Já salientei que, após cinco mega manifestações de "Vem prá rua...vem", contra a corrupção, vieram as eleições para prefeitos e vereadores de 2016 e o desastre, uma dolorosa vez mais, se fez presente.
O relato abaixo é o retrato fiel de mais de 70% dos 5 565 municípios onde cada voto vale, rigorosamente, o mesmo que um PhD em Física Quântica ou um CEO de uma empresa de mais de 2000 funcionários.
A pergunta é: Diante de tão pungente e irrefragável realidade quando é que iremos amadurecer democraticamente para tirar o país do eterno buraco que, deliberadamente, se inseriu e nele permanece até hoje?
Antes de melhorar, ainda pode piorar
Maria Cristina Fernandes
Valor Econômico
Em 19 de julho de 2016, Talita Borges, recém-formada em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, chegou a Primavera, na zona da mata de Pernambuco. Com 14 mil habitantes, tem o mesmo porte de sete em cada 10 municípios do país.
Com outros colegas do curso e de uma organização não governamental que arregimenta jovens para modernizar o setor público, Talita se voluntariou para a campanha de Alexandre Lins, um consultor da Unesco de 25 anos que decidira entrar na política. O avô havia sido prefeito da cidade, cargo pretendido por Lins em sua estreia. O grupo decidira fazer uma campanha nos conformes. Tudo seria registrado e o candidato entoaria o discurso da renovação. A experiência se transformou no documentário "Primavera do Brasil", que aguarda uma vaquinha virtual para ir ao ar.
Dois grupos se revezam no poder há décadas na cidade, o de "Pão com Ovo" e o do "Galego do Gás". Ambos estão impedidos de disputar pela Lei da Ficha Limpa, mas se fizeram presentes na eleição com as candidaturas da mãe e da mulher. Em três meses de campanha, Xandeco, nome adotado pelo postulante da Rede, e sua turma viram de tudo. Cada candidato adotou uma cor em suas camisetas. Devidamente trajados, esses militantes se distribuíam na cidade para fazer número nos eventos e mostrar força.
Os motoqueiros chegavam a ganhar R$ 100 por dia e os militantes, R$ 50, para balançar bandeiras em três expedientes, pequenas fortunas numa cidade em que 96,7% têm renda de zero a dois salários mínimos. A proibição de shows levou a uma mão de obra mais intensiva, de porta-bandeiras a entregadores de panfletos no porta a porta da campanha.
O que está no manual como a safra da cidadania é percebido pelos entrevistados do documentário como o momento de embolsar algum antes que os políticos assumam, coloquem película escura nos carros e torrem suas receitas em contratos viciados de transporte, merenda e lixo que saldarão o que foi investido no caixa 2 da campanha. O século 19 é aqui e agora.
Na véspera do dia da eleição, o documentário mostra Xandeco reunido com os jovens da cidade que ajudavam em sua campanha para dizer que era proibido transportar eleitor, distribuir santinhos, comida ou dinheiro, atrapalhar quem vai votar ou fazer aglomeração. Na cena seguinte, militantes dos líderes da disputa são flagrados cumprindo a cartilha proibida. Como os moradores das zonas rurais não tivessem transporte para se deslocar até a cidade, cabos eleitorais alugavam seus títulos a serem usados por eleitores trazidos de outros municípios.
Em "Porta a Porta" (2011), Marcelo Brennand havia mostrado, a partir da campanha eleitoral de outro município pernambucano, Gravatá, no agreste do Estado, a engrenagem eleitoral da ponta da rede de captação de votos. O documentário da era pré-Lava-Jato retrata como todos os partidos, do azul ao encarnado, não estavam apenas imiscuídos nos circuitos das "offshores", mas igualmente embolados no jogo miúdo da corrupção eleitoral.
O que o distinto público chama de compra de voto é uma distribuição de renda, em três meses, superior àquela que se vê nos dois anos seguintes. Ao eleitor, de sacos de cimento a óculos; aos militantes, diárias inimaginadas nas safras agrícolas dos grotões; e aos cabos eleitorais, a perspectiva de uma vaga na administração pública que, na maioria dos municípios, é o maior empregador. Quem está lá não quer sair e quem está fora quer entrar. A participação no jogo não se dá pela expectativa de que as promessas se cumpram, mas pelo ganho imediato. Me engana que eu voto. No lapidar resumo de um eleitor de Gravatá, "é na política que se consegue tudo".
Abertas as urnas de Primavera, a discrepância das máquinas mostraria seus resultados. Na primeira eleição com veto a doação empresarial o limite oficial de gastos era R$ 108 mil. Nenhum candidato chegou perto do valor, a despeito de estimativas que circularam dando conta de gastos de até R$ 1 milhão. Xandeco gastaria R$ 40 mil, somadas as despesas e doações que incluíram até o carro emprestado da irmã e o uso da casa da avó, onde dormia e fazia reuniões. A maior doação recebida (R$ 15 mil) foi a do empresário José Luiz Setúbal, a quem chegou por meio das organizações de renovação política que se envolveram na produção do documentário.
Xandeco teria 3,5% dos votos da mulher de "Galego do Gás", eleita. Talita se lembraria do que lhe dissera um outro empresário que lhes oferecera R$ 15 mil, rejeitados pelo grupo porque de caixa 2: "Vão fazer tudo por dentro? Não vão conseguir nunca".
As eleições municipais definem os peões da disputa para o Legislativo de dois anos depois. Xandeco concluiu que teria de vencer o isolamento de um partido que soma uma vice-prefeita e quatro vereadores no Estado. Continua a resistir a alianças com os grupos locais, mas começou um grupo político com lideranças jovens que, daqui a dois anos, poderão vir a disputar a vereança. Decidiu se lançar a deputado estadual com a pedregosa missão de despertar o voto de opinião de um eleitor que só conhece fartura na campanha.
Desde o ano passado em Cambridge, como professor visitante do MIT, George Avelino, ex-professor de Talita na FGV, tem se deparado com uma penca de brasileiros que fazem as malas de volta com a expectativa de participar do que veem como um momento de renovação da política nacional, num movimento parecido com o de Xandeco. Lembrou deles ao colocar o ponto final, em parceria com Arthur Fisch, no artigo sobre o impacto do financiamento na redução da competitividade eleitoral do país ("Money, Elections and Candidates") para a coletânea "Routledge Handbook of Brazilian Politics", organizada pelo brazilianista da Universidade de Pittsburgh, Barry Ames.
No artigo, Avelino confronta a tese de que as eleições no Brasil são competitivas. O mito é assegurado pelas estatísticas. De 2002 até 2014, o número de candidatos à Câmara dos Deputados por vaga passou de oito para 14. O artigo, porém, mostra que o número de candidatos em condições, de fato, de ocupar uma cadeira é afunilado pelo financiamento eleitoral. No mesmo período, o gasto médio por vaga conquistada na Casa mais do que triplicou.
O arremedo de competitividade se inicia pelas cotas. Dos 7,1 mil candidatos à Câmara dos Deputados, 15% não receberam nem seu próprio voto. A maior parte desses mais de mil candidatos são mulheres levadas a se registrar para o cumprimento da lei de cotas. O universo que, de fato, disputa uma vaga na Câmara soma os 513 eleitos e 60 outros que alcançam 90% do quociente eleitoral. Juntos, eleitos e quase eleitos respondem por 70% das despesas de campanha. Nesse universo, os gastos tiveram, entre 2002 e 2014, um incremento de 226%. No grupo de candidatos pouco competitivos o aumento foi de apenas 51%.
Pernambuco, Estado que inspirou os documentários, está abaixo da média de gastos para deputado federal. Em 2014, uma vaga na Câmara custou oficialmente, em média, U$ 513 mil, o equivalente hoje a R$ 1,8 milhão. A análise dos gastos mostra que, nesse mercado, não é a demanda que determina o preço, mas a oferta. Entre os cinco Estados de campanha mais caras, três são comandados pelo agronegócio. Goiás, o recordista, teve gasto médio de U$ 888 mil, Mato Grosso, U$ 756, e Mato Grosso do Sul, U$ 728. O barão da federação, São Paulo, vem em quinto (U$ 672), duas posições abaixo de Minas (U$ 750).
No grupo dos cinco Estados de campanhas mais pobres, com uma média de gastos (U$ 910) equivalente a um quarto das despesas dos mais perdulários, estão quatro Estados do Norte - Amapá, Acre, Pará e Roraima -, além de Sergipe.
No conjunto, os Estados do Nordeste não têm as campanhas mais caras nem as mais baratas. Mas são aqueles de maior sintonia entre gasto e vaga. A região aparece nas tabelas de Avelino e Fisch como aquela em que, quanto mais se gasta, maior é a chance de se conseguir uma cadeira. Em 2014, foi na Paraíba em que a maior parcela de perdulários alcançou a Câmara dos Deputados, mas ao longo do período iniciado em 2002, o título é de Pernambuco. Na outra ponta, o Amapá foi o Estado de mais reduzida chance de um candidato gastador chegar lá. Apenas 25% dos maiores gastos se converteram em cadeira na Casa.
O Rio Grande do Norte, numa prova do quão oligarquizada é a política em que os Maia e os Alves se revezam a perder de vista no poder, foi o único Estado em que esta relação entre dinheiro e mandato se manteve inalterada desde 2002.
Os partidos mais perdulários na eleição para a Câmara são, nesta ordem, PP, PSDB e DEM. O PT foi a sigla que mais aceleradamente aumentou os gastos durante sua passagem pelo poder. Ainda assim, o gasto médio é de 75% daquele do PSDB.
O fundo partidário associado ao fim do financiamento empresarial vai mudar este quadro? Pouco, na aposta de Avelino. Os Estados mais perdulários provavelmente verão uma redução nos gastos oficiais, mas o limite estabelecido pelos parlamentares na nova legislação não aperta ninguém. O teto é de U$ 694 mil (R$ 2,5 milhões). Ou seja, deram uma folga de 35% para a média de gastos dos eleitos em 2014. No partido mais generoso, o PP, a cota do fundo que caberá a cada parlamentar é de R$ 2 milhões. Daí porque, a despeito do fim do foro, prevê-se que a recandidatura à Câmara bata todos os recordes e chegue a nove em cada dez deputados.
Os sinos não dobram pelo foro privilegiado, mas pelo dinheiro (público). O desencanto pressiona ainda mais a alienação eleitoral da disputa legislativa, favorecendo os candidatos das máquinas. O fundo fortaleceu as engrenagens partidárias frente às corporativas, empresariais inclusive. Pra terminar bem, essa história dependeria de uma improvável pressão pela democratização dos partidos. O exército de Xandecos que já está em campo tende a se confrontar com incentivos inéditos para a mais baixa renovação da história.
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