ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo
O que mais me impressionou no casamento real deste Windsor neto de George VI, o avô cuja gagueira promoveu à larga Winston Churchill no período da 2.ª Guerra Mundial, não foi nem a pompa nem a circunstância, mas como elas se fazem. É da pompa o garboso cuidado com as fardas de gala e as medalhas, os vestidos caudalosos e as tiaras cravejadas de brilhante com o valor de muitas vidas. Tal ênfase no lado exterior faz com todos se diferenciem, pois quem não sabe a dessemelhança entre um general e um burocrata? Já a circunstância exige um piedoso desprendimento, cuja marca é o mais absoluto controle das emoções, essa dimensão exterior dos sentimentos. O rosto congelado estampa, no máximo, um duvidoso meio sorriso e deve esconder as batidas (ou, quem sabe, o remorso) de um coração mortificado ou alegre. A circunstância exige o controle de tudo: cada coisa em seu lugar e um lugar para cada coisa. Em seu seio, a emoção é não ter emoção. Os reis - aprendi numa aula de etiqueta televisionada - não podem rir ou chorar. Eis o que mais me abismou. Ser rei é ser transformado num boneco de cera. Um perfeito símbolo (des)personificado de uma coletividade. Mas de uma coletividade que estaria acima da história. O que o casamento real dramatiza, mas nem sempre consegue realizar, é essa imutabilidade contida no papel real que a pompa e a circunstância tentam, à sua maneira, exprimir e tornar claro. Pois pompa e circunstância remetem mais ao lado mítico-religioso dos reis do que ao seu lado executivo (e histórico) que, conforme sabemos, reina, mas não governa.
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No dia seguinte ao do casamento, uma figura pública admirável - nada menos do que o economista Sérgio Besserman Vianna - coroa-me pelo que obro "rei do Brasil", na coluna do Ancelmo Góis, no Globo. Fiquei sinceramente agradecido, pois que eu, no mesmo inquérito, elegi o ex-presidente Lula como o mais perfeito "rei do Brasil". Não o rei dos meus carnavais juvenis, monarcas sem reinado, coroa, castelo e rainha. Mas um rei com tudo isso e o céu também, conforme ficou claro na sua Presidência "polulesca", que terminou distribuindo passaportes diplomáticos para seus filhos num arremedo de aristocratização pelo poder. E hoje explode numa coroa de escândalos de corrupção. Um rei acima que desdenha livros e leis. Rei que nada tem de sacerdote e, por isso, é uma tolice confundir reis com presidentes. Basta pensar na diferença entre um Chávez e um George VI. Existiram reis santos. Quanto aos presidentes, talvez um Woodrow Wilson tivesse sido dono de uma inocência capaz de levá-lo a beatificação...
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Menino de 9 anos, recordo o meu primeiro contato com um dentista. Papai fazia questão que nenhum dos seus filhos tivesse "dente podre". Na sua opinião, o Brasil estava recheado de dentes podres e ter uma "dentadura perfeita" era sinal de realeza. Esse era um tema de debate entre meus tios e pai. Vários soldados da Força Expedicionária Brasileira, examinados pelos médicos americanos do V Exército, ao qual foram incorporados na Itália, em 1945, haviam sido reprovados precisamente pelos dentes podres. Qualquer sorriso, naquela época, era sinal devastador de uma estética de classe: os pobres tinham dentes podres. Para papai, isso era pior do que não ter dentes. O que era pior? Não ter dentes ou tê-los podres e fedorentos? Um lado da família preferia os dentes podres; a outra, a banguela.
No dia seguinte, fomos - cinco meninos e uma menina - levados ao dentista, onde tive a boca cuidadosamente examinada. Ainda sinto o cheiro das mãos superlimpas do cirurgião-dentista percorrendo meus dentes com aquele ferrinho de descobrir cáries. Volta e meia ele mexia aqui e futucava ali, eu dava um gemido e ele, com aquele sorrisinho perverso dos dentistas, descobria um buraco a ser cuidado e limpo das bactérias que sentam praça em nossas bocas.
Terminado o exame, foi conclusivo: excepcionais os seus dentes, há apenas um a ser extraído por podridão, mas é de leite, de modo que não há com o que se preocupar.
- Mas de onde vinha a podridão?
O nobre dentista - pomposo como um rei, filosofou: o sujo estava sempre ao lado do limpo. Tudo nasce e morre o tempo todo. Como na política, elegemos um honesto para cada três ladrões, é impossível distinguir à primeira vista. Já naquele tempo o governo brasileiro estava cheio de dentes podres. Talvez não tanto como hoje, mas estava.
Eu mesmo produzia o veneno que, um dia, iria me matar ou produzir aqueles horríveis dentes podres que papai queria exterminar. O sujo está sempre perto do limpo. Quando fica escondido vira hipocrisia, às claras é corrupção. Foi assim que eu descobri, e mais tarde confirmei, que a mais desprezível hipocrisia está um pouco mais à frente ou atrás de cada um de nós.
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