FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SÃO PAULO
No livro "O Roubo da Mona Lisa" (ed. Campus), Darian Leader levanta uma série de questões relacionadas com a criação artística a partir desse fato inusitado que chocou o mundo artístico.
O roubo ocorreu no dia 22 de agosto de 1911 e foi perpetrado por Vincenzo Peruggia, pintor de paredes, italiano que disse, assim, recuperar para seu país a obra-prima que lhe havia sido tomada por Napoleão Bonaparte. Um equívoco, já que o quadro foi levado para a França pelo próprio Da Vinci, quando para lá se mudara a convite de François I.
Aquela terá sido uma desculpa inventada por Peruggia, já que, mais tarde, tentou vender o quadro, em Florença, ao antiquário Alfredo Geri, por meio milhão de liras. Este o denunciou à polícia, que encontrou a famosa obra-prima dentro de um baú velho, envolto em roupas sujas e junto com dois pares de sapatos.
Além desse episódio, há no livro observações instigantes e informações que o induzem a refletir sobre os mistérios da criação artística. Sucede que, como psicanalista que é, tende a explicar esses mistérios a partir das teorias de Freud e Lacan, de que resultam interpretações que nem sempre têm a ver com questões estéticas propriamente ditas.
Como se sabe, Leonardo da Vinci deixou algumas de suas obras por terminar. Na visão psicanalítica, esse fato decorreria do mau relacionamento do artista, quando menino, com seus pais; a verdade, porém, é que o pintor teimava em usar, na realização dos afrescos, experimentos técnicos que não deram certo.
Como a pintura sobre barro fresco tinha que ser executada com rapidez, Da Vinci, interessado em efeitos sofisticados, que exigiam realização demorada, passou a misturar à tinta tradicional novos ingredientes que ou não deixavam a pintura secar ou faziam com que se apagasse em seguida. Foi o que ocorreu, por exemplo, com "A Batalha de Anghiari", cuja tinta não secava e a qual ele abandonou pela metade. O que os problemas de Leonardo com os pais teriam a ver com isso é difícil de entender.
Mas o livro aborda outras questões, às quais raramente os críticos dão importância, como o relacionamento de Picasso e Braque, no início do cubismo que, não só os levou a pintar de modo tão parecido, como o fato de um perguntar ao outro se o quadro estava terminado. É sintomático que isso tenha ocorrido com os dois artistas responsáveis pela mais radical ruptura de que se tem notícia em toda a história da arte. É que essa ruptura pôs à mostra um fato decisivo inerente à criação artística: a importância do fator acaso.
Até o final do século 19, antes da ruptura da linguagem pictórica provocada por Paul Cézanne, a função do acaso, por ser menor, era pouco percebida pelos pintores.
É que o compromisso com a representação da realidade já por si limitava as opções possíveis. Quando Cézanne libera a pincelada do contorno figurativo, ela vira mancha e, assim, o grau de opções arbitrárias aumenta amplamente.
E aumentará muito mais ainda quando, na fase final do Cubismo, a própria linguagem pictórica é implodida: a colagem de diversos materiais - de recortes de jornal a barbante e areia - se juntam às formas pintadas.
Os limites da linguagem da pintura se dissolveram e com eles as normas que orientavam o trabalho do pintor. Na execução do quadro, as probabilidades de realizá-lo são tantas e inesperadas que o artista mal sabe se ele está concluído. Por isso, talvez de brincadeira, Picasso e Braque pedem um ao outro que digam se o quadro está pronto.
O que significa essa piada? Que o próprio pintor já não domina sua expressão? Que não é mais possível ser mestre de sua arte? Ou, em face do número ilimitado de probabilidades, já não importa buscar a forma única e inevitável da obra?
Essas questões determinaram o surgimento do Dadaísmo, que, por assim dizer, na sua expressão mais extremada, negou o fazer artístico (vide o urinol de Marcel Duchamp) e fez surgir, depois, a tendência conhecida como arte contemporânea.
No entanto, à parte do radicalismo dadaísta, a verdade é que, na realização da obra de arte, os fatores casuais sempre desempenharam papel essencial. O autor nunca sabe ao certo se a obra está pronta. Dá-la por terminada é uma decisão até certo ponto arbitrária.
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