O primeiro grande interesse nacional em jogo nas eleições de 2010 é a preservação das duas conquistas mais importantes dos últimos 25 anos: a democracia política e as bases da estabilidade econômica. A modernização do Estado, lenta e ainda longe de se completar, é condição para um avanço mais seguro naquelas duas frentes.
Esta escolha pode parecer estranha. É hora de olhar para diante e para os novos desafios do desenvolvimento econômico e social, responderão alguns, e não de pensar na manutenção de resultados bem estabelecidos. É hora de pensar, poderão dizer, na consolidação do Brasil como líder regional e como ator relevante da cena internacional.
Sem dúvida, o próximo governo terá de incluir todos esses temas em sua agenda, até para uma cuidadosa reavaliação da experiência diplomática dos oito anos anteriores. Mais que isso: para acrescentar realismo a essa lista de objetivos, seria bom mencionar a agenda da competitividade. Complexo e amplo, esse tema inclui questões tão variadas quanto a tributação, a logística, a educação, a pesquisa, o financiamento, a segurança jurídica, os acordos comerciais e os fundamentos macroeconômicos. É preciso incluir todos esses pontos na discussão. Mas vale a pena insistir nos objetivos indicados no começo. Seria um erro perigoso dar como irreversíveis o regime democrático e a reconstrução econômica dos anos 1990 e da virada do século.
As últimas tentativas oficiais de controlar a imprensa ocorreram neste ano – a mais grave com o chamado Decreto dos Direitos Humanos - e só não prosperaram porque foram denunciadas com vigor. Mas o assunto não está liquidado. Continua a discussão e o próximo lance vai ser disputado, quase certamente, quando sair o projeto de regulação dos meios de comunicação eletrônica. Em outras frentes, a ação antidemocrática foi mais longe. As diferenças entre as centrais do trabalho praticamente se apagaram, quando o governo as converteu em clientes do imposto sindical. Originário do sindicalismo, o núcleo do governo domesticou os sindicatos e uniformizou-os pelo fisiologismo.
Os ataques aos meios de comunicação e o desenvolvimento do neopeleguismo – formado por sindicalistas e líderes estudantis – são sinais de alerta para quem se preocupa com as instituições e teme o enfraquecimento de uma democracia representativa já muito deficiente.
Movimentos “sociais” atrelados a partidos e a governos e alimentados com recursos fiscais são duplamente perigosos. São uma boa matéria-prima, facilmente amoldável, para a chamada democracia direta – em prejuízo do regime representativo. Também essa possibilidade foi embutida no Decreto dos Direitos Humanos, um calhamaço de 92 páginas pouco lido e discutido de forma incompleta. O outro risco é o do uso desses movimentos como milícias, tanto pelo governo quanto pela oposição, dependendo da organização de cada lado. Não é preciso olhar para a Venezuela para identificar ações desse tipo. Na Argentina, onde o sistema representativo se mantém muito mais sólido, grupos sindicais têm servido para violências contra meios de comunicação e grupos empresariais.
No caso da outra conquista – a maturidade macroeconômica – o risco de retrocesso tem-se manifestado talvez mais lentamente, mas de forma clara. Têm aumentado as pressões contra a disciplina fiscal. O Tesouro tem sido usado para financiamento de empresas. Governadores e prefeitos têm sido encorajados a batalhar pelo afrouxamento das normas definidas nos anos 1990, quando as dívidas estaduais e municipais foram renegociadas. Transferências federais voluntárias a estados e municípios têm sido usadas como instrumentos político-eleitorais.
O tripé da estabilidade
Apenas para completar esta lista parcial de preocupações: os três candidatos mais cotados prometem manter o tripé da estabilidade – metas de inflação, superávit primário e câmbio flexível – e conservar a autonomia de fato do Banco Central. Mas nenhum deles admite a autonomia formal do BC. Não se deve menosprezar o risco de uma volta ao voluntarismo. O retrocesso já foi ensaiado em várias ocasiões e o caminho está aberto para novas tentativas. As ações poderão variar de acordo com o eleito, mas o risco é real. Sempre haverá aplausos a quem mudar o jogo em benefício de algum grupo.
Exemplos de voluntarismo são bem conhecidos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou publicamente, no Nordeste, haver determinado a construção de refinarias contra a opinião dos dirigentes da Petrobras. Eles obedeceram. Mas isso não é tudo. O presidente Lula decidiu, nesse caso, com base numa concepção encerrada em sua cabeça, mas não explicitada num plano formal e tecnicamente elaborado. Incluiu nessa concepção uma empresa estatal de capital aberto, com ações negociadas no Brasil e no exterior e envolvida num gigantesco projeto, o do pré-sal.
Esse voluntarismo tem-se refletido na crescente centralização de comando. O caso da Petrobras e dos projetos vinculados ao pré-sal é uma das indicações mais evidentes. A chefia da estatal está instalada no gabinete da Presidência da República. Toda a estratégia do pré-sal vem sendo montada para fortalecer esse padrão de gerência. A nova legislação torna a Petrobras um instrumento de política industrial, acrescentando um item perigoso à sua finalidade. Isso foi pouco discutido, e os congressistas, como em tantos casos, foram omissos.
Tesouro e BNDES: vínculos incestuosos
Os vínculos um tanto incestuosos do Tesouro com o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) são ramos da árvore da centralização. Economistas independentes e jornalistas alertaram para o risco de reedição, com pequenas mudanças, da famigerada conta movimento. Essa conta foi extinta nos anos 1980, depois de servir, durante muitos anos, a desmandos monetários e fiscais. A estabilização só ocorreria bem depois, mas esse foi um passo importante para a reabilitação da política macroeconômica. Também esse avanço foi posto em risco a partir de 2009. A justificativa para o passo inicial foi a necessidade de agir contra a recessão, mas a tendência se manteve com a economia já em rápido crescimento. Só foi freada, em 2010, depois de numerosas críticas publicadas pela imprensa.
As críticas foram baseadas principalmente em considerações técnicas, todas importantes, mas de alcance limitado. Se houvesse apenas um problema de maior ou menor racionalidade na política econômica, essa argumentação poderia ser suficiente. Mas o perigo não está somente no uso de recursos fiscais – e do endividamento público – para a concessão de financiamentos por meio do BNDES. Faltou dar mais atenção ao lado político da questão, e este é pelo menos tão importante quanto o econômico, se não mais.
As intervenções do Tesouro foram usadas para beneficiar principalmente a Petrobras, a Eletrobras e alguns grandes grupos privados. Foram operações seletivas e baseadas em critérios nunca explicitados, de forma suficiente, numa política industrial ou num plano geral de governo formalizado e discutido publicamente.
Dos R$ 180 bilhões transferidos pelo Tesouro ao BNDES, em 2009 e 2010, 72% foram destinados, até julho deste ano, a algumas das maiores companhias do País. Tudo se passou nessas operações – assim como na ajuda concedida, no rescaldo da crise, à fusão de grandes grupos industriais – como se o governo tivesse o direito de usar a seu gosto um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo.
Questões desse tipo são políticas, tanto quanto o aparelhamento da máquina estatal, a entrega dos grandes fundos de pensão a sindicalistas e o loteamento de cargos na administração direta e na indireta. A preocupação com esses temas tem relação com a democracia representativa e com as condições de modernidade do Estado. Mas o debate de assuntos desse tipo raramente vai além do palavrório ético. O fato político é geralmente ignorado ou esquecido em segundo plano.
Tradição patrimonialista
Todos esses desmandos são variantes da tradição patrimonialista. Costuma-se vincular o patrimonialismo à dominação exercida pelos antigos donos do poder. Mas a inclinação para confundir o público e o privado manifesta-se com intensidade igual, se não maior, nos grupos de esquerda, quando instalados no governo. A experiência brasileira não permite dúvida sobre esse ponto.
Também a modernização do Estado continua longe, portanto, de ser uma conquista bem assentada. É um processo inacabado, lento e sujeito a fases de estagnação e até de recuo. A valorização da burocracia – caracterizada pelo profissionalismo, pela competência e pela racionalidade – e dos critérios de seleção e de promoção pelo mérito foi abandonada há anos.
O último esforço importante de montagem de uma administração pública profissional ocorreu no período militar. Parte do estoque de competência acumulado nessa fase foi jogada fora nos dois primeiros governos civis, o do presidente José Sarney e o de seu sucessor, Fernando Collor de Mello. No primeiro, os novos dirigentes da política econômica trataram de afastar ou de enfraquecer funcionários tachados – nunca oficialmente – de comprometidos com o regime militar. A marginalização da competência explica boa parte das mais grosseiras tolices cometidas na política de preços durante o Plano Cruzado.
No governo seguinte houve a demolição sem critério de vários setores da administração. Os demolidores foram incapazes de avaliar o estoque de capacidade associado a cada órgão da burocracia federal. Exemplo: quando se fechou o Instituto Brasileiro do Café (IBC), ninguém teve o cuidado de preservar o enorme patrimônio de experiência e de conhecimento técnico acumulado em décadas. Durante anos, depois disso, o governo foi incapaz até de estimar com alguma confiabilidade a produção cafeeira.
Durante os oito anos de mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo se ocupou prioritariamente de reconstruir as condições da gestão macroeconômica. Houve ganhos importantes de racionalidade, mas pouco se avançou na remontagem da máquina gerencial, apesar de um ensaio de reforma administrativa.
Aparelhamento do Estado
Nos oito anos seguintes, a partir de 2003, o aparelhamento, o loteamento de cargos e o continuado inchaço dos gastos com pessoal foram as principais características da política administrativa. Na administração indireta, a distribuição dos postos mais importantes foi disputada ferozmente pelos partidos da base aliada. Os casos mais notórios foram os das empresas do Grupo Eletrobras, convertidas em território do maior partido aliado. Praticou-se durante anos uma ampla privatização da máquina pública por grupos partidários.
Os preceitos de “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” foram explicitados no artigo 37 da Constituição de 1988, mas não pegaram. Foram ignorados ou desprezados nos três Poderes. Foi preciso o Conselho Nacional de Justiça pressionar os tribunais para juízes começarem a afastar os muitos parentes alojados em seus gabinetes. Sempre se deu mais atenção aos escândalos do empreguismo no Legislativo do que noutras instituições, talvez porque as histórias envolvessem pessoas mais conhecidas, como um ex-presidente da República e presidente do Congresso.
Desafios à construção de um Estado moderno
Gastaram-se muito papel e muita saliva em pregações éticas, mas nunca se avançou bastante no debate mais consequente: o da construção de um Estado realmente moderno, isto é, de uma república no sentido literal. Essa tarefa permanece aberta e seria redundante classificá-la como um item do “interesse nacional”. Não há como pensar numa efetiva consolidação do regime democrático, ou mesmo do estado de direito, sem a consolidação do próprio Estado moderno.
Esse Estado pode operar com mais de uma forma de governo, mas nenhuma produzirá seus melhores efeitos sem um espaço público bem definido. Sem isso, não pode haver mais que uma cidadania defeituosa, nem efetiva garantia de liberdades. Algumas pessoas ou grupos conseguirão expandir o espaço de seus interesses particulares, enquanto outras sofrerão restrição de direitos.
É importante insistir neste ponto: o grande tema não é a maior ou menor presença do Estado na economia ou nos serviços oferecidos à sociedade. No Brasil, neste momento, os grandes desafios, quando se trata da configuração político-administrativa, são de outra ordem: 1) a centralização maior ou menor das decisões importantes para a sociedade, com maior ou menor grau de arbítrio; 2) a fixação mais ou menos clara – e mais ou menos funcional – dos espaços público e privado.
Por todos esses fatores, a adoção do modelo das agências de regulação, tal como concebido nos anos 1990 e copiado da experiência de paí-ses mais desenvolvidos, é importante não só para o desenvolvimento econômico, mas também para a modernização política e institucional. O modelo com autonomia operacional das agências foi atacado nos últimos oito anos e bombardeado tanto por ministros setoriais quanto pelo gabinete presidencial.
O aparelhamento desses órgãos foi apenas o lado mais visível da orientação oficial. Outros problemas foram menos discutidos publicamente. Algumas agências ficaram durante meses sem diretores suficientes para deliberação. Foram mutiladas e impedidas de operar e só voltaram à aparente normalidade quando o Executivo decidiu preencher, à sua maneira, as diretorias.
O futuro das agências pode parecer uma questão limitada e técnica demais para ser incluí-da numa discussão sobre os interesses nacionais. Mas essa impressão é enganadora. Agências bem constituídas – com autonomia operacional, diretores com mandatos não-coincidentes com o do governo e forte compromisso com critérios técnicos – podem ser elementos importantes para a modernização do Estado e para a consolidação de um espaço público digno desse nome.
Na política econômica, o novo governo terá de enfrentar graves problemas de curto e de longo prazos para sustentar o crescimento do PIB, a modernização produtiva, a criação de empregos e a ampliação de oportunidades de realização pessoal e de acesso ao bem-estar – objetivos obviamente inscritos nos interesses nacionais. De imediato, o desafio mais evidente será manter o crescimento num cenário internacional desfavorável.
O mundo rico ainda não superou a recessão. Na Europa, só a Alemanha parece avançar com firmeza. A economia americana, depois de emitir sinais positivos durante alguns meses, voltou a fraquejar, como reconheceu o Federal Reserve, o banco central, em sua reunião de política monetária de agosto. Também a China, maior fonte de receita comercial do Brasil, perdeu impulso no segundo trimestre, embora mantendo um forte crescimento industrial. Mas a evolução de suas importações em 2011 poderá ser menos favorável do que vinha sendo até meados de 2010.
Um crescimento puxado pelo mercado interno, como em 2009 e neste ano, não será uma boa solução para o Brasil em 2011 e nos anos seguintes. Estima-se para este ano um déficit em conta corrente próximo de us$ 50 bilhões. A projeção para 2011 está perto de us$ 60 bilhões. Não parece haver, por enquanto, risco de crise no balanço de pagamentos, até porque o Brasil tem reservas em torno de us$ 250 bilhões. Mas o investimento direto estrangeiro tem sido insuficiente para cobrir o déficit e não se prevê mudança da situação. O Brasil voltou a depender, portanto, de capital especulativo e de empréstimos para fechar as contas externas sem perder reservas. De alguma forma o ministro da Fazenda reconheceu os perigos de um crescimento acelerado. Mas, segundo ele, a expansão do PIB deverá ficar no próximo ano entre 5,5% e 6%, dentro do limite considerado seguro pelo governo.
Prioridades incontornáveis
Um crescimento nesse ritmo será satisfatório, enquanto não se criam condições para um avanço mais acelerado. O novo governo terá de eleger duas prioridades incontornáveis sem alto custo para o País. Se não as cumprir, poderá ficar na história como responsável pelo maior e mais grave retrocesso em mais de meio século. As duas tarefas são: 1) frear a deterioração das contas públicas e preservar os fundamentos macroeconômicos; 2) cuidar da competitividade e da integração do País na economia global.
Os dois trabalhos são interligados e se desdobram em várias linhas de ação. Por exemplo: será preciso mexer amplamente na política fiscal para aliviar a política monetária, facilitar a redução de juros, dar mais espaço ao investimento produtivo e facilitar uma acomodação do câmbio em nível mais favorável à produção nacional. Os três candidatos de maior peso prometem manter o tripé da política macroeconômica. Esse compromisso tornou a campanha mais confortável para os três, mas falta traduzir as promessas em linhas claras de ação.
Pelo menos parte do eleitorado percebe o vínculo entre fundamentos e crescimento econômico. Mas a importância de reformas adicionais deve ser menos visível. A experiência de sucesso iniciada na primeira metade dos anos 1990 é uma história incompleta. Qualquer novo governante deveria tomar esse fato como referência para sua política.
A expansão do PIB durante o governo Lula foi possibilitada, em grande parte, por algumas condições criadas na década de 1990 e no começo dos anos 2000. A renegociação com estados e municípios para tornar administrável sua dívida permitiu a reimplantação da política monetária. Não poderia haver controle da moe-da enquanto os governos estaduais pudessem recorrer a seus bancos para gastar à vontade e o BC fosse forçado, politicamente, a sancionar a farra. A legislação sobre responsabilidade fiscal aprovada em 2000 completou os acordos firmados com prefeitos e governadores. O câmbio flexível e as metas de inflação haviam sido adotados em1999, depois da crise no balanço de pagamentos, e produziram imediatamente resultados positivos. No começo da nova década o ajuste do balanço de pagamentos já era perceptível e o crescimento da exportação estava em curso, embora em ritmo ainda menor que o dos anos seguintes.
A partir dessas alterações, a relativa estabilidade monetária e fiscal propiciou ao governo Lula uma base firme para a realização de seus objetivos. O rápido controle da inflação em 2003 só foi possível porque o BC dispôs de instrumentos forjados na administração anterior – mais precisamente, porque as condições de exercício da política monetária haviam sido reconstruídas. O BC aplicou sua política sem grandes problemas. A inflação foi mantida em níveis toleráveis, durante a maior parte dos últimos oito anos. Isso contribuiu para a valorização real dos salários e para a preservação da renda transferida aos pobres. A política monetária facilitou a reeleição em 2006.
Esse detalhe nunca foi bastante realçado no discurso oficial, mas o presidente Lula com certeza percebeu a importância da ação do BC. Isso explica por que ele manteve o compromisso de respeitar a autonomia de fato do Comitê de Política Monetária. O BC foi atacado com insistência por ministros e pelo vice-presidente da República. Mas o chefe de governo até blindou o comandante do BC, Henrique Meirelles, atribuindo-lhe o status de ministro.
Palocci e a gestão fiscal
A política fiscal foi menos severa, mas conduzida com suficiente cautela, durante a gestão do ministro Antônio Palocci, para evitar uma grave deterioração das contas públicas. Ele não teve sucesso, no entanto, quando propôs a fixação de um prazo para eliminar o déficit nominal do setor público. Para isso seria preciso elevar durante alguns anos o superávit primário. A proposta foi apoiada pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, mas o presidente Lula preferiu seguir a opinião da ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, contrária ao ajuste fiscal completo. Aliou-se à ministra, nessa ocasião, o presidente do BNDES, Guido Mantega, futuro ministro da Fazenda.
A política fiscal, a partir da substituição de Palocci, tornou-se menos severa. A despesa de custeio cresceu mais velozmente, sustentada por uma arrecadação em alta constante até a crise de 2008-2009. O aumento da receita permitiu a obtenção de superávit primário suficiente para o pagamento de boa parte dos juros. Com isso o governo conseguiu manter sua credibilidade. Mais que isso: o País foi promovido ao grau de investimento pelas agências de classificação de risco. Mas o resultado fiscal foi alcançado apenas com a arrecadação crescente, porque nunca houve austeridade no gasto.
Em 2008, as contas públicas estavam em condições de suportar os efeitos da crise. Isso foi reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), no relatório da consulta bilateral divulgado em 5 de agosto deste ano. Mas o relatório chama a atenção para alguns problemas indicados muitas vezes por analistas brasileiros:
1. é preciso reduzir a rigidez do gasto público;
2. o governo deve continuar trabalhando para diminuir a relação entre as dívidas bruta e líquida e o PIB e, além disso, para fortalecer as condições fiscais de médio prazo. A inclusão destes detalhes não é casual. O governo costuma enfatizar a evolução da dívida líquida, mas sua política tem forçado a elevação da dívida bruta e, no fim das contas, esse é um dado essencial para avaliar a situação do Tesouro. Governos de outros países, principalmente do mundo industrializado, costumam divulgar a dívida bruta. É esta, afinal, a referência mais importante para o mercado e para os credores atuais e potenciais. Afinal, a dívida líquida é uma figura contábil. No acerto de contas, o devedor tem mesmo é de pagar o valor bruto. Também por isso – embora o argumento não seja explicitado – o pessoal do Fundo recomenda atenção às operações quase-fiscais de financiamento ao BNDES. Essas operações impuseram ao governo uma elevação de R$ 180 bilhões em sua dívida bruta em apenas dois anos;
3. é necessário também redistribuir o peso da política macroeconômica. Deve-se conferir maior peso ao lado fiscal, principalmente com maior austeridade no gasto, e aliviar o lado monetário. Também isso tem sido ressaltado nos debates internos: quanto mais frouxa a política fiscal, maior a importância dos juros para o controle da inflação. As consequências são notórias: maior custo de capital, maior dificuldade para rolagem da dívida pública, menor espaço para investimento e maior risco de sobrevalorização do real, por causa da atração de capitais especulativos.
O déficit fiscal poderá ser zerado em 2014, disse o ministro da Fazenda em agosto, ao divulgar o boletim bimestral Economia Brasileira em Perspectiva. No segundo mandato do presidente Lula, o governo havia admitido eliminar o déficit nominal até 2012, mas desistiu de alcançar essa meta e resolveu transferi-la para o último ano da administração seguinte. A trajetória até o déficit zero foi indicada no relatório bimestral do Ministério da Fazenda sobre perspectivas da economia brasileira. Essa projeção se baseia na hipótese de crescimento contínuo da receita tributária, garantida pela expansão ininterrupta da economia. O superávit primário será de 3,2% do PIB em 2011 e de 3,3% nos anos seguintes. O déficit nominal, estimado em 1,9% do PIB em 2010, diminuirá gradualmente e chegará a zero em 2014.
O filme pode parecer interessante, mas é repetitivo: a melhora fiscal continuará na dependência de condições econômicas favoráveis e de uma arrecadação também maior. Essa aposta nos ganhos de arrecadação tem marcado o discurso oficial há vários anos. O mesmo argumento é usado quando funcionários do governo ou políticos da base rejeitam a ideia de nova reforma do sistema previdenciário. O crescimento, respondem, é a verdadeira solução para os problemas da Previdência e das contas públicas em geral. Mas nenhum projeto concebido com o mínimo indispensável de racionalidade pode ser baseado na hipótese de condições favoráveis durante todo o tempo. Isso é verdadeiro tanto para o planejamento empresarial ou pessoal quanto para a definição de políticas públicas.
Cuidado com as políticas fiscal e monetária
O cuidado com as políticas fiscal e monetária será essencial para o sucesso do governo em suas demais linhas de ação. O governo terá de se empenhar muito mais que seus antecessores na execução de uma pauta de competitividade. O Brasil tem algumas importantes vantagens comparativas e será preciso realçá-las. Ao mesmo tempo, será necessário reduzir ou eliminar importantes obstáculos enfrentados pelos produtores nacionais na disputa por mercados.
Um excelente exemplo de vantagem comparativa é o potencial de produção agropecuária. O Brasil tem um dos maiores estoques de terras agricultáveis do mundo e uma fronteira agrícola ainda não explorada. Recursos naturais, no entanto, não bastam. A agropecuária brasileira destacou-se nos últimos vinte anos por sua eficiência. Conquistou espaços no mercado global e só não avançou mais por causa de barreiras protecionistas e das condições de competição distorcidas por subsídios.
A disponibilidade de recursos naturais foi apenas uma parte da história e, de certa forma, nem foi a mais importante. Não se pode explicar o sucesso comercial do agronegócio brasileiro sem mencionar o papel da Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, e de órgãos produtores e adaptadores de tecnologia. Foi essencial, é claro, a receptividade dos produtores às novidades.
A produção agropecuária deslanchou principalmente a partir dos anos 1980. Na década seguinte, a produção de grãos e oleaginosas mais que duplicou. Foi possível expandir as colheitas de soja, arroz, algodão, milho, feijão e trigo com uma ampliação proporcionalmente muito menor da área cultivada. A inovação permitiu estender a cultura da soja, uma planta originária de climas temperados, a regiões como o Oeste da Bahia e o Sul do Maranhão.
Um dos efeitos mais importantes da modernização do setor foi a melhora dos padrões de consumo. Os ganhos de produtividade reduziram o preço relativo dos alimentos. Desde o começo dos anos 1990, os índices de preços ao consumidor foram refeitos duas ou três vezes para refletir o peso menor do custo da alimentação. Essa mudança abriu espaço nos orçamentos familiares para a compra de produtos não-alimentares, detalhe nem sempre lembrado pelos analistas.
Mas não se pode manter o agronegócio na dependência dos avanços tecnológicos das últimas décadas. É preciso ir adiante, em busca de novas conquistas permitidas pelo progresso da biotecnologia. Isso envolve não só financiamento para atualização constante da pesquisa, mas também condições institucionais favoráveis ao trabalho dos pesquisadores e à difusão das inovações. No primeiro mandato do presidente Lula, houve uma tentativa de aparelhamento da Embrapa e de orientação ideológica da pesquisa.
O resultado dessas mudanças teria sido desastroso, mas houve reação de setores importantes da comunidade científica e a imprensa contribuiu para o afastamento do risco. Não se pode menosprezar o perigo de novos escorregões. Se não os evitar, o novo governo cometerá um erro de enormes consequências. Haverá novas pressões a favor da politização da pesquisa agropecuária e pelo enfraquecimento do agronegócio. Também nessa área o risco de retrocesso é considerável.
Também será necessário ajustar a produção agropecuária às mudanças de valores. Consumidores dão atenção crescente, especialmente no exterior, a questões ambientais e às condições sociais da produção. Requisitos como esses podem converter-se em elementos de políticas protecionistas e o governo precisará manter-se atento a esse risco. Os brasileiros, no entanto, devem ser os primeiros a reprimir a devastação do ambiente e as práticas criminosas de exploração de mão de obra. A ineficiência na repressão afeta os interesses nacionais interna e externamente: de um lado, pela degradação do ambiente e pelo desperdício de recursos naturais; de outro, pelo comprometimento da imagem do País e pela perda de oportunidades comerciais.
Agenda da competitividade
Mas a pauta da competitividade inclui vários outros itens de enorme importância. A lista de problemas é conhecida. Pode haver dificuldades na especificação das soluções, mas é fácil apontar o caráter geral das mudanças. O famigerado custo Brasil enfeixa boa parte dos obstáculos.
Um dos principais componentes desse custo, se não o principal, é a tributação. Impostos e contribuições encarecem tanto o investimento produtivo quanto a exportação, retirando poder de competição dos produtores nacionais. É preciso mexer tanto nos tributos federais quanto nos estaduais. Estes são particularmente perversos. Formalmente, o empresário tem direito à restituição do ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, cobrado na compra de máquinas e equipamentos. Mas a devolução, na maioria dos casos, demora 48 meses. Este é só um exemplo de como o sistema tributário afeta os custos e a competitividade. Fala-se muito, e com razão, sobre o peso da carga tributária, bem maior do que a da maioria dos países em desenvolvimento, mas esse talvez não seja o ponto mais importante. Mais que pesado, o sistema brasileiro é desfuncional e incompatível com as necessidades de integração na economia mundial.
As linhas gerais de uma boa reforma tributária foram formuladas no começo dos anos 1990. O presidente Fernando Henrique Cardoso preferiu deixar o problema para o sucessor. O presidente Lula ensaiou cuidar do assunto, mas nunca se empenhou tanto quanto seria necessário para conseguir a aprovação das mudanças. As dificuldades políticas são consideráveis, porque entram em jogo interesses de regiões, de estados e de municípios. Mas não se pode admitir a hipótese de mais quatro anos sem a solução do problema tributário. Este é um dos maiores entraves ao crescimento econômico do País e à consolidação do Brasil como potência globalmente competitiva. Todo atraso nos ganhos de competitividade resulta em perdas de oportunidade, menor criação de riquezas e menor número de empregos criados.
Deficiência logística, entraves burocráticos, juros altos, lentidão da justiça e insegurança jurídica são alguns dos outros componentes do custo Brasil. O enfrentamento de todos esses problemas vai depender da qualidade da política fiscal, da melhora da administração pública e de inovações institucionais. Todas essas tarefas são antes de tudo desafios políticos.
A agenda da competitividade inclui a maioria das ações de governo. Uma lista das políticas necessárias para tornar o Brasil um país mais eficiente seria longa. Se for preciso selecionar mais alguns tópicos, será inevitável indicar a estratégia educacional. Já se perdeu muito tempo com os objetivos errados. Deu-se muita ênfase, nos últimos oito anos, à inclusão de estudantes em cursos de tipo universitário. Foi uma resposta essencialmente populista às necessidades da juventude.
Diploma universitário não é garantia de competência nem passaporte para emprego. Além do mais, a maioria dos jovens para de estudar muito antes de poder aspirar a uma vaga numa faculdade. E isso não é o pior. Cerca de 20% das pessoas com idade igual ou superior a quinze anos são analfabetas funcionais, isto é, incapazes de entender um texto simples. Há um desajuste cada vez maior entre as necessidades das empresas – forçadas à modernização – e as qualificações da maioria dos trabalhadores. Faltam, segundo as empresas, não só engenheiros e técnicos, mas também trabalhadores em condições de receber treinamento básico. Não podem recebê-lo porque não dispõem das qualificações mínimas para isso. Qualquer pessoa pode conhecer detalhes do problema consultando entidades como a Confederação Nacional da Indústria e até os sindicatos da construção civil, um setor aberto, antigamente, à mão de obra menos preparada.
A realização dos grandes objetivos nacionais depende, no entanto, não só de uma boa condução das ações internas, mas também, e cada vez mais, de uma ação diplomática prudente, firme e realista. A diplomacia brasileira dos últimos oito anos dificilmente se enquadra nessas características. Nesse período, a condução da política exterior foi prejudicada, quase sempre, pela mistura de questões econômicas e comerciais com preferências ideológicas. Além disso, o governo valorizou a diplomacia-espetáculo, para efeitos internos e externos. Quem assumir a Presidência em 2011 terá de enfrentar pesados e complexos compromissos vinculados à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016. O BNDES e também o Tesouro serão chamados, certamente, para sustentar as promessas. Mas ainda é tempo de perguntar se esses compromissos são eficientes e razoáveis para a projeção internacional do Brasil. Para que, por exemplo, entrar na aventura do trem-bala, um projeto de custo ainda ignorado (R$ 33 bilhões, R$ 40 bilhões ou mais que isso?) e de utilidade altamente duvidosa.
Diplomacia econômica
Na diplomacia econômica, Brasília apostou fichas demais na Rodada Doha de liberalização comercial. Lançadas no fim de 2001, essas negociações ainda estão emperradas e ninguém pode prever com alguma segurança quando serão concluídas. Durante esse período, centenas de acordos de livre comércio bilaterais ou entre regiões foram assinados. O Mercosul concluiu somente dois com parceiros de fora da América do Sul – um com Israel, o segundo com o Egito. Outros estão encaminhados, quase todos com países do Oriente Médio. Nenhum acordo com os grandes parceiros do mundo rico foi formalizado. A negociação com a União Europeia, iniciada há mais de dez anos e interrompida por longo tempo, foi retomada recentemente. Nas tentativas anteriores, o avanço foi dificultado, em boa parte, pelos desentendimentos entre Brasil e Argentina a respeito das concessões na área de bens industriais. Houve obstáculos também do outro lado, mas, de qualquer forma, as diferenças entre os dois maiores sócios do Mercosul teriam provavelmente impedido o acerto final.
Brasileiros e argentinos foram capazes de se entender, no entanto, quando se tratou da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas. Concordaram sem dificuldade em torpedear a negociação. Quando os negociadores americanos decidiram criar dificuldades sérias, os dois maiores interlocutores sul-americanos já haviam decidido enterrar o projeto. O presidente Lula vangloriou-se dessa façanha num discurso para sindicalistas. Outros países sul-americanos e centro-americanos negociaram tratados de livre comércio com os Estados Unidos. Alguns foram sancionados pelo Congresso americano, outros continuam na fila.
Diplomatas brasileiros trataram esses fatos como desimportantes. Segundo argumentaram, os americanos só poderiam conseguir, com essas negociações, acesso a mercados muito menores que os brasileiros. Essa é uma estranha forma de avaliar os fatos. Primeiro, porque os produtores americanos ganhariam acesso a mercados importantes para os brasileiros, especialmente para os produtores de manufaturados. Segundo, porque os acordos dariam a empresas latino-americanas acesso preferencial aos Estados Unidos, o maior mercado do mundo. Esse acesso seria um fator de atração para investimentos. De fato, até empresas brasileiras foram atraídas por essa vantagem.
O próprio Mercosul está emperrado e o principal parceiro do Brasil, a Argentina, tem seguidamente imposto barreiras a produtos brasileiros. A tolerância do governo brasileiro a iniciativas desse tipo em nada contribuiu para impulsionar o bloco. A Tarifa Externa Comum continua cheia de furos e a união aduaneira é uma ficção, exceto por um aspecto: nenhum dos sócios pode negociar isoladamente acordos de livre comércio. Diante de todos esses fatos, empresários e especialistas têm recomendado uma redução de status, com retorno à condição de zona de livre comércio. Nada ou quase nada se perderia. Mas cada país teria, em contrapartida, liberdade para negociar acordos com quaisquer parceiros. A questão continua em pé e o novo governo terá de examiná-la.
Aliados estratégicos
Nenhum dos parceiros estratégicos escolhidos pelo Brasil, nos últimos oito anos, concedeu ao Brasil o status de aliado estratégico em questões comerciais. A Rússia, um desses parceiros, nem sequer concedeu ao Brasil, até hoje, uma cota para exportação de carnes. Os brasileiros exportam grandes volumes para o mercado russo, mas apenas porque são grandes produtores e aquele mercado depende desse produto para seu abastecimento. Isto é só um exemplo de como funciona, em termos práticos, a estranha noção de estratégia adotada pela atual diplomacia brasileira.
Dois desses aliados estratégicos, Índia e China, se opuseram às posições defendidas pelo Brasil num momento importante da Rodada Doha, quando parecia haver uma chance considerável de conclusão das negociações. Nessa mesma ocasião, o governo argentino acusou o brasileiro de lhe haver dado uma facada nas costas. Nada disso, no entanto, parece haver afetado qualquer das estranhas convicções do novo Itamaraty. O rumo foi mantido, enquanto os parceiros eleitos pela ideologia do Planalto continuavam indiferentes às fantasias brasilienses. A China, por exemplo, continuou tomando mercados do Brasil até na América do Sul e, é claro, na Argentina. Indianos, russos e chineses, três dos membros do BRIC, foram simplesmente guiados, afinal, por sua percepção de interesses nacionais. Quais são os do Brasil? Certamente não são aqueles indicados pela concepção estratégica dos últimos oito anos. Como descobri-los? O exemplo dos outros BRICs pode ser uma boa inspiração. De interesses nacionais eles entendem.
ROLF KUNTZ é jornalista de O Estado de S. Paulo e professor de Filosofia Política da USP.
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