Marco Aurélio Nogueira - O Estado de S. Paulo
Fosse outro o país e outra a época, o certo seria recuperar as ferrovias e redimensionar o transporte rodoviário
Não dá para dizer, sem mais, que o lockout dos caminhoneiros é uma ação da direita ou está sendo por ela impulsionada. Mas é fácil perceber que ele está convulsionando o país e pode servir aos interesses dos que querem a volta pura e simples da “ordem e da autoridade”.
Na base do movimento, um protesto contra os preços do diesel e os impostos. Pode fazer algum sentido. Na cúpula, porém, um show de chantagem e oportunismo, que se aproveita da debilidade do governo e tenta surfar no ressentimento, na irritação e na desconfiança da população.
Greve de empresários é sempre complicada. Assusta e fomenta todo tipo de pânico. Quando levada às últimas consequências, acende um rastilho, especialmente se mexe com setores estratégicos como são os combustíveis e os alimentos. Num país em que tudo é feito por rodovias, os caminhoneiros viram uma corporação poderosa. Não foi por acaso que tanta gente lembrou, nos últimos dias, o papel que tiveram no processo que levou à derrubada e ao assassinato de Salvador Allende, no Chile do início dos anos 1970., matriz energética
O governo está cedendo, os caminhoneiros prometem manter a paralisação. Até onde, ninguém sabe.
Fosse outro o país e outra a época, o melhor seria recuperar as ferrovias e redimensionar o transporte rodoviário. De quebra, acelerar com radicalidade a adoção de uma nova matriz energética. Quebrar a dependência que se tem dos combustíveis fósseis, introduzir tecnologias ferroviárias de última geração, enquanto os carros voadores não chegam. Tudo isso, porém, são tarefas para um país de bravos, e hoje não vivemos num assim. Faltam-nos justamente os bravos, os intrépidos, os sonhadores.
Partidos políticos, candidatos e sindicatos de trabalhadores não se fazem ouvir, a não ser discreta e isoladamente. Todos se comportam como reféns de uma situação que pode fugir do controle e levar a que um fogaréu se alastre. Os candidatos, em particular, morrem de medo de perder votos, mas no fundo não sabem mesmo o que dizer.
Por que não se trabalha para que a agenda do país passe a incluir a retomada do transporte ferroviário? Por que os temas de fronteira — energia eólica e solar, combustíveis vegetais, gás, biomassa — não ganham destaque no debate nacional? Por que não se quebram os monopólios lesivos ao interesse público?
Podem ser muitas as respostas, mas uma é imbatível: porque falta um mínimo de unidade política, de projeto nacional, de articulação democrática.
Não vale a pena assoprar as brasas ou buscar chifre em cabeça de cavalo. Sempre haverá quem busque se aproveitar do caos, gente que se alimenta do caos e só consegue viver a partir dele. São figuras conhecidas, que circulam há tempo com esse programa. Mas também pode ser que tudo não passe de corporativismo, na sua expressão mais miserável, aquela em que o interessado só pensa nos seus botões e lixa-se para todo o restante, nem sequer se dando conta de que seus botões podem prejudicar toda uma comunidade de pessoas muito mais prejudicadas.
Corporativismo, oportunismo, chantagem, incapacidade de enxergar a floresta e autoritarismo andam de braços dados. Diante disso, a opinião pública democrática precisa ter papel ativo, no mínimo para denunciar uma atitude que no passado se chamava de “lesa-pátria”.
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*É professor titular de teoria política da Unesp
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