Guilherme Malzoni Rabello
As manifestações das últimas semanas mudaram o cenário político brasileiro. No entanto, ainda é cedo para dizer se esse inverno de insatisfação vai se transformar num verão glorioso para a democracia. A marcha das ruas nem sempre tem o passo firme e várias questões continuam em aberto.
Por se tratar de um movimento sem orientação clara, o risco é a mobilização se virar contra a própria política e, consequentemente, contra a democracia e alguns valores que lhe são essenciais.
Esses elementos estiveram presentes desde o início na ideia de que é preciso parar a cidade para se fazer ouvir, ganharam tons preocupantes quando os manifestantes se recusaram a negociar com a polícia e nas várias vezes em que a imprensa foi hostilizada. Não se aperfeiçoa a democracia no grito.
Mas, apesar dos riscos, o fato é que não se viu por aqui uma mobilização como essa nos últimos 20 anos. A novidade pode trazer bons frutos, sobretudo quando entendermos as causas e consequências do que está em curso.
É peculiar a tal geração Facebook colocar 1 milhão de pessoas nas ruas sem uma reivindicação concreta. A explicação para esse sentimento de insatisfação sem dúvida passa por problemas conhecidos: a péssima qualidade da saúde, segurança, educação, transporte etc.
Mas uma peculiaridade da democracia brasileira talvez ajude a entender o perigoso flerte com esse ódio à política.
Temos no Brasil eleições transparentes, instituições independentes e liberdade de imprensa. No campo dos princípios, porém, todos os partidos relevantes se misturam na mesma sopa ideológica. À falta de ideias e valores, o debate se restringe ao marketing e a etéreas diferenças de gestão --o que, somado à corrupção reinante, transforma nossa política em politicagem.
Nessa degradação talvez esteja uma parte da explicação para um movimento que começou organizado por um grupo de esquerda e na última quinta-feira tinha entre seus participantes, segundo o Datafolha, 61% de liberais ou extremos liberais.
A indefinição faz com que seja muito difícil prever as consequências dos protestos para o jogo político. Em breve a agitação diminuirá (os que são tão sábios e tão jovens, dizem, não duram muito tempo). Restará então a tentativa natural e desejável das forças políticas se apropriarem da novidade.
A primeira iniciativa foi posta em curso na semana passada pelo PT. Mas parece que nem o pronunciamento de Dilma Rousseff foi suficiente para reverter a imagem de um partido e de uma presidente acuados, nem as medidas requentadas satisfizeram quem estava nas ruas.
Resta saber qual será o caminho das outras forças políticas. O Datafolha mostrou que os dois "candidatos" preferidos dos manifestantes eram Joaquim Barbosa e Marina Silva. Marina já apareceu em entrevista nesta Folha tentando reivindicar seu legado. É verdade que ela vem construindo sua imagem em cima de uma negação inespecífica da política, sempre se colocando acima do jogo partidário, mas isso é ruim e irresponsável: Marina Silva é um político como qualquer outro e, quando ela nega esse fato, quem sofre é a própria democracia.
Por fim, Joaquim Barbosa não é político e sua presença mostra que a oposição não soube fazer o seu papel: especificamente, o de trazer o mensalão para o centro do debate, mas também o de discutir princípios para além da apatia reinante.
Se esse choque de realidade acordar alguma força política para o debate de princípios, as manifestações terão sido positivas. A democracia no Brasil precisa de uma oposição que vá além do discurso administrativo. Senão, o risco será perceber tarde demais que, por trás do que parece santo, há quem faça de diabo o maisp(tagline que pode.
GUILHERME MALZONI RABELLO, 29, é fundador do Instituto de Formação e Educação e editor da revista "Dicta&Contradicta"
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