José Eduardo Faria - O Estado de S.Paulo
Ao contrário das novas gerações, as mais antigas podiam ser menos informadas, mas sabiam operar com modelos capazes de sinalizar caminhos e antever cenários, mesmo que sombrios
Entre as consequências da velocidade do processo de destruição criadora, da financeirização dos capitais e da interconexão global dos mercados, destacam-se a erosão das certezas, a dificuldade de identificar as questões mais importantes e desorientação na formulação de respostas. Ao contrário das novas gerações, as mais antigas podiam ser menos informadas, mas sabiam operar com modelos capazes de sinalizar caminhos e antever cenários, mesmo que sombrios. As gerações atuais vivem um paradoxo: quanto mais informações recebem, mais ficam indecisas, revelando-se incapazes de fazer as indagações necessárias à compreensão do momento atual.
Uma dessas indagações é saber como proceder na interpretação de fatos, narrativas e teorias. Outra diz respeito ao tema da legitimidade: na democracia, quem tem a autoridade para impor obrigações aos cidadãos? Como interpretar declarações de políticos que, perplexos com a atuação da Justiça, passaram a perguntar quem manda – se os juízes de primeiro grau ou o presidente da República. “No mundo persa ou grego, o destino era uma atribuição dos deuses. Quando Roma inventou a política, deu o destino – e a tragédia – nas mãos dos homens. Às vezes tenho a impressão de que essas corporações querem substituir os deuses antigos”, afirma um desses políticos.
Num período em que a desorientação resulta do aumento das possibilidades de ação, o denominador dessas indagações se traduz pela incapacidade dos políticos de compreender a política a partir de seus componentes básicos – as relações de força, autoridade, mando e obediência. Outro denominador é a ideia de que os prognósticos com relação ao futuro são inversamente proporcionais ao seu conhecimento. Quanto mais se fala do futuro, menos se sabe sobre ele. Um modo de compreender esse cenário de dubiedades é retomar um ponto da obra de Max Weber, para quem os processos civilizatórios podiam ser vistos como processos de racionalização, como os que forjaram o mundo moderno. Uma das características da modernidade está na crise de seus fundamentos nos planos do conhecimento, da moral e da política. A angústia despertada no homem moderno após a libertação dos laços feudais, dizia Weber, levou-o a uma busca obstinada por calculabilidade e previsibilidade, valorizando a impessoalidade nas relações de dominação e uma ordem jurídica elaborada racionalmente.
Foi esse o papel do Direito moderno: assegurar as expectativas dos cidadãos, oferecendo-lhes garantias contra a arbitrariedade do poder estatal, e criar instituições capazes de impor as regras do jogo, propiciando a conversão das paixões políticas em alternativas programáticas submetidas a escrutínio público. Foi isso que fez a segurança na vida social passar a depender da determinação do jurídico – de um sistema normativo com normas objetivas e fronteiras delimitadas em relação à moral. O problema é que as condições que forjaram o mundo moderno se alteraram, exigindo hoje uma reconfiguração da política, na qual o Estado coexiste ao lado de outras instituições tão fortes quanto ele. Isso foi evidenciado pela ineficácia dos modos convencionais de articulação social, pelo esvaziamento dos modelos social-democratas de transformação política, pelas crises econômicas e pela corrupção.
A consequência foi a descrença nos instrumentos e nas possibilidades da política. Foi no vácuo deixado pela redução da política tradicional a um balcão de negócios que surgiu o protagonismo judicial, ampliando a jurisdição da Justiça com base em sistemas normativos em que princípios se sobrepõem às regras, por serem mais adaptáveis a sociedades funcionalmente diferenciadas. Quanto mais complexa é a sociedade, menos ela consegue ser disciplinada por normas precisas. Por causa de seus conceitos vagos, de difícil determinação, os princípios propiciam uma interpretação extensiva das leis, o que faz da adjudicação uma instância privilegiada na construção do Direito. Contudo, quando essa interpretação alargada é justificada só com base em argumentos morais, ela passa a ideia de que a política é suja – portanto, prescindível. Não por acaso, antes de ser preso um ex-presidente da República criticou os juízes que o condenaram afirmando que “quem se agarra a princípios não faz política”.
A perplexidade dos políticos, quando criticam princípios ou perguntam quem manda, decorre da incapacidade de perceber as mudanças no Direito e os riscos da desqualificação da política. Quando acusam os juízes de primeiro grau de exorbitar, esquecem-se de que é na primeira instância dos tribunais que se dá o primeiro choque entre o sistema jurídico e as condições reais da sociedade. Esquecem-se de que são esses juízes os primeiros a perceber o fosso entre os problemas sociais emergentes e as limitações das leis. Enquanto os juízes de primeiro grau enfrentam o desafio de ajustar sua função a uma sociedade em mudança, os políticos continuam identificando política com atividades congressuais e com a próxima eleição, desprezando questões como as relativas às funções do Estado. Incapazes de compreender que o Estado, conforme o momento histórico, pode ter funções distintas e adequadas a diferentes objetivos, ignoram que a democracia não é um regime de fórmulas fixas para resolver conflitos de interesse e que a política não pode ser exercida fora dos marcos legais – incluídos os do Código Penal.
Classificar os juízes como deuses pode render discursos e levar a projetos de lei que tipificam o crime de abuso de autoridade, para conter a Justiça. Mas não neutraliza o ativismo judicial ancorado em princípios morais. Não oferece alternativas a um modelo de Direito acusado de relativizar garantias de defesa em nome do combate à corrupção. E não resolve a crise das instituições, notadamente as que definem a organização do mercado e da democracia. Só as aprofunda.
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