Editorial | Valor Econômico
No intervalo de apenas uma semana, o Tribunal de Contas da União determinou o despejo de duas importantes empresas que operam terminais no porto de Santos, o mais importante da América Latina. Se a medida do TCU foi vista como truculenta por alguns e saneadora por outros, o único consenso possível é o de que o setor portuário parece incapaz de se desvencilhar do nó em que está metido há décadas.
Com o alegado objetivo de modernizar a legislação portuária, de corrigir distorções e de promover investimentos de bilhões de reais, o governo aprovou em maio do ano passado o Decreto 9.048/17. Exatamente uma semana depois da assinatura veio a público o acordo de delação premiada do empresário Joesley Batista, que fez o decreto trocar as páginas de economia pelas policiais.
Diante da grande repercussão do caso, que envolve o presidente da República, o governo percebeu que o decreto não vai prosperar e ensaia jogar a toalha. Reportagem do Valor mostrou que os aliados de Michel Temer já admitem abrir mão dos principais benefícios do decreto para impedir que um carimbo de "ilegal" complique ainda mais a situação do presidente no inquérito do qual é alvo.
Infelizmente, a contaminação política impediu que as medidas propostas fossem debatidas em bases puramente técnicas. O alto escalão do TCU não quer se vincular à eventual aprovação de um decreto envolto em tantas suspeitas de corrupção. A cautela é até compreensível, já que um dos principais personagens da delação de Joesley, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures - o "homem da mala" - participou ativamente das discussões para a elaboração do decreto.
Ainda não há provas, entretanto, de que o texto beneficiou A ou B mediante propina. Vários técnicos que participaram da construção do decreto garantem que os benefícios valem para todo o setor. Quase 100 empresas pediram para se adequar ao decreto e prometeram colocar R$ 14 bilhões em melhorias nos terminais portuários.
Muitas delas, vale registrar, adotam há décadas todas as táticas possíveis para impedir que o desenvolvimento dos portos brasileiros se dê em um ambiente de competição saudável. Desde que as licitações no setor passaram a ser obrigatórias, em 1993, não são poucas as operadoras que apelam à Justiça para permanecerem com seus terminais sem serem incomodadas.
Ao mesmo tempo, o governo demonstra grandes dificuldades para promover as licitações - e isso não se restringe ao setor portuário. Os próprios técnicos do Ministério dos Transportes reconhecem a incompetência do poder público para fazer com que os processos avancem de acordo com um cronograma e regras estabelecidos e que os ativos sejam oferecidos de forma a atrair o real interesse do setor privado.
Quando aprovou a Nova Lei dos Portos, em 2013, o governo decidiu concentrar em Brasília todas as licitações de terminais. O objetivo era fazer uma faxina nas companhias Docas, onde as ilegalidades florescem com impressionante facilidade. A concentração dos certames, contudo, se deparou com a falta de estrutura suficiente e quase nada saiu do papel. Portos que eram geridos pelos governos estaduais perderam empreendimentos que estavam prestes a sair e que cinco anos depois continuam parados.
O próprio Tribunal de Contas tem sua parcela de responsabilidade. A última leva de concessões do setor portuário, lançada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, ficou quase dois anos no TCU, pulando de gabinete em gabinete devido a pedidos de vistas tão longos quanto inexplicáveis. Com os recentes despejos do Grupo Libra e da Rodrimar, o órgão tenta demonstrar que está comprometido com a regularização do setor.
Se confirmada, a falência do polêmico Decreto dos Portos deve resultar em uma nova onda de judicializações em um setor já acostumado a esse expediente. Que sirva, ao menos, para fomentar o debate em torno da construção de um ambiente competitivo e juridicamente estável. Para ser produtivo, esse debate deve contemplar, com pesos equivalentes, as obrigações das empresas e também os benefícios dos investimentos que elas oferecem. Não é preciso dizer que o Brasil não está em condições de desperdiçar R$ 14 bilhões de investimentos em infraestrutura. Também redundante presumir que, sob o atual governo, nada mais acontecerá.
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