- ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA
ESTADÃO - 25/04
Sem balizar as duas concepções o ‘ativismo judicial à brasileira’ será uma nau sem rumo
Em 2016 conheci in loco o sólido e milenar sistema jurídico da Inglaterra. Dele se orgulham os cidadãos ingleses, porque garante segurança jurídica e confere estabilidade econômica ao País.
Lorde Tom Bingham (1933-2010) foi um grande jurista e presidiu a Suprema Corte do Reino Unido. No seu clássico livro The Rule of Law explica a concepção britânica do Estado de Direito: 1) Nenhum homem será punido, castigado corporalmente ou privado de seus bens, a não ser em caso de violação do Direito vigente; 2) essa violação será apurada pelos tribunais ordinários, jamais por um tribunal composto de juízes escolhidos para julgar segundo o interesse do governo; e 3) os juízes devem ser independentes e imparciais. Por fim citava Thomas Fuller (1654-1734): “Você nunca será tão alto, a lei está acima de você”.
Por muito admirar e respeitar o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, preocupa-me a ponderada crítica do notável professor Ives Gandra da Silva Martins ao protagonismo crescente daquela Corte. É preciso – defende – resgatar a efetiva autonomia e independência dos Poderes. Nenhum deles invadirá seara alheia: “Para mim, o Supremo não é um ‘legislador constituinte’, mas exclusivamente um guardião da Carta da República” (Consultor Jurídico, 12/7/2016).
Eros Roberto Grau, outro portento das letras jurídicas nacionais e ex-ministro do STF, sustenta que o Direito moderno deve assegurar o desenvolvimento da vida social em clima de paz e segurança: “Submetemo-nos ao poder exercido pelo Estado moderno em troca de garantias mínimas de segurança, por ele bem ou mal asseguradas. Sem a calculabilidade e a previsibilidade de comportamentos instaladas pelo Direito moderno, o mercado não poderia existir” (Princípios, a (in)segurança jurídica e o magistrado, revista Amagis Jurídica, n.º 7, 2012).
Após sua rica experiência na suprema magistratura, já aposentado, Eros Grau publicou a excelente obra Por que Tenho Medo dos Juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios), de 2013. Sustenta que a invasão da competência do Poder Legislativo pelo Judiciário é alarmante. Não mais vivemos “Estado de Direito”, porém submissos a um “Estado de juízes”. Destaca o autor que “é necessário afirmar bem alto: os juízes aplicam o direito, os juízes não fazem justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender direito, não justiça. Justiça é com a religião, a filosofia, a história. (…). Assim é o juiz: interpreta o direito cumprindo o papel que a Constituição lhe atribui”.
Lembrei-me dessas reflexões a propósito da manifestação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, há pouco mais de quatro anos, quando votou pela inconstitucionalidade das doações de empresas para campanhas eleitorais. “Temos um sistema eleitoral que comporta lista aberta e financiamento empresarial que é um foco de antirrepublicanismo e corrupção”, afirmou.
Para ele, o financiamento por empresas viola o princípio democrático, pois desiguala os candidatos em função do poder aquisitivo: “Se o peso do dinheiro é capaz de desequiparar as pessoas, acho que este modelo apresenta um problema”.
Barroso afirmou ainda não viver a fantasia de ignorar a existência da desigualdade. Entretanto, considera papel do Direito minimizar o impacto do dinheiro na criação de desequilíbrios: “O modelo em si precisa ser transformado e cabe ao STF empurrar a história nesse sentido. (...) Às vezes é preciso uma vanguarda iluminista que empurre a história, mas que não se embriague desta possibilidade, pois as vanguardas também são perigosas quando se tornam pretensiosas” (Consultor Jurídico, 12/12/2013).
Sou antigo leitor e sincero admirador do professor Barroso. Contudo preocupa-me conceber a necessidade de uma “vanguarda iluminista”, no Supremo Tribunal Federal ou em qualquer outro órgão judiciário, para “empurrar a história”.
Vislumbro – ainda que possa não ter sido essa a intenção do culto professor e magistrado – uma insolúvel mixórdia de liberalismo com marxismo.
O Iluminismo foi a ideologia marcante do século 18, o “Século das Luzes”. Na política, propugnava o liberalismo, opunha-se ao absolutismo e renegava o direito divino dos reis. Na economia, traduzia as aspirações da burguesia emergente: “Laissez faire, laissez passer, le monde va de lui même” (“deixai fazer, deixai passar, que o mundo caminha por si mesmo”). O Estado não deve intervir no mercado.
“Empurrar a história” é ideia que nos remete ao “materialismo histórico”, de Karl Marx e Friedrich Engels: “A história não é um progresso linear e contínuo, uma sequência de causa e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção e as forças produtivas. A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da história. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético” (Marilena Chaui, Filosofia, págs. 238 e 239).
O marxismo contrapõe-se ao liberalismo. Apregoa a luta emancipadora do proletariado contra o domínio burguês (luta de classes). Ora, a dominação da burguesia, repelida pela ideologia de Karl Marx, é sustentada pelo ideário liberal...
Será o financiamento eleitoral “luta de classes”? O Supremo Tribunal Federal, ao eliminar o financiamento de empresas aos partidos e candidatos e “equilibrar” as disputas eleitorais, age em prol das “classes oprimidas”? É esse o “iluminismo” que faz “mover a história”? Iluminismo ou marxismo? É preciso que essas concepções sejam devidamente balizadas. Do contrário, o “ativismo judicial à brasileira” será uma nau sem rumo.
No mais, a extinta União Soviética, os países da “cortina de ferro”, a China maoista, a Coreia do Norte e Cuba mostram-nos claramente no que pode desaguar o “mover da história”...
* ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA É DOUTOR PELA UFMG, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS
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