LICINIO DA SILVA PORTUGAL
O GLOBO
As manifestações de junho colocaram a mobilidade urbana na pauta de reivindicações, o que parece ter motivado o governo e a sociedade a buscarem soluções para o setor, tendo sido o automóvel apontado como um dos principais vilões. E de fato ele o é.
Nessa direção, a política do governo federal de estímulo à aquisição de automóveis vem sendo questionada por muitos e responsabilizada como causa principal para a degradação do trânsito e dos próprios serviços de transporte público. Sem dúvida há uma quantidade indiscriminada de veículos na malha viária, gerando congestionamentos, acidentes de trânsito e impactos ambientais.
Mas a citada política é mesmo a principal culpada por essa situação? O governo se defende ressaltando a sua preocupação de preservar o emprego da mão de obra da indústria automobilística, que sabidamente engloba direta e indiretamente um grande contingente de trabalhadores, mesmo reconhecendo que, com a maior automatização usada nas fábricas, seu peso empregador vem se reduzindo. Tal preocupação se justifica diante da crise internacional que tem no alto desemprego um elemento crítico e impactante em muitos países, enquanto no Brasil observamos taxas equiparáveis ao pleno emprego. Além disso, essa medida de diminuição de impostos é reclamada por distintos setores da sociedade e, no caso do automóvel, o seu valor, mesmo após a redução, é relativamente maior que o praticado em outros países, como os EUA, além de as montadoras multinacionais produzirem aqui um veículo tipicamente menos sofisticado, o que reduz comparativamente o apelo pela sua compra.
Por outro lado, a partir do perfil dos manifestantes em defesa da Tarifa Zero, é provável que uma parcela significativa deles tenha pelo menos um automóvel na sua família e deve ter se aproveitado dessas facilidades de compra oferecidas pelo governo.
Junto a isso, verifica-se que o Brasil apresenta índice de motorização relativamente abaixo dos padrões internacionais. Estatísticas disponíveis indicam que, a cada mil habitantes, o Brasil tem em média menos de 300 a 400 automóveis que o observado na Europa e nos Estados Unidos (EUA).
Portanto, há outros fatores, além da posse de automóveis, que determinam a qualidade dos transportes, considerando que a população das cidades europeias e americanas tem uma melhor mobilidade que a nossa, apesar de também conviverem com problemas de congestionamento.
Entre tais fatores, pode-se citar: a) a disponibilidade de uma infraestrutura viária especializada e baseada em vias expressas (particularmente nos EUA), b) um gerenciamento adequado do espaço viário e da demanda de viagens, c) a qualidade da rede estrutural de transporte público (particularmente na Europa), e d) um corpo técnico capacitado e uma cultura de planejamento no quadro institucional. E tais fatores não são encontrados nas nossas cidades, o que potencializa os impactos de incrementos nos fluxos veiculares e sugere naturalmente atenção na adoção de incentivos à compra dos automóveis.
No Brasil, no que diz respeito à ampliação da infraestrutura viária, destinada fundamentalmente ao automóvel, seja pelo alto custo, seja por ser um modelo criticado por atrair mais veículos, deveria somente ser contemplada em condições muito especiais, mas sempre se reservando prioritariamente espaço para o transporte público e o não motorizado.
Quanto aos outros três fatores, eles devem ser efetivamente os principais focos a serem valorizados e fortalecidos nesse esforço para melhorar a mobilidade urbana. Inclusive, insisto, é essencial se dispor de um marco institucional respaldado tecnicamente e segundo processos de decisão participativos e transparentes, a fim de se construir e impor os interesses públicos diante do lobby e da força que movem a especulação imobiliária e a caixa- preta das empresas operadoras de transportes.
Esse contexto favorece a redução da necessidade de viagens motorizadas e principalmente por automóveis. Ou seja, com redes integradas e qualificadas de transporte público, seguramente estas modalidades serão atraentes, resultando em um menor uso do automóvel. E, se preciso, por meio de políticas restritivas à circulação e ao estacionamento do transporte individual. Havendo um planejamento adequado e articulado entre uso do solo e transporte, ocorrerão menos deslocamentos motorizados e consequentemente menos automóveis nas vias. Um exemplo disso pode ser mostrado em pesquisa recente realizada em Niterói, que apontou que em condomínios residenciais localizados em áreas mais compactas, com uso do solo misto e com melhor oferta de transporte público, são realizadas em média quatro viagens de automóveis a menos diariamente por unidade residencial.
Assim, é possível pensar em uma cidade cada vez menos dependente do automóvel e com uma população menos propensa a comprá-lo e a usá-lo. Quem sabe com pessoas que não o vejam como um símbolo de ostentação e poder, o que pode refletir maior sensibilidade e comprometimento com as mudanças efetivas para um mundo melhor e mais justo, a começar pela utilização de um bem coletivo como é a infraestrutura de transportes.
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