por Percival Puggina. Artigo publicado em 10.05.2018
Meu avô materno ficou paralítico e viveu seus últimos anos entre a cadeira de rodas e a cama. Um dos amigos que periodicamente o visitavam tinha medo doentio de cães. Isso o tornava figura exótica porque os cães circulavam nas ruas e, lá em Santana do Livramento, não eram poucos os cães vadios. Assim, cada vez que ele aparecia para visitar meu avô, aparentemente estava, também, fugindo de algum animal que o queria morder. Acionava repetidamente a campainha e, logo que cruzava a porta, passava a examinar detidamente as canelas. Nem mesmo a visão da pele hígida era suficiente para convencê-lo de que não fora mordido. Aquilo me impressionava muito.
Esse estranho personagem e sua mania me vieram à memória ao observar o que acontece com tantos ao atravessarem os umbrais da participação política. É inquietante ver como ingressam numa realidade virtual, construída com ideias e palavras e ali ficam, encapsulados, incapazes de algo tão banal quanto não ver uma mordida de cão ali onde o animal sequer passou perto.
A disputa entre o idealismo e o realismo remonta aos primórdios da filosofia. O idealismo pode ser resumido como a prevalência da ideia da mordida sobre a mordida. O realismo, em contraposição, afirma o primado da dor e da marca dos dentes. Todas as utopias totalitárias que infelicitaram o século passado e ainda hoje seduzem algumas ventoinhas mentais por aí tiveram origem no idealismo filosófico. Seus líderes e intelectuais, absolutamente convencidos de haverem concebido a perfeita ordem social, política e econômica, extinguiram a democracia, o pluralismo, encheram as prisões, os campos de concentração, foram à guerra, dominaram outros povos e praticaram terríveis genocídios.
Embora perseguindo doutrinas diferentes, havia entre tais personagens um traço de união: desenvolveram, como afirmou alguém, extraordinária capacidade de dizer e propor coisas terríveis de modo absolutamente cativante. Espalhavam ódio, acabavam com as liberdades públicas, produziam fome e violência, mas o faziam sorrindo, em nome da fartura, da igualdade, da solidariedade e dos mais elevados valores que se possa conceber. E que se danassem os fatos mesmo quando a realidade se mostrava desengonçada do discurso.
Entendem-se, assim, as afirmações segundo as quais Lula acabou com a miséria, com a fome, e está preso por haver gente poderosa, movida por intenções satânicas, inconformadas com isso. Não procure a conexão entre tal afirmação e qualquer fato ou realidade conhecidos porque não vai encontrar. Fatos são outra coisa. Assim também se compreende o acampamento de Curitiba e a liturgia das três saudações diárias a Lula. E a convicção sobre sua inocência mesmo diante das unânimes sentenças condenatórias e das múltiplas ações penais que contra ele tramitam em diferentes juízos. Como se percebe, tudo a ver com as aflições do amigo de meu avô.
Na celebração de despedida, junto ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, antes de ser preso, não disse Lula que ele era uma ideia? As palavras e a ideia se impõem aos fatos. E muitos entram em vigília e fazem planos, e querem administrar a cena política a partir de uma fantasia coletiva. O Brasil andaria melhor com os pés no chão.
* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil, integrante do grupo Pensar+.
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