num número a ele devotado do Magazine Littéraire, em 1985.
Andando no início da semana passada numa Paris abarrotada e visitando os lugares onde vivi, fui possuído pelas visões de um jovem cujo amor pela antropologia francesa era uma forte razão de viver. Hoje, constato feliz, a chama não mais existe e dela fica um conjunto de imagens agradecidas, como a de um Louis Dumont e de um Luiz Tarlei de Aragão, ambos falecidos - este discípulo fiel do primeiro, ouvindo um seminário que dei mais nervoso do que um padre rezando sua primeira missa, para o grupo do professor Dumont, durante o qual surgiu inesperadamente a figura majestática de Lévi-Strauss, causando espanto em pelo menos um colega francês e muita inveja num outro. Depois do ordálio de ter sido ouvido por dois dos maiores mestres do pensamento sociológico francês, quando jantávamos descontraídos, Dumont levantou um brinde à minha presença que havia feito com que o seu antigo mentor no Museu do Homem, Claude Lévi-Strauss, viesse ao seu encontro - graças, disse ele, à vossa presença. Os olhos de uma mulher, que sabia da minha admiração e do meu encanto sem dúvida adolescentes por esses mestres, brilhavam de orgulho e amor.
Hoje, flanando por uma Paris superlotada de turistas, eu me vi como um peregrino desencantado. Tinha visto tudo. Os mestres haviam morrido. Eu não conhecia os novos luminares. Senti-me, graças a Deus, como um herege em Meca. Perguntei-me sem medo: Paris continuava a ser Meca? Na disputa palmo a palmo por um espaço para caminhar e entrar nos museus, notei a ausência daquela homogeneidade branca, esguia e apolínea que fazia da França um modelo de vida que nós, dos trópicos - esses tristes trópicos, como dizia Lévi-Strauss -, jamais iríamos atingir.
Onde foi parar a pureza da França que hoje me lembra uma Bahia coroada pela Notre-Dame? Pensei e, depois, disse em alto e bom som em Londres: vocês, hoje, têm o desafio que nós tivemos no Brasil no início do século 20. Como integrar essa diversidade de pessoas, línguas, corpos e culturas nestas cidades que foram (e ainda são) modelos da utopia social moderna?
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Cruzei uma rua, esperei numa gigantesca fila e finalmente me vi dentro do Museu d'Orsay. Na velocidade da visita, vendo e não vendo suas obras, dei-me conta da maravilhosa doidice humana. Pois apenas havia saído da loucura da multidão em busca de arte, para encontrar nas exposições a materialização sistemática e despudorada, porque explicita e ritualizada, da sublimação feita em mármore, bronze e tinta da demência humana. Pois ali, em grandes e micronarrativas, como é típico das artes visuais, estampava-se livre toda a neurose. Neurose em diálogo, já que um artista não existe sem outro e todos se revelam devedores do grande manancial da imaginação humana que não tem começo porque tem fim.
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Ontem, já em Londres, recordei Jorge Amado meditando sobre o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos. Foi quando enfatizei para meus ilustres companheiros de seminário, Ana Maria Machado, Kenneth Maxwell, Maria Lúcia Pallares-Burke, João Ubaldo Ribeiro, Peter Wade, David Teece e Mark Sabine, que o importante era escolher não escolher e, desse modo trocar o dilema shakespeariano do "ser ou não ser" para a fórmula amadiana do "ser e ser".
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