HANS ULRICH GUMBRECHT
O ESTADÃO
Brasileiros agem como se o cartola fosse o câncer, não apenas um sintoma, e o Brasil continuasse a ser o melhor do mundo no futebol
Tornei-me um fã dos esportes na Copa do Mundo de 1954; tornei-me cidadão americano 12 anos atrás; tenho vivido e ganhado a vida na Califórnia desde 1989; faço visitas de trabalho ao Brasil pelo menos uma vez por ano, desde 1977 - e não posso deixar de amar o País e enxergá-lo tanto de dentro como de fora. Por todos esses motivos, senti uma felicidade e um alívio natural quando li, no começo da semana, que Ricardo Teixeira tinha renunciado à presidência da Confederação Brasileira de Futebol e do comitê organizador da Copa do Mundo de 2014. Mas, de onde exatamente veio minha alegria e quais são as esperanças para o futuro contidas nesse sentimento?
Houve uma época, desde meados do século passado, em que o talento futebolístico acumulado no Brasil era tão avassalador que o sucesso, num nível internacional, parecia inevitável. Depois que o País ganhou seu primeiro título, em 1958, ninguém questionava se seria capaz de repetir o feito - a pergunta era, caso isso não acontecesse, o que teria dado tão errado. Poder-se-ia culpar técnicos incompetentes, tensões entre diferentes grupos de jogadores, falta de sorte ou problemas na arbitragem. Nunca, porém, se questionava que o Brasil fosse o número um no futebol, porque sempre houve uma maioria de brasileiros entre os dez melhores jogadores do mundo. Ao longo de todas essas décadas, o Brasil pareceu ser um gigante adormecido do ponto de vista político e econômico. Tratava-se de um país com recursos naturais inesgotáveis e dono de um potencial profissional e cultural igualmente ilimitado, mas também - e acima de tudo - um país que nunca foi capaz de corresponder às expectativas por ter se acostumado tanto à corrupção nos níveis mais elevados de sua sociedade. Pelos melhores e piores motivos, a glória no futebol e a corrupção na política estiveram visivelmente, intimamente e estranhamente associadas uma à outra.
A partir dos anos 90, as coisas começaram a mudar em ambas as dimensões. Sob o governo de Lula, e provavelmente ao menos em parte graças ao seu talento político específico, o Brasil se tornou uma potência econômica mundial e seu potencial de exercer influência internacional cresceu constantemente. Os brasileiros têm desfrutado dessa história de sucesso (cuja verdadeira origem são eles mesmos, é claro) como se estivessem num conto de fadas - e seu comportamento, digno de conto de fadas, consiste em diversas camadas de cegueira. Como fazia seu ex-presidente, a maioria dos brasileiros age como se a corrupção não existisse (queixa-se apenas quando ela os prejudica pessoalmente). Como seu ex-presidente, eles seguem cultivando a inocência moral de um país de terceiro mundo (inocência que nunca existiu e, nos dias de hoje, tornou-se bastante irresponsável); e parece que uma grande maioria de brasileiros também partilha da cegueira de seu ex-presidente em relação à realidade contemporânea do futebol no País. Essa maioria não gosta de admitir que o Brasil deixou de ser o grande celeiro natural dos maiores talentos futebolísticos mundiais; nem de reconhecer que, na Copa de 2010, sua seleção simplesmente conquistou a posição merecida, num ponto entre a quinta e a oitava colocação.
Os brasileiros de Lula querem tudo: a riqueza e a influência internacional em perpétuo crescimento, a inocência e a glória futebolística. Precisam de tempo para se acostumar à ideia de que riqueza e influência trazem consigo novas responsabilidades e, talvez, sua situação atual tenha alterado o status cultural do futebol para o País. Hoje, o futebol brasileiro não é mais a única dimensão na qual o País consegue brilhar no palco internacional e, por outro lado, passou a ser a única na qual os brasileiros não estão mais dispostos a tolerar corrupção. Ricardo Teixeira se tornou a encarnação do pior do Brasil de ontem e de hoje, a soma daquilo que restou de uma antiga tradição de corrupção e do que parece ser o início de uma mediocridade futebolística internacional. É por isso que todos no Brasil, e fora dele, gostavam tanto de odiá-lo - e é também por isso que esse ódio é tão redundante.
Mas Romário, cujos lampejos de cáustico brilhantismo político às vezes se comparam a seu talento com a bola, tem razão - nada vai mudar se os brasileiros perderem seu tempo com metáforas de cânceres extirpados com sucesso em vez de enfrentarem a realidade nacional. A corrupção persiste na Confederação Brasileira de Futebol (e poucos cidadãos a enxergam e denunciam com a clareza demonstrada pela presidente Dilma - provavelmente pelo vago medo de que assumir tal posição vá dificultar sua pequena corrupção pessoal no dia a dia). O estado dos preparativos para a Copa do Mundo de futebol dá motivos de sobra para temer que o País possa viver um momento de constrangimento nacional. Todos os brasileiros sabem que escolher Ronaldo como o "rosto da Copa do Mundo de 2014" é um sintoma da tendência nacional de tornar os problemas invisíveis: ele nunca foi um jogador de talento histórico, apesar do que dizem certas estatísticas superficiais, e sua personalidade não o qualifica como alguém realmente capaz de representar o potencial de um Brasil mudado.
Pode-se dizer que o que estou escrevendo é a opinião de um estrangeiro demasiadamente pessimista (talvez até invejoso). Mas os brasileiros agem como se o rechonchudo Ronaldo fosse um verdadeiro campeão, como se Teixeira fosse um tecido cancerígeno e não apenas um sintoma e como se o Brasil continuasse a ocupar a posição inquestionável de melhor do mundo no futebol - e como se uma Copa respeitável pudesse ocorrer a partir do nada. Há muito em jogo para o Brasil em 2014, não apenas nos campos de futebol, e o único sinal de esperança visto até agora foi o ato falho do sucessor de Teixeira, que disse quanto estava ansioso para trabalhar com - Romário.
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
HANS ULRICH GUMBRECHT É PROFESSOR DE LITERATURA NA UNIVERSIDADE DE STANFORD E AUTOR DE ELOGIO DA BELEZA ATLÉTICA (CIA. DAS LETRAS)
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