Curiosidade gerada pelos atentados de 11 de setembro de 2001 propiciou conversões
A primeira vez que visitei uma mesquita foi em um sábado à noite, no início de novembro do ano passado, quando comecei minhas pesquisas para esta reportagem. Assim que cheguei à Mesquita Brasil, a mais antiga do país, em um bairro da região central de São Paulo, fui para uma salinha em que há saias e véus brancos guardados – de todos os tamanhos e para todos os gostos. Eles ficam à disposição de qualquer mulher que queira participar das rezas e das palestras ali realizadas. Coloquei um véu e uma saia comprida, até os pés. Tirei os sapatos, como é costume não apenas nas mesquitas, mas nas casas de muçulmanos, e entrei. Alguns dos homens que participariam da cerimônia naquele dia já estavam reunidos, sentados no chão. Nenhuma mulher havia chegado e me disseram que eu poderia sentar no lado direito do salão, onde ficava uma espécie de sala de recepção.
O chão era todo forrado por carpete e pilares brancos bem altos sustentavam as cúpulas decoradas com desenhos árabes. Por fora, o prédio não chama muito a atenção, apertado entre várias construções. Por dentro, lembra as mesquitas dos países muçulmanos, com várias referências ao Alcorão, o livro sagrado do islamismo. Após alguns minutos outras mulheres chegaram, com vestimentas diversas: algumas com um leve véu de renda nos cabelos, outras com véu branco e saia iguais aos que eu havia colocado, e outras ainda com véus bem maiores, que cobriam todo o corpo. Dentro das mesquitas, eles são parte obrigatória do vestuário feminino.
O xeique deu início ao sermão em árabe, proferindo os versos do Alcorão. Para os leigos, como eu, a impressão era de que ele cantava. Ao todo, não chegávamos a 20 pessoas, as mulheres separadas dos homens. Pelo Brasil afora, porém, muitas pessoas rezam do mesmo modo, todas as semanas.
De maneira geral, as comunidades muçulmanas estão localizadas nos estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e no Distrito Federal. E, com relação aos números, há discrepâncias. Pelo censo de 2000, haveria pouco mais de 27 mil adeptos da religião. Já segundo as entidades islâmicas, o número chegaria a mais de 1 milhão. “Só em São Paulo, a cidade de maior concentração de muçulmanos, existem cerca de 200 mil”, afirma o xeique Khaled Taky Eldin, diretor de assuntos islâmicos da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras). E grande parte deles não é estrangeira, como se poderia supor. Eles são descendentes de árabes, sírios, libaneses, africanos... nascidos no Brasil.
História
Tudo começou com a chegada de alguns escravos africanos, nos séculos 18 e 19. Por influência do comércio e de migrações, parte dos negros vendida como mão de obra para as Américas não tinha religião tipicamente africana. Sua crença era o islamismo. “Muitos eram trazidos de áreas islamizadas da África e, no Brasil, tentavam dar continuidade a suas práticas religiosas. Há provas inclusive de um ativo comércio de Alcorões e gramáticas de língua árabe naquela época”, afirma a antropóloga Gisele Fonseca Chagas, pesquisadora do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.
Por causa da condição de escravos, porém, muitas vezes sua religião não era respeitada. Tanto que, na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um domingo, teve início em Salvador, na Bahia, uma insurreição conhecida como Revolta dos Malês. O nome do movimento se deve à denominação dada aos negros muçulmanos que a organizaram. A palavra “malê” vem de “imalê”, que na língua ioruba, usada por eles, significa muçulmano. Sua principal bandeira, ao contrário do que se pode supor, não era simplesmente libertar-se dos senhores de engenho, mas decretar o fim do catolicismo, religião que lhes era imposta. “Em 1835, a grande maioria dos escravos da Bahia nascidos na África era realmente de língua ioruba, cerca de 30%. [...] muitos deles professavam a religião muçulmana”, confirma o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em seu artigo “A Revolta dos Malês em 1835”.
A segunda leva de muçulmanos, mais numerosa, chegou ao país alguns anos depois e veio de outras regiões do globo, deixando descendentes que até hoje vivem no Brasil. “Essa segunda parte descende de imigrantes árabes vindos particularmente do Líbano e da Síria no primeiro terço do século 20”, escreve o historiador Peter Robert Demant, da Universidade de São Paulo (USP), em seu livro O Mundo Muçulmano (Editora Contexto). De fato, em minha visita à Mesquita Brasil, pude perceber que grande parte dos muçulmanos era descendente de árabes, principalmente vindos do Líbano. “O maior fluxo de imigração de árabes muçulmanos aconteceu no período após a 2ª Guerra Mundial, principalmente depois da criação do Estado de Israel, em 1948, e das consequentes guerras envolvendo aquele país e as diversas nações árabes, além de conflitos internos, como a guerra civil no Líbano, entre 1975 e 1990. Dados não oficiais indicam que, dos 6 milhões de árabes que emigraram para o Brasil, 1 milhão são muçulmanos”, afirma Gisele.
Como aconteceu em outros países latino-americanos, porém, os imigrantes nem sempre mantiveram comunidades fortes – e é possível que muitos descendentes de árabes não pratiquem mais a religião islâmica no Brasil. “Mesquitas até existem, mas o islã não floresceu. As tradições brasileiras de tolerância intercomunitária e de mestiçagem os empurraram para uma irresistível tendência de assimilação. Em lugar da xenofobia que dificulta a posição do islã na Europa e nos Estados Unidos, aqui a sobrevivência de uma cultura islâmica específica tem de lidar com a presença de uma cultura geral receptiva demais. Só nos últimos anos assiste-se a um ‘despertar’ islâmico, com correspondente expansão das congregações”, explica Peter Robert.
Efeito reverso
Para explicar essa expansão, há dois motivos principais. O primeiro seria a influência dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, que teriam despertado a curiosidade sobre a religião. A presença do islamismo na televisão e nos jornais, após esse episódio, teria provocado um efeito reverso. “O mundo todo quis saber o que é o islamismo depois dos ataques”, ressalta o xeique Armando Hussein Saleh, voluntário da Mesquita Brasil.
Apesar de as notícias referentes ao 11 de setembro ressaltarem o fundamentalismo que assola uma pequena parcela dos seguidores do islã, o resultado não foi negativo: a identidade muçulmana dos descendentes de árabes – até mesmo daqueles que haviam se distanciado da religião – fortaleceu-se porque eles se sentiram perseguidos e difamados com os comentários propalados na mídia. Depois, veio ainda a curiosidade: tanta divulgação atraiu brasileiros que antes não tinham ligações com o mundo muçulmano, mas que, como ocorreu com os descendentes de árabes, sentiam-se marginalizados de alguma maneira.
Pode-se dizer, também, que a visibilidade do islã e dos muçulmanos na sociedade brasileira cresceu bastante também a partir de 2001 devido à telenovela “O Clone”, que agora está sendo reprisada. “Essa trama, apesar de incorreções teológicas e da criação de alguns estereótipos em relação aos muçulmanos e a seu cotidiano, contribuiu para criar uma imagem positiva do islã no Brasil”, relata Gisele. “Inclusive, expressões corriqueiras do mundo árabe muçulmano, como inshallah (que significa ‘se Deus quiser’), tornaram-se parte dos bordões populares. Em geral, segundo o antropólogo Paulo Pinto, em seu livro Islã: Religião e Civilização, os discursos estigmatizantes sobre o islã criados no pós-11 de setembro não tiveram o monopólio da representação do islã na esfera pública brasileira, uma vez que tinham de enfrentar a concorrência daqueles de cunho positivo veiculados pela novela.”
Com esses dois divulgadores, a religião se alastrou. Conquistou novos adeptos entre árabes de todas as cepas, católicos e até mesmo entre aqueles que não tinham religião. Na periferia das grandes cidades, como São Paulo, ganhou contornos de “volta às raízes”, arrebanhando negros que viram, no islamismo, uma maneira de honrar seus antepassados africanos.
Diferenças
A vida dos seguidores do islamismo no Brasil, entretanto, não é igual à dos muçulmanos do Oriente Médio – região do mundo em que estão mais concentrados. “Certa vez, conversando com um libanês, ele me disse que era diferente ser muçulmano no Brasil e no Oriente Médio, até porque o islamismo não é apenas uma religião. A vida social e mesmo a política estão atreladas”, explica Henry Albert Yukio Nakashima, historiador e mestrando da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na opinião do especialista, as interações do dia a dia são o principal motivo para isso. “A cultura local influencia o modo como as pessoas praticam o islamismo”, completa. Uma das diferenças é o consumo de carne de porco. Proibido pela religião, no Brasil ele acaba sendo mais tolerado por alguns adeptos. “Conheço muçulmanos brasileiros que consomem essa carne, mas seguem todas as outras regras do islã”, diz Henry.
As diferenças, no entanto, não são empecilho para a vida dos muçulmanos no país, apesar de surgirem alguns embaraços. “É claro que os imigrantes árabes muçulmanos podem ter problemas relacionados às práticas culturais locais e ao idioma, que eventualmente tornam mais complicada a socialização. Mas, no caso dos muçulmanos brasileiros, as dificuldades encontradas são diferentes entre aqueles nascidos muçulmanos e os que se converteram quando já eram adultos. Os dois grupos dominam a cultura local, mas devem adequá-la à sua crença”, explica Gisele. Ela lembra também que os convertidos, em tese, precisariam mudar suas práticas alimentares, deixando de ingerir produtos que tenham origem suína. Ou, ainda, deveriam evitar ambientes com bebidas alcoólicas, que são proibidas no islã. “As dificuldades se dão mais em termos práticos, não levando a uma exclusão social dos muçulmanos, como se observa em países europeus.” Para as mulheres, talvez, a tarefa seja um pouco mais árdua. “Muçulmanas que usam o véu islâmico podem, por exemplo, encontrar algumas resistências com relação à aceitação pela sociedade local”, afirma a pesquisadora.
Por outro lado, eles precisam enfrentar o preconceito, que, apesar de velado em grande parte dos casos, existe. Uma pesquisa feita pelo instituto Datafolha em 2007 e divulgada pelo jornal “Folha de S. Paulo” mostrou que, para 49% dos entrevistados, a frase “os muçulmanos defendem o terrorismo” seria verdadeira. “De fato, há queixas entre os seguidores do islã sobre o tratamento que a mídia em geral dá à religião e a eles, associando-os, muitas vezes, ao terrorismo”, explica Gisele.
Véu
No caso das muçulmanas, como se pode supor, o preconceito – ou a estranheza – é mais evidente. O uso do véu, em grande parte, é o responsável por tal estranhamento. “Há indícios de que, no Brasil, a adesão ao uso do véu se relacione mais a uma construção identitária do que a um apelo político, como ocorre no Egito e na França”, afirma Isabelle Christine Somma de Castro, doutoranda em história social na USP, em seu artigo “O Véu, a Identidade e o Discurso”, publicado no site do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe). O véu seria, para as muçulmanas brasileiras, uma maneira de identificar suas crenças – e só.
Segundo a pesquisadora, “a época e o local de origem do costume de cobrir os cabelos e o corpo são incertos. Cobrir o rosto com um véu era comum na Baixa Idade Média entre as bizantinas orientais, mas também era uma prática corrente na península Arábica pré-islâmica. Sabe-se com certeza, contudo, que esse hábito se popularizou entre os muçulmanos muitas décadas depois da morte do profeta Muhammad [Maomé]. A própria regulamentação da vestimenta entre os muçulmanos é controversa. O Alcorão não é preciso sobre o assunto. Nele, não há nenhuma indicação em relação à prática feminina de cobrir a cabeça, apenas a recomendação de que os fiéis se vistam com modéstia”.
A dissertação de mestrado de Fawzia Oliveira Barros da Cunha, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), confirma a tese de que as muçulmanas aderem ao véu como afirmação de sua identidade religiosa. “Com base nos depoimentos de mulheres de Juiz de Fora, cidade do interior de Minas Gerais, noto que há uma busca explícita por uma identidade por essas muçulmanas ao usarem o véu, mas não podemos fazer afirmações definitivas, apenas apontar pistas sobre que tipos de identidade estão construindo”, escreve a pesquisadora. “Também há o fato de algumas usarem o véu mesmo com roupas curtas, coloridas e exóticas, viajarem sozinhas, trabalharem fora do lar. Esses fatos parecem demonstrar que essas mulheres acolhem, de certa forma, talvez não tão rígida, a tradição, as codificações transnacionais do islã, mas ao mesmo tempo conectam-se e se abrem ao mundo no qual se inserem, recebendo suas influências.”
Essa, talvez, seja a melhor definição do mundo muçulmano brasileiro: uma troca cultural incessante. “A princípio, as leis e recomendações citadas devem ser o alicerce de todo fiel muçulmano. O contato com outras culturas, porém, influenciou as tradições. E, por mais distintas que possam parecer, diferentes culturas, quando em contato, trocam elementos que, a longo prazo, se tornarão novas práticas e tradições. Os fundamentos permanecem como conexão com o divino e a fé, mas sua prática, inevitavelmente, fica sujeita às especificidades do local de contato e das condições do momento”, conclui Henry Nakashima.
Revelação divina
Seguindo a tradição das grandes religiões monoteístas, o islamismo alicerça suas crenças na revelação de Deus. A palavra “islã”, por exemplo, significa submissão à vontade de Deus (Alá). Sua origem remonta ao século VII d.C., na atual Arábia Saudita, onde Maomé recebeu a revelação de Deus por intermédio do anjo Gabriel. Assim como os judeus e os cristãos, os muçulmanos creem em anjos e profetas. “Não seria absurdo dizer que o islamismo faz parte de uma mesma cronologia de revelações, iniciando-se com Abraão e os profetas hebreus, passando por Jesus Cristo, para terminar em Maomé”, afirma o historiador Henry Nakashima.
A religião tem cinco pilares fundamentais, preceitos que todo muçulmano deve seguir. Primeiro: não há Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta. Segundo: o muçulmano deve orar no mínimo cinco vezes ao dia, voltado em direção a Meca. Terceiro: desde que tenha reais condições de fazê-lo, todo muçulmano deve pagar o tributo, cujo valor é de 2,5% de sua renda anual, em prol dos mais pobres. Quarto: é preciso fazer jejum durante o mês do ramadã. Esse jejum inclui a proibição de comer, beber, fumar e manter relações sexuais entre o nascer e o pôr do sol. Quinto: desde que tenha condições, o fiel deve fazer uma peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida.
Profissão de fé
O ritual para se tornar muçulmano é bem simples e igual para homens e mulheres. A conversão se dá com a pronúncia, em árabe, da shahada, que seria a profissão de fé. Deve-se dizer que não há deus senão Deus, e que Maomé é o seu profeta. Esse pequeno ritual marca a entrada do convertido na comunidade mundial dos fiéis islâmicos. “Geralmente, em famílias muçulmanas, a shahada é sussurrada ao ouvido dos recém-nascidos. No caso de conversão, ela deve ser pronunciada três vezes na presença de outro muçulmano adulto”, conta Gisele Chagas, da Universidade Federal Fluminense. Não é necessário estar diante de autoridades religiosas para que se dê a conversão e, no Brasil, esses rituais podem ser públicos ou privados, coletivos ou individuais.
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