O Estado de S.Paulo
Alguns membros de uma jovem geração de comediantes no Brasil perderam o tom. No seu repertório incluíram, entre outras coisas, piadas que relativizam a gravidade do estupro, reciclam clichês pré-abolicionistas, espalham desinformação histórica e repisam estigmas de todo tipo - de classe, de gênero, de feição física, estética, e assim por diante. Piadas, pois, sem muita nuance ou sensibilidade crítica. Parte do público se cansou e, mais atento a essa modalidade de discriminação, passou a denunciar ou até a recorrer às vias judiciais. Embora, ao que parece, tais reações tenham surgido a partir de episódios isolados nos últimos meses, a ocasião suscita, uma vez mais, a pergunta sobre as responsabilidades e os limites do humor (e da profissão de humorista).
A pergunta, de imediato, poderia ser abordada pelo ângulo jurídico. Teríamos, nesse caso, de investigar se há algum choque entre direitos individuais ou coletivos, tanto do humorista quanto daqueles que se sintam afetados pela piada, e resolver o caso concreto a partir desse contraste e ponderação. Essa pergunta, porém, pressupõe outra mais importante e abrangente: numa sociedade comprometida tanto com a proteção da liberdade quanto com a promoção da igualdade, como lidar com a piada discriminatória? Independentemente do que diga a lei, até onde se deve tolerar o humor que fere esses valores? Supondo que nosso dever de tolerância não seja ilimitado, como e quando reagir?
Num mundo imaginário de sujeitos inteiramente autônomos, delega-se tal problema à consciência dos indivíduos e ao debate público. Críticos culturais, jornalistas e cidadãos em geral dariam conta de manter o mau gosto e o preconceito sob controle, sem necessidade de intervenção do aparato legislativo e judicial. Todos seriam igualmente livres para se expressar e as ideias que, eventualmente, resistissem ao escrutínio público e à censura social sobreviveriam. As outras, reprovadas no teste de qualidade, cairiam no esquecimento. O próprio humorista, para se manter relevante, teria de negociar informalmente com o seu público as margens do aceitável. Calibraria, a partir daí, uma medida de autocontenção para não desaparecer nesse livre e exigente mercado de piadas. Em suma, a autorregulação se bastaria.
O pacote da autorregulação do humor e da comunicação social não é só um devaneio teórico. Ao contrário, cumpre papel crucial nas interações cotidianas. Apesar disso, praticamente nenhuma democracia liberal o comprou por inteiro. Descrentes da capacidade de a "mão invisível" prevenir violações e abusos de direitos, sistemas jurídicos tiveram de aparar as arestas. Perceberam, por exemplo, que, em nome de valores como a dignidade, seria desejável prever sanções contra abusos da liberdade de expressão, como os tipificados pelo que chamamos de "crimes contra a honra" (a calúnia, a injúria ou a difamação).
Outros sistemas jurídicos, entre eles a maioria das democracias contemporâneas, não pararam por aí. Ao notarem que o abuso da liberdade de expressão, mais do que ofender a honra de indivíduos particulares, pode também silenciar ainda mais os grupos em situação de exclusão estrutural, passaram a coibir práticas discriminatórias em sentido mais amplo. Entenderam que a promoção da igualdade de status requer o combate ativo à exclusão não apenas socioeconômica, mas também simbólica. Certos grupos vulneráveis e sistematicamente privados de canais de expressão receberam essa proteção adicional (como os negros no Brasil, por meio da lei que sanciona o racismo).
Tais normas jurídicas não impõem restrições à liberdade apenas para proteger outros valores, não a subordinam a outros direitos supostamente mais importantes. Preocupam-se, antes de tudo, em preservar as mínimas condições sociais em que a própria liberdade possa ser exercida. Voltando ao caso deste texto: o ataque verbal ao autorrespeito de pessoas que, por suas próprias circunstâncias e características, já encontram enormes obstáculos para driblar os estigmas que lhes atribuem pode corroer, curiosamente, as condições de tolerância e reciprocidade necessárias para a própria existência do humor.
Os alvos desse estilo de humor são os mais fáceis e previsíveis: as mulheres, os deficientes, os negros, os homossexuais, os gordos, os imigrantes. Não que esses grupos, como tantos outros, não possam servir de matéria-prima para piadas inteligentes. Existe, no entanto, uma diferença entre a piada que oprime, pura e simplesmente, e a piada que convida a um exercício de autoironia, que é engraçada porque estimula os ouvintes a rirem de si mesmos, sem pôr sua própria dignidade em jogo. A linha entre uma coisa e outra não é tão tênue assim.
Na sua obsessão juvenil por serem politicamente "incorretos", alguns humoristas acabam fazendo o oposto. Numa cultura política opressora como a brasileira, nada mais politicamente "correto" e seguro do que se proteger atrás do opressor, nada mais bem-comportado do que falar exatamente o que ele quer ouvir. Não subverte as regras do jogo, não desestabiliza as relações de poder e ofende exatamente aqueles que a nossa História já se encarregou de subjugar. É um tiro no próprio pé.
O humorista, enfim, pode ser um agente de transformação cultural e política ou pode ser exatamente o contrário. A piada pode ajudar a desarmar, ridicularizar e reverter um preconceito, ou pode ser veículo para disseminar um pegajoso discurso de desprezo, disfarçado pelo manto do humor. Praticar o humor do primeiro tipo exige coragem moral, ousadia intelectual e empatia. Dá mais trabalho. Já o segundo se consegue com boa dose de preguiça mental, docilidade política e submissão ao senso comum. Comediantes que deixaram uma herança libertária e emancipatória perseguiram o primeiro caminho. Entre os novos comediantes brasileiros, alguns ainda desconhecem tal diferença. Não são estes que merecem nossa risada.
CONRADO HÜBNER MENDES, é doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia), doutor em Ciência Política pela USP; é autor do livro 'Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação' (Saraiva.2011)
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