César Felício - Valor Econômico
Greves de 1999 e de 2018 se parecem, mas o momento é outro
A economia é uma ciência lúgubre, porque ensina ao homem os seus limites. O raciocínio, de autoria obscura, é frequentemente lembrado quando o mercado pune administradores públicos que se negam a arbitrar perdas na sociedade e vão distribuindo o maná dos céus a todos e todas. Esta política, com muita liberalidade chamada de "populista", normalmente leva a um quadro de desorganização fiscal, torna difícil ao Estado financiar-se e controlar a moeda, panorama em geral de reversão complexa e que não raro leva à queda do governo de turno.
Atento a tudo isso, tendo bem presente o infortúnio de Dilma Rousseff, do qual tirou todo proveito possível e muito contribuiu, o presidente Michel Temer blindou a Petrobras da sensibilidade política. Entregou-a ao mercado. Nas mãos de Pedro Parente a estatal é gerida como se uma empresa privada fosse.
Só que a política, longe de ser ciência e mais bipolar do que lúgubre, também exibe ao mercado seus limites. Há linhas que mesmo um governo desconectado do sentimento popular não ousa cruzar. É o que se convenciona chamar de "realpolitik".
Exerce a Petrobras uma posição de monopólio de fato. Move o preço de seus derivados conforme a cotação internacional da commodity. Leva portanto à sociedade uma situação inerente de volatilidade. São mais perdas a serem arbitradas em momento pré-eleitoral, de retomada financeira não consolidada, governo desgastado, 21 pré-candidatos a presidente, sendo que o mais popular está preso, o segundo tem credenciais democráticas duvidosas e a terceira não tem partido.
Não há, no mundo político que dispute mandato, quem pague o ônus de manter esta posição em um cenário de tamanha incerteza. A Câmara anteontem portanto não viveu um momento "populista", errado ou não o cálculo que fizeram. Não estava dada a condição para que a posição da equipe econômica prevalecesse.
O Senado vai atrasar um pouco a votação do projeto, provavelmente para negociar salvaguardas para os governadores. Não será surpreendente se a conta para o Tesouro Nacional ficar maior.
O ambiente político no Brasil torna inviável, do ponto de vista prático, o modelo de preços adotado pela Petrobras em um contexto de crise internacional do petróleo. Alguma administração de preço terá que haver, com todas as consequências danosas que isso poderá ter para a maior empresa do país. Ainda que tenha reafirmado a manutenção da política atual, o simples anúncio de uma redução de 10% no litro do diesel e o congelamento deste patamar, feito anteontem por Parente e reforçado hoje, já é uma administração.
Temer não tem o instrumental à mão que tiveram Dilma Rousseff em 2012 e Fernando Henrique Cardoso em 1999, ocasiões em que grandes paralisações de caminhoneiros aconteceram. E estes dois presidentes muito se desgastaram na ocasião. A linha de defesa agora é mais tênue.
A greve de 2012 veio em um momento em que o governo federal se jactava do país ser a sexta economia do mundo. Dilma havia expurgado a Petrobras dos nomes mais comprometidos com o esquema de corrupção presente na estatal, mas a queria debaixo de seu cabresto, distante dos critérios empresariais.
O movimento de 2012 não foi impulsionado por uma escalada dos preços de combustíveis e encurtamento da margem dos fretes, mas por questões laborais: estava em discussão a regulamentação da profissão de motoristas profissionais, que embutia o limite da jornada de trabalho. Portanto era uma pauta menos tóxica para o mercado e para o ambiente político. A movimentação terminou com o governo concordando em flexibilizar as regras.
O movimento de 1999 guarda mais semelhança com o atual. O governo FHC vivia um desgaste com a desvalorização cambial de janeiro. Estava na pauta de reivindicação a redução do preço dos combustíveis. Houve ameaça de desabastecimento de alimentos, corrida aos postos, caos nas rodovias.
A greve de 19 anos atrás surpreendeu o governo e compôs um quadro de uma série de manifestações e desordens sociais que permearia todo o ano, consolidando FHC como um governante impopular.
A paralisação terminou no dia 29 de julho, um dia depois de Fernando Henrique anunciar que iria acionar o Exército para desbaratar os piquetes e um dia antes da previsão para a querosene de aviação acabar nos aeroportos. O governo cedeu e o então ministro dos Transportes Eliseu Padilha comprometeu-se com os caminhoneiros com a suspensão dos aumentos imediatos do óleo diesel e de tarifas de pedágio. Mas isto não ocorreu.
Em seu livro de memórias sobre o biênio 1999-2000, o então presidente narra que desconfiou que havia participação patronal no episódio. "Esse movimento não é só do caminhoneiro autônomo: as empresas também o estão sustentando", disse.
Em seguida relata uma reunião em que o então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, disse que um acordo com os caminhoneiros poderia ser feito com temas que nada tinham a ver com o diesel: segurar pedágios, "deixar o peso da balança ajustado, porque eles reclamam que ela não está bem equilibrada" e aliviar a pontuação dos motoristas profissionais no novo código de trânsito.
A suspensão do aumento do óleo diesel foi anunciada, mas não estava no texto do acordo. O preço nas refinarias já acumulava um reajuste de 48% no primeiro semestre. Somente em junho havia aumentado 18%. O que pesava para tal variação era mais o repasse da desvalorização cambial do que a alta da commodity.
Tanto o congelamento do diesel era uma balela que, confirmado por Padilha no dia 29 de julho, foi desmentido pelos fatos do dia 3 de agosto daquele ano, quando - vejam só quem - o então ministro da Casa Civil, Pedro Parente, afirmou que o diesel não ficaria de fora do reajuste geral de combustíveis que estava programado para aquele mês. A alta foi de 7,5%, menos de uma semana depois do fim da greve.
O Pedro Parente que desautorizou o ingresso do óleo diesel no pacote de concessões do fim da greve em 1999 é o mesmo Pedro Parente que agora teve que flexibilizar a sua política de preços vinculada. Mudaram as circunstâncias.
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